Já devem ter notado: nos últimos tempos voltou a falar-se em shoegaze. Não com um sorriso nos lábios, que seria impróprio a respeito de tão melancólica gente, mas com respeito, prazer e, no caso de quem viveu a época, alguma nostalgia. Ah, as melodias etéreas, os pedais de efeitos, a barulheira, as vozes sussurradas por entre a muralha de guitarras!
Mas se calhar “é bom lembrar”, diz-nos Neil Halstead em conversa por e-mail, que “à época shoegaze foi um termo pejorativo usado pela imprensa musical” contra as bandas que praticavam o género. Halstead é, para todos os efeitos, o líder dos Slowdive, que na altura foram pontas-de-lança do movimento — ou, vá, o 10 que jogava atrás dos verdadeiros pontas-de-lança, os My Bloody Valentine. Foi com estes que começou a mania de tocar a olhar para os sapatos que caracterizou o movimento e era alvo de ataques de quem esperava que uma banda — rock ou pop — desse espectáculo e saltasse muito.
Quem tem saltado muito são os fãs dos Slowdive, mas de alegria: 19 anos depois de Pygmalion, o terceiro e último álbum, a banda, inesperadamente, resolveu reerguer-se das cinzas e para provar que está bem vivo hoje actua no NOS Primavera Sound, no Porto. O tempo foi simpático para os Slowdive: hoje ninguém reclamará se eles olharem para os sapatos enquanto tocarem a obra-prima Souvlaki, de 1993.
Mas por que raio é que uma música em que é difícil perceber as melodias por entre o ruído das guitarras, e que não tem refrões óbvios, vive 20 anos depois? Impossível dizer. Talvez a culpa seja dos My Bloody Valentine, ou dos Cocteau Twins, ou dos Jesus and Mary Chain, que precederam o movimento e estabeleceram a fórmula citada no início do parágrafo. O que sabemos é que no início da década de 1990 uma data de bandas — como os Slowdive, os Ride, os Chapterhouse, as Lush, os Pale Saints — fizeram óptimos discos soterrados em pedais de efeitos. E, sim, pode falar-se de um movimento.
Os Slowdive vinham de Reading e eram “amigos da rapaziada dos Chapterhouse”, conta Halstead. “Ouvíamos música juntos, tocámos juntos, conseguimos contratos ao mesmo tempo, pelo que tínhamos uma espécie de irmandade com eles”. Mas não só: “Os Ride viviam na mesma rua que nós, e também éramos próximos deles.”
Pode pensar-se que, fazendo música que na altura era tão estranha, eles queriam libertar-se do rock’n’roll que se fazia à época, mas não: “Na altura nem rock havia, só pop genérica criada para as tabelas de vendas. Ah, e havia o acid house. Não, o que nós queríamos era explorar as fronteiras da música de guitarras, experimentar o mais possível.”
Tinham em comum uma colecção de vinis: “As nossas influências eram as mesmas: de Beatles, Pink Floyd, Byrds e Velvet Underground até aos Sonic Youth, Mudhoney, Husker Du, The Jesus and Mary Chain, Dinosaur Jr, Coucteau Twins, The Cure, My Bloody Valentine e uma data de outras coisas como os Can, ou o Eno a solo e as colecções Nuggets dos anos 60.” Resumidamente: “Música psicadélica barulhenta, com boas melodias. O extremo mais estranho do espectro musical. Música zangada, como a garage music, e muitas texturas ambientais. Era isto.”
Com efeitos, sem efeitos
Isto serviu, no caso dos Slowdive, para três discos: Just For a Day (1991), Souvlaki (1993) e Pygmalion (1995). Mas, com todo o respeito, é Souvlaki que brilha mais alto, é Souvlaki o disco em que “A Fórmula” encontra o seu ponto óptimo de equilíbrio entre ruído e melodia.
Caso caricato, Halstead podia muito bem estar a reavivar não uma, mas duas bandas: em 1995, vários membros dos Slowdive deixaram a banda e ele e Rachel Goswell (a maravilhosa voz feminina que se ouve nos discos) fundaram os Mojave 3. Tal como o nome indica, era música que tinha como imaginário a América — na prática é quase-country, e da boa, com laivos nítidos dos Cowboy Junkies. Halstead diz que a razão para ter ido nesse caminho é muito simples: “A música que fazíamos nos Slowdive estava soterrada em efeitos de pedais; eu queria aprender a compor uma canção que se aguentasse sem efeitos. E o country pareceu-me perfeito para isso.”
Erro nosso: não se podiam reavivar os Mojave 3 porque “tecnicamente” estes nunca acabaram, segundo Halstead. “Ocasionalmente ainda damos concertos, mas não fazemos nenhum album há uns anos — bem, muitos anos”. Oito, para sermos precisos. De Ask Me Tommorrow (1995) a Puzzles Like You (2006) foram cinco disco repletos de pérolas. E também há delas na obra a solo de Halstead, composta por três disco de pendor folk — o último dos quais, Palindrome Hunches, vale mesmo muito a pena. Valha a verdade, Halstead é dos mais subvalorizados compositores dos nossos dias.
“Na minha cabeça, os Mojave 3 vão fazer outro disco, mas não será para já”, conta-nos. “A verdade é que as bandas têm de operar em torno das vidas reais dos músicos, e não só dos altos e baixos criativos”, diz, como forma de explicar o porquê do retorno dos Slowdive e não dos Mojave 3 (que, recordamos, nunca acabaram).
Halstead confessa que não deu por revivalismo nenhum do shoegaze. No caso dos Slowdive, diz, “há um ano começou a haver conversas” acerca de voltar a gravar — “mas o que acabou por acontecer foi fazerem-nos propostas para concertos”. Os membros da banda mantiveram-se “sempre em contacto, umas vezes mais intenso, outras menos”, pelo que, confessa, “a data de retorno é completamente aleatória”: “Deu-se simplesmente o caso de neste momento estarmos todos abertos à ideia. Há dez ou há dois anos não era assim.”
Halstead não reouviu os discos dos Slowdive até há pouco tempo. “Só o fiz agora, para perceber como tocar aquilo. É muito difícil ouvires a tua própria música sem pensares: ‘Merda, podia ter feito isto de maneira diferente.’ Mas a música é um retrato de onde estás num determinado momento, para o melhor e para o pior, e de repente há temas em que te admiras ‘Raios, como é que eu fiz isto?’, e nesses casos é muito porreiro voltar a ouvir o que fizeste.”
A razão pela qual a malta do shoegaze olhava para o chão — além de uma certa timidez — era ter de atentar na miríade de pedais de efeitos que estavam à sua frente e que eram essenciais para o som que fazia. No ano da graça de 2014, os Slowdive podem manter a cabeça bem levantada: fizeram duas dezenas de grandes canções que aguentaram 20 anos. E vão fazer mais, garante Halstead. Que os deuses impeçam a chuva de condená-los à morte por electrocussão, hoje, no Porto.
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