Em 1998, não por acaso na mesma altura da Expo, a Praça do Comércio encheu-se de esculturas do artista colombiano Fernando Botero. Na época, asseguraram-nos que duas ficariam em Lisboa, das quais uma Maternidade, a mais votada por público e turistas que frequentavam o local, acabaria por ser oferecida pelo empresário Stanley Ho e colocada no Jardim Amália, no topo norte do Parque Eduardo VII. Ainda lá continua, talvez sujeita ao mesmo grau de abandono a que esse espaço verde tem sido votado.
Como é evidente, Stanley Ho tinha todo o direito de oferecer uma escultura a Lisboa, tanto mais que tinha interesses económicos na capital (viria a inaugurar um casino em 2006). Arte e poder, afinal, sempre andaram de mãos dadas. A cultura dá boa imagem aos governos, e os governos, em troca, financiam-na. Nada mudou, neste aspecto, desde o Renascimento de Florença ou do Barroco de Roma. Mas esse poder também se preocupou sempre, através de conselheiros e, hoje em dia, curadores com nome no meio, em captar a colaboração de artistas de qualidade reconhecida.
O que não se compreendia na altura era como é que Fernando Botero, um pintor agora feito escultor, de larga divulgação internacional mas de escassíssimo consenso no meio artístico contemporâneo, tinha conseguido fazer uma exposição num dos locais públicos de maior prestígio na capital. Nunca esse assunto ficou esclarecido. O lisboeta médio, que liga pouco a estas coisas e prefere passar o fim-de-semana numa esplanada ou num centro comercial, encolheu os ombros perante o óbvio: a exposição terminaria eventualmente, as esculturas ficariam colocadas num local onde ele não as veria, e a imposição de um critério de gosto por parte dos organizadores da mostra seria uma falha apenas temporária.
A obra de Botero, com efeito, não se presta a voos de qualidade. Vive sobretudo da cristalização de um tipo de figuração popular - figuras rotundas e cheias, em cenas do quotidiano ou copiadas dos géneros instituídos pela Academia no século XVII - que recorda a pintura ingénua valorizada no século XX por artistas como a brasileira Tarsila do Amaral, que em 1925 integrou o movimento Pau-Brasil, e que depois, com a facilidade da cópia e o gosto do turista, se transformou numa espécie de imagem de marca da arte sul-americana mais comercial. Claro que, no caso de Botero, a obra só é ingénua na aparência: o artista estudou, mantém casa em Paris, e graças a um mercado ávido de exotismo e descrente da radicalidade das propostas contemporâneas, atinge cotações de milhões. É, no fundo, a ditatura das audiências aplicada à arte contemporânea: uma obra que supostamente vale pela cotação de mercado que tem, e não pela sua qualidade e pela sua exigência próprias.
Parece afinal que o poder, que precisa efectivamente de audiências para se manter, assenta nessa premissa, e toma o que é - obra pictórica conhecida internacionalmente - pelo que não é - obra pictórica de qualidade inquestionável. Só assim se pode compreender a chegada desta Via Crucis ao Palácio da Ajuda, um local que é, simbólica e concretamente, o cartão de visita por excelência das salas de exposição estatais da capital. Integrada na visita oficial do presidente colombiano, abrilhantada com a presença do pintor, que festejava também o seu 80.º aniversário, e sem que saibamos se foi ideia do Governo da Colômbia ou do Palácio de Belém, ou se o aval que recebeu da Secretaria de Estado da Cultura foi entusiasta ou resignado, a Via Crucis está, para mal dos nossos olhos, numa das salas mais prestigiadas de Lisboa.
Em 2007, a propósito de uma série do artista sobre os prisioneiros de Abu Ghraib, o crítico norte-americano Arthur Danto referiu que a historiadora Rosalind Krauss tinha resumido o que "todos nós" pensávamos de Botero: "Patético". Danto gostou das pinturas que estava a ver. Mas esta Via Crucis coloca outras questões, a saber, as que relacionam forma e conteúdo na arte sacra contemporânea. As pinturas (completadas por uma série de desenhos que nada inovam em relação àquelas) retomam os 12 passos da Via Sacra da liturgia católica, que descreve a Paixão de Cristo e que pontua uma oração específica feita antes da Páscoa. Dentro deste contexto, são a memória de um sofrimento que será vencido. Fora dele, apenas o retrato de um martírio horrível e incompreensível.
Botero, como seria de esperar, retoma a iconografia popular e sangrenta do tema, acrescentando-lhe as figuras gordas que prefere e algumas metáforas estafadas sobre o assunto. Os soldados romanos, por exemplo, podem surgir aqui e ali com os traços de militares actuais ou de bandidos conhecidos, e a populaça que acompanha o caminho de Cristo é decididamente contemporânea. Fora disso, não existe um rasgo de capacidade simbólica em tudo o que vemos. Há, é certo, uma carnalidade acentuada pelo excesso (em tamanho e escala) das figuras principais da cena, uma carnalidade que é herdada do Barroco - e sabe-se como este estilo, que se deu por função primeira a propaganda da fé católica em tempos de contra-reforma, foi importante em toda a América do Sul. Mas nenhuma destas imagens tem a capacidade de transcender essa carne que transborda por todos os lados. Existe matéria, mas o espírito, o numen que devia estar também presente, prima pela ausência. Será que alguém consegue rezar perante estes quadros?
Não é Caravaggio quem quer, nem se consegue fazer a Santa Teresa de Bernini só com boas intenções e alguma habilidade. Aqui, e mesmo que se tente tratar bem as visitas que, quem sabe, até talvez venham a comprar a TAP, os resultados foram outros: uma galeria de bonecos sem sentido que desmerecem o palácio da Ajuda. E o público que os visita.