Homens entrincheirados em fervor religioso, cisões entre raças, hierarquias sociais estanques e moralistas, as mulheres como vítimas ou portadoras de desgraça, fundas feridas da guerra, a decadência das grandes famílias, pobreza, pobreza e a culpa, a tremenda culpa da Guerra e da escravatura - que nunca acaba, a culpa nunca acaba - sintetizada naquela frase : "O passado não morreu. Na realidade, o passado nem sequer é passado".
Durante décadas foi esta a imagem que tivemos do Sul dos EUA: mais que em grandes campos de algodão, ou em mulheres de sombrinha e vestidos de folhos, era nisto que pensávamos - nisto e em violência extrema. Era uma construção, mas inscreveu-se no nosso imaginário com a força apenas possível aos relâmpagos que quase cegam de tanto iluminar. Devemo-la ao homem acima citado: William Faulkner. Ele não se limitou a descrever o Sul, tornou-o lugar mítico. E os mitos, como escreveu o antropólogo William Burke, têm uma função: manter-se.
Mas agora podemos começar a desconstruir esse universo, ou, pelo menos, a rever as percentagens de cada um dos seus componentes. E dizemos agora porque só agora é que nós, portugueses, começamos a ter acesso ao outro lado da moeda: a escrita das mulheres do Sul dos EUA. O Sul que encontramos nessas obras, tendo traços comuns com o de Faulkner, é outro: o do lado de dentro das casas, o do dia a dia, o de uma relação mais íntima com os negros. A violência do exterior é nelas, muitas vezes, um eco, uma frase num diálogo aparentemente inocente. Isto não é o mesmo que dizer que Faulkner estivesse errado - apenas não podia olhar para dois lados ao mesmo tempo.
Lentamente elas têm chegado às prateleiras portuguesas. Há uns anos, foi Carson McCullers (1917-1967). Depois chegou a tradução desse cometa insuperável que é "Por Favor Não Matem a Cotovia", de Harper Lee, nascida em 1926. Muito recentemente criou-se um minúsculo culto em volta de Flannery O'Connor (1925-1964). O ano passado vieram Willa Cather (1873-1947) e Kate Chopin (1850-1904). Recentemente Antígona lançou "O Vento e Outros Contos", colectânea que reúne contos recolhidos da obra de Eudora Welty (1909-2001).
Temos, portanto, seis escritoras nascidas no Sul dos EUA, todas com obra no final do século XIX, início e meio do século XX, quatro delas editadas por cá no último ano e meio, que nos trazem outra imagem do Sul dos EUA. Fomos tentar perceber por que razão estiveram estas escritoras tantos anos afastadas do nosso mercado editorial, o que as une, que premência têm hoje.
Há anos que Teresa Alves e Teresa Cid leccionam estes (e outros) livros na Universidade Clássica de Lisboa - inclusive, "O Vento e Outros Contos" foi traduzido por uma ex-aluna, Diana Almeida, cuja tese de doutoramento se centra em Welty. Foi a elas - e a Margarida Vale de Gato, tradutora e investigadora do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa - que nos dirigimos para nos responderem à pergunta essencial: que Sul é este, que mulheres surgem nestas obras, vistas pelos olhos do século XXI?
A sombra de Faulkner
Primeira e inevitável pergunta: podemos unir estas escritoras em torno de um qualquer "sulismo"? Diana Almeida é cuidadosa: "A minha sensibilidade diria que o género é mais forte que o espaço [geográfico]. A Welty coloca os textos no Sul, mas não é uma escritora sulista, porque o espaço que descreve adquire características universais".
Que não se tresleia a resposta de Almeida. Ela está a pôr a ênfase na questão feminina por razões específicas: durante anos, nos EUA, ser escritora não era motivo de regalias sociais, antes pelo contrário. As escritoras americanas "foram perseguidas até meados do século XX: internadas, sujeitas a electro-choques, afastadas dos filhos. Como exemplo, temos a Edith Wharton" [1862-1937]. Isto não impediu que algumas tivessem sido bem recebidas: Welty teve os favores da crítica, mas era vista "como uma solteirona pacata, inofensiva". Kate Chopin teve êxito à primeira, mas não era considerada relevante. Elas escreviam, mas não eram "primas" inter pares - não eram "pares".
A revisão da literatura feminina só surgiu, nos EUA, "nos anos 70". O atraso de mais de trinta anos com que Portugal recebe esta literatura acaba por ser normal, se atentarmos nas palavras de Teresa Alves: "Acordámos tarde para toda a literatura americana e mesmo então só líamos Faulkner, Hemingway, Steinbeck e muito pouco Fitzgerald".
O simples acto de escreverem (em particular Chopin e Cather, que produzem no final do século XIX) era uma subversão. Para piorar a situação, quando a segunda vaga de escritoras surge (McCullers, O'Connor, Harper Lee, Welty), já existia um cânone, exclusivamente masculino e interdito a mulheres. E no topo do cânone, um totem, cuja sombra era gigantesca: Faulkner.
Diana Almeida: "O Faulkner abafou-as. Foi entronizado pelo 'New Criticism', que se tornou a escola americana de canonização".
Teresa Alves: "É preciso perceber que à época o Faulkner chegou a tapar o talento de homens como o [Truman] Capote".
A valorização do quotidiano
Há razões para isto, como aponta Diana Almeida: num país em cuja génese está a chaga da Guerra Civil, "Faulkner fez a expiação colectiva da culpa americana". Margarida Vale do Gato anui a esta visão: a literatura sulista "partia de um complexo de inferioridade, por causa dos crimes". Teresa Alves assinala que a escrita sulista é identificável por dois grande motivos:
a) "O Sul surge como um espaço distinto dentro do espaço americano: é o derrotado, conhece a amargura."
b) "É mítico não no sentido de ser construído fora do nosso espaço de vivências, mas porque houve nele pela primeira vez uma consciência nítida do abismo entre raças: os escravos são considerados animais, objectos".
Portanto: estas mulheres não ficaram à sombra de Faulkner apenas porque eram mulheres, mas também porque os seus textos estavam a leste dos "grandes temas".
Diana Almeida, relembra uma citação de Welty para demonstrar que a escritora não podia estar mais longe desse universo: "Eu detesto a Guerra Civil, não tenho nada a ver com a Guerra Civil", dizia. "Não existe tanta violência [nelas]", continua a académica cuja tese de doutoramento versa Welty, "porque elas têm uma perspectiva mais regeneradora - faz-se uma deslocação dos pontos de interesse do heróico para o quotidiano". Teresa Cid demonstra como se produz essa deslocação, recorrendo ao exemplo de Kate Chopin: diz que por um lado "O Despertar" (Relógio D'Água) está mais próximo de Flaubert que de Faulkner, por outro "ela está a escrever sobre um mundo intrinsecamente sulista"; no entanto, a sua obra está pejada "de subtilezas raciais", que não são óbvias porque "estão muito ligadas ao quotidiano".
Nestas mulheres, diz, "há uma atenção às formas como o poder se manifesta no quotidiano, no modo como uma empregada abana o leque da senhora. É aí que vemos a força poderosíssima das hierarquias. São universos que as mulheres conhecem muito de perto".
Não vale a pena, no entanto, ser absolutista: a violência também existe nelas - e em O'Connor isso é notório. Mas, apenas para dar um exemplo, num conto de Welty fala-se de um "serial killer" apenas de passagem, num diálogo no cabeleireiro. E noutro conto a II Guerra Mundial é apenas abordada por uma alusão a bandeiras. Margarida Vale do Gato: "É possível que tivesse havido uma certa vontade das mulheres de fugir a esse universo de criminalidade e vitimização" que caracterizava a escrita masculina. Os ditos "temas sérios" estão lá, mas de forma lateral. Porque à frente, como realçam as nossas interlocutoras, está o quotidiano.
Se nos for permitida a generalização, podemos afiançar que elas tinham questões em comum: abordavam a questão de género (ser mulher), de pele (a presença do negro, do "outro"), da violência e da religião, mas "não apresentavam esses aspectos de forma tão crua como aparecem no Faulkner ou no Capote" (Teresa Cid). "A questão da pele", diz a professora, "está presente no quotidiano, sem que pareça ser importante - mas no momento em que há uma mínima ruptura com a ordem natural das coisas, a questão surge com violência". Exemplo (escolhido por nós): a forma como a menina de "Por Favor Não Matem a Cotovia" olha para a questão racial. (Demoraria demasiado tempo a explicar este passo. O nosso conselho: leiam esse magnífico livro.)
Elas "celebram as rotinas e cerimónias da vida diária feminina", diz Diana Almeida. "Fazem um levantamento desses detalhes". Se o quotidiano lhes interessa é porque esse é o universo que conhecem, aquele a que estavam confinadas - e que determina a forma da sua escrita: "Estas mulheres são essencialmente contistas: num dado momento do dia tinham tempo e conseguiam acabar uma obra. Tinham uma série de trabalhos domésticos que não lhes permitiam fazer o grande 'american novel'", diz Diana Almeida. "O cultivar desses géneros ia de encontro à condição da mulher: é mãe de família e por isso não pode fechar-se no seu quarto em transe, como o Faulkner. As tarefas relativas ao espaço do feminino podem ter induzido esse tipo de registo", aponta Teresa Cid. Para terem uma ideia: Kate Chopin só começou a escrever quando ficou viúva. E escrevia para viver.
Os temas também são determinados por essa condição. Como lembra Margarida Vale do Gato, "como elas não têm acesso ao universo da Guerra, centram-se no dia-a-dia, pelo que não temos a presença da epopeia mas da comunidade". Diana Almeida concorda: "A identidade feminina é construída em integração comunitária por oposição ao herói solitário". E realça que "nos romances de homens, as mulheres surgem como desgraçadas, condenadas" enquanto elas retiram "o carácter monstruoso [no sentido de potenciador da desgraça] da mulher".
Vale a pena assinalar que há excepções às regras e diferenças entre elas: Willa Cather e Chopin escrevem no virar do século XIX para o XX e têm bastos resquícios de escrita moderna. Cather só viveu dez anos no Sul, embora esse tempo tenha sido suficiente para se tornar sensível à questão "do outro" como as restantes escritoras mencionadas eram - só que em vez do negro abordava questões migratórias. Cather também teve ténues aproximações ao registo épico. Lee só escreveu uma obra, mas essa obra foi um romance - porém, como faz notar Teresa Alves, "um romance extenso não é o mesmo que um romance épico". E nem todas eram católicas, embora "fossem todas cristãs e a questão religiosa fosse comum a todas porque o Sul era uma zona entricheirada" (Teresa Cid).
Os olhos de hoje
O que acontece, se olharmos para estas mulheres com olhos de hoje? Parecer-nos-ão ingénuas? As nossas quatro interlocutoras são unânimes em aclamar-lhes a actualidade. Margarida Vale do Gato vê-as como "mulheres de corpo inteiro". E se a condição feminina (que abordavam) se alterou, a arte está no detalhe e "os pormenores" (expressão de Teresa Alves), as ínfimas subtilezas destas escritoras salvam-nas de se perderem em literatura de época.
Têm ainda outros méritos, como os de "a escrita [versar] aquilo que é escondido e é essencial", diz Teresa Alves. E, como diz Cid, desmistificaram duas ideias de Sul: a que Faulkner criou, e aquela que era vigente no seu dia a dia, a de um Sul "de senhores respeitáveis e raparigas loiras a cheirar a magnólias". Mudaram a nossa visão clássica da natureza como inimiga. Trouxeram um "humor subversivo" que ainda nos deleita, como lembra Diana Almeida, que acrescenta que elas "escreveram sobre protagonistas femininas que não queriam obrigatoriamente casar e ter filhos", o que não é "avant la lettre", é a lettre dos dias de hoje.
Mas, talvez mais importante que tudo isto, diz Teresa Cid, "elas têm ainda mais interesse hoje, porque falam da diferença, e hoje vivemos num mundo em que convivemos com raças diferentes sem necessariamente as conhecer".
"Quando procuramos a capa que se esconde debaixo da normalidade aprendemos a conhecer melhor o mundo", acrescenta Teresa Alves. E isso, dizem todas, ainda pode ser conseguido nos livros destas mulheres que não são só do Sul, são património de quem quer que queira aprender a andar sustentado apenas nas patas traseiras.