Escondidos em vários espaços da casa de Lourdes Castro, na Madeira, há pequenos recipientes onde plantas crescem, longe dos nossos olhos, na escuridão. Lourdes vai abrindo portas de armários e procurando nesses cantos silenciosos para mostrar, diante da câmara da realizadora Catarina Mourão, como, enquanto andávamos distraídos, as raízes dos bolbos se estenderam e formam agora um emaranhado de elegantes fios brancos.
"Tem que ter assim mais ou menos cinco centímetros antes de vir para o ar. Agora ainda está às escuras. Às escuras é que se trabalha. E em silêncio", diz Lourdes. "É como todos nós, há um trabalho que a gente faz na escuridão, que ninguém vê, e esse trabalho é a germinação do que depois se dá a ver".
Foi assim também com este filme, "Pelas Sombras", que se estreia amanhã em Serralves (há sessões às 12h e às 18h, e depois permanece em exibição até 13 de Junho em horário especial disponível no site da Fundação). Catarina Mourão percebeu desde cedo que "era preciso tempo". Foi em 1997, ainda antes de ter feito "A Dama de Chandor" (1998), que visitou pela primeira vez Lourdes na Madeira. Tinha visto na Gulbenkian a retrospectiva "Para Além da Sombra", sobretudo tinha-lhe ficado na memória uma peça do "Teatro de Sombras", de Lourdes e Manuel Zimbro, que vira quando tinha 14 ou 15 anos no Centro de Arte Moderna (CAM).
"Essa peça marcou-me. Talvez por ser uma coisa tão simples, o dia-a-dia de uma mulher. E talvez isso tenha a ver com o cinema que faço, a importância do quotidiano, dos gestos, dos rituais prosaicos que, no fundo, são a nossa vida", explica. Filipe Alarcão, namorado de Catarina, já conhecia Lourdes e isso terá facilitado o contacto. Mas a realizadora decidiu, para primeira conversa, escrever uma longa carta a Lourdes. Depois houve um telefonema (esta é muito mais uma história de cartas, de Lisboa para a Madeira, da Madeira para Lisboa), e uma visita.
Os anos foram passando e o projecto foi crescendo na escuridão. Estava a amadurecer na cabeça de ambas, mas ainda nem começara. No início Manuel Zimbro ainda era vivo, e o filme seria com Lourdes, Manuel e a casa dos dois na Madeira - não faria sentido separá-los, os três eram uma história só. Mas Manuel morreu em 2003 e Catarina esperou para perceber se Lourdes queria que ela avançasse com o filme.
Em 2005 começaram a filmar algumas cenas, conversas entre as duas sobre o que poderia ser o filme (dois anos antes Filipe Alarcão tinha filmado a montagem da exposição "Sombras Projectadas", em Serralves, já com o som feito por Armanda Carvalho que acompanhou todo o projecto). "A minha ideia", conta Catarina, "era um filme muito centrado na casa e no jardim. Tinha pensado que seria interessante acompanhá-la numa ida a Paris, porque há muitos anos que ela não ia lá. E tinha outra ideia, um bocado louca, de ir com ela a Copenhaga para ver um quadro, 'Melancolia', de Lucas Cranach, pelo qual ela tem um fascínio. Foi sempre uma coisa que ficou 'vamos ver o Cranach juntas'".
O momento é tudo
O filme acabou por se centrar na casa. Era também isso que mais interessava a Lourdes (que Catarina colocou como co-autora, porque embora o ponto de vista seja o da realizadora sobre a vivência da artista, o envolvimento desta justifica que assim seja). "Interessava-lhe sobretudo o quotidiano". A razão veio a revelar-se ao longo das filmagens - e para nós, quando vemos o filme, surge também como uma revelação: "A minha pintura é esta", diz Lourdes, referindo-se ao espaço à sua volta. "Não a posso transportar. Ela nem quereria mudar de sítio".
Perguntam-lhe muitas vezes que trabalho tem produzido nas últimas décadas. E aqui, neste filme, ela responde: é isto. A casa, o jardim, as plantas, as que estão à luz e as que crescem na escuridão, os "Álbuns de Família", 34 livros em que desde os anos 60 reúne tudo o que tem a ver com as sombras, a água, as folhas, a roupa a rodar dentro da máquina e depois a secar ao sol, os gestos do quotidiano. É isto. Não era preciso irem a Paris ou a Copenhaga.
Este é também um filme sobre o tempo. Mas não sobre o passado. Lourdes Castro não vive do passado. "O que é incrível nela é que é uma pessoa que realmente vive o presente. Muitos de nós vivemos muito o futuro. Ela está a gozar o presente. Quando diz que 'o importante é o respirar' o que quer dizer é que é preciso que tudo o que fazes, desde a coisa mais simples como pôr a mesa, cozinhar, regar, seja feito com um tempo que permita tirar partido do momento".
Passado, presente e futuro são aqui algo orgânico. Aparecem quando faz sentido, interceptam-se, entrelaçam-se, entranham-se. "Se lhe pedir para falar do 'Herbário' [o trabalho 'Grande Herbário das Sombras', 1972] assim, descontextualizado, é difícil. Mas cada gesto que faz, seja mondar, regar, cortar legumes, está relacionado com alguma coisa do trabalho dela, seja o 'Herbário', seja um recorte de um 'Álbum de Família'. Tudo tem que ser integrado de uma maneira muito natural no presente".
A certa altura Lourdes faz para a câmara um pequeno teatro de sombras com um regador verde. "À medida que ia filmando o quotidiano dela na casa, cada vez mais o 'Teatro de Sombras' se tornava importante no filme. É a obra da qual ela se sente mais próxima hoje", acredita Catarina. "É a que está mais perto desta ideia de arte como algo efémero, muito relacionado com a vida".
O enorme arquivo em que guarda tudo, dos "Álbuns de Família" aos convites e cartas dos amigos, e que a rodeia no seu espaço de trabalho, é também como as plantas que germinam na escuridão. "Tem a ver com a ideia de guardar as coisas. Nada é desperdiçado naquela casa, uma gota de água não é desperdiçada, vai para regar uma planta. A mesma coisa com um recorte, uma carta que chega, um convite. Ela está sempre a alimentar o arquivo, e ele alimenta-a a ela. Não é uma coisa estática. Há uma reciprocidade".
Foi desse arquivo, de caixas antigas, que saíram as fotografias do avô de Lourdes, da família no tempo em que moravam na Praia Formosa e em que a mãe era uma menina de vestido branco a brincar com bonecas (fotos que Lourdes editou em 2009 com a Assírio e Alvim). "O arquivo é um espaço de escuridão e silêncio mas onde as coisas estão a acontecer", explica Catarina. "Lá porque há terra a cobrir as coisas não significa que elas não estejam vivas por baixo. E de repente ela tira-as da escuridão, devolve-as à luz, e as fotografias do avô ganham vida".
Lourdes não fala muito sobre Manuel Zimbro, excepto quando está a falar sobre o "Teatro de Sombras" que os dois fizeram juntos. "O Manuel... é como se ele estivesse lá", diz Catarina. "Não se está sempre a falar de uma pessoa que está aqui. Aquelas pedras que aparecem [todas pintadas com pequenas frases: 'Importantíssimo', 'Faltam quatro horas para a meia-noite', 'eu'] são o Manuel".
E ainda a pedra que, para Catarina, resume aquilo que o filme quer mostrar. "Aqui está tudo", lê-se na letra cuidadosamente desenhada.
Lourdes dirá a mesma coisa, de outra maneira. Aos que perguntam em que é que ela tem estado a trabalhar, responde simplesmente: "Vem ver a pintura que estou a fazer. Um bocado grande, não cabe em museu nenhum. E tão pequenina que todos os que passam por aqui nem dão por isso [...] Continuo a pintar. Um quadro. Um só. E nunca estará pronto".