A idade maior

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Nos estúdios da Valentim de Carvalho Rita Redshoes trabalhou com os produtores Gui Amabis e Nelson Carvalho. Mas Life Is a Second of Love começou, em parte, a definir-se muito longe de Paço d’Arcos: numas férias no Senegal Miguel Manso

“Consegui que ela soasse a uma miúda rija”, disse ele. Quando Lee Hazlewood foi apanhado de surpresa pela “encomenda” de inventar uma nova identidade musical para a filha de Frank Sinatra, o molde que construiu na sua cabeça era tudo menos cerimonioso. Não o formulou desta maneira ao pai da jovem Nancy, mas ao baixar a voz da cantora em dois tons, limpando um registo agudo de criança em estado de exaltação, aquilo a que Hazlewood alegadamente queria responder era à imagem de uma Nancy que cantasse como uma rapariga de 16 anos que ia para a cama com camionistas. A descrição recapitulada pelo compositor ao Telegraph em 2004 não terá encantado a senhorita Sinatra, mas não deixou de ser a motivação secreta para o génio de Lee Hazlewood lhe colocar a voz em canções tão curvilíneas e insinuantes quanto These Boots Are Made for Walking, Bang Bang (My Baby Shot Me Down) ou o dueto Some Velvet Morning.

Em sentido aparentemente contrário, Rita Redshoes fala de Hazlewood como o homem que “fez a Nancy Sinatra parecer cantar música de mulher”. “É curioso ela ter encontrado a voz dela através dele”, comenta. Aquilo que pode parecer contraditório – uma certa masculinização da cantora vs. uma feminização do autor –, são, no fundo, duas perspectivas coerentes sobre o mesmo assunto. A transformação foi de uma cantora desprotegida, vinda de um inocente mundo de pré-púbere, numa mulher impositiva, sem necessidade de sombras protectoras, autónoma e dona das suas acções. O espelho relativamente a Rita Redshoes é, neste caso, duplo. Não se trata apenas daquele tom pop/country/easy listening lustroso de Hazlewood/Sinatra a emergir magnificamente de No Matter What, canção arrepiante de tão perfeita, elegante e fora deste tempo, mas também o facto de Life Is a Second of Love, o seu terceiro álbum a solo, varrer quase em absoluto tudo aquilo que eram migalhas de infância e de um imaginário fantasioso e feérico que povoavam as suas canções até aqui – e herdado já dos tempos adolescentes dos Atomic Bees.

Essa raspagem de um catálogo sonoro infantil – marcado por um excesso que, nos momentos mais perigosos, poderia eventualmente degenerar num certo histerismo sonoro –, faz-se notar com especial deslumbramento quando No Matter What suspende a proximidade do tom maravilhosamente fake de Hazlewood (do cowboy sueco ao bigode, tudo parecia uma patranha da melhor espécie) e surpreende com um refrão feito de uma beleza crua, sem artifícios – algo atribuível, talvez, a uma audição maciça de Joni Mitchell –, como se a canção avançasse sempre num movimento pendular, alternando entre a encenação de uma postura firme e sólida, e o desabamento dessa imagem para dar lugar à mais tocante e desamparada exibição emocional. No Matter What é a grande obra-prima de Life Is a Second of Love e uma canção desarmante como poucas, levando a cravar as mãos na cadeira não vão faltar as forças de cada vez que o refrão, delicadamente, pede licença para entrar. Nos estúdios da Valentim de Carvalho, acompanhada pelos produtores Gui Amabis e Nelson Carvalho (assistente), esse trabalho de refinamento é notório. Amabis ajuda Rita Redshoes a encontrar o tom certo, polindo a frase do refrão até ficar mais curta, menos volteada, com a intensidade certa. A cada nova volta, o efeito cresce, à medida que a frase se torna cada vez mais límpida e simples.

“Queres beleza na voz?”, pergunta Nelson Carvalho, sendo que a palavra “beleza” funciona como código para carregar ligeiramente no reverb. Rita diz que sim, mas, na verdade, já não era preciso.

Febres africanas

Longe, muito longe de Paço d’Arcos, Life Is a Second of Love começou, em parte, a definir-se numas férias no Senegal. Não pelo contacto estimulante e deslumbrado com uma cultura diferente ou por ter descoberto uma porta de entrada para as rumbas africanas ou sequer por se ter apaixonado perdidamente pela Orchestra Baobab ou por Cheik Lô. Mas antes porque, ao ser invadida por uma bactéria incógnita, Rita viu-se assaltada por uma febre altíssima, um estado de desidratação quase a atingir os 80% e a resvalar para uma zona turva em que os raros momentos de lucidez tinham de abrir caminho à força entre persistentes delírios febris. Num local remoto, afastada da capital Dakar, chegou ainda a receber a visita de “uma espécie de curandeiro senegalês que foi ao quarto de hotel, mas já não conseguia fazer grande coisa com os meios que tinha”. Foi nessa altura que foi enviada de urgência para uma clínica, à espera de ganhar forças suficientes para poder embarcar para Portugal, onde esteve depois mais dez dias hospitalizada. Mas não regressou sem trazer consigo um esboço de canção. “Lembro-me de entre o acordar e o não acordar da febre, cheia de dores, me virem à cabeça as palavras e a melodia Woman, Snake e pensar que não me podia esquecer daquilo. A única coisa que consegui foi escrever o refrão no telemóvel quando a febre baixou um bocadinho, mas não tinha sequer forças para gravar a melodia, estava KO.”

Sem surpresa, Woman, Snake é a canção mais enviesada do álbum de Rita Redshoes. Tem um peso misterioso e ritualístico, faz pensar o que seria de Fiona Apple a braços com a tarefa de cozinhar um tema à medida de James Bond. A sinuosidade sugerida pela cobra do título, parece activar a lembrança da noite passada em Rita Redshoes. De volta ao estúdio de Paço d’Arcos, avança para a gravação da composição, dizendo para a régie: “Ontem sonhei que o Nelson tinha posto umas paredes em curva até ao microfone – dizia que o som ia ficar melhor”.

A experiência assustadora vivida no Senegal, e cuja convalescença foi demorada, resultou, no entanto, em muito mais do que uma canção enleada numa estranheza tentadora chamada Woman, Snake. Após uma “crise de ansiedade terrível” que se seguiu à saída do hospital, Rita Redshoes refez a sua relação com a linha temporal, rindo-se da forma como a sua história parece formatada pelo cliché de que episódios que encurtam a distância para a morte produzem alterações obrigatórias em quem sobrevive. “Vivia muito noutro sítio, sempre”, admite. “Vivia muito num futuro ou num passado, tinha muita dificuldade em estar, tinha muita dificuldade em aceitar que as coisas mudam, era mais infantil.” Voltamos atrás, portanto, à eliminação consciente de pistas que a levavam para o conforto do passado mas também para um certo dramatismo no choque com um presente que lhe fugia ao controlo e ao desajuste entre o arquitectado na sua cabeça e o verificado à sua frente. “Esse meu lado sonhador era uma espécie de escudo, devido à minha incapacidade de aceitar a realidade. Apercebi-me que isso me fazia extremamente infeliz em muitas coisas e acabava por não viver profundamente. Agora não questiono tanto. Em vez de pensar demasiado, sinto mais”.

É aí que radica o nome da introdução que abre o álbum e de onde Rita retirou igualmente o título oficial para o disco. Life Is a Second of Love é, antes de mais, uma pacificação com a transitoriedade e a conquista de uma generosidade em causa própria. “Comecei a aceitar que vou bater com a cabeça muitas vezes, sei que vai ser assim, e que no entanto a vida vale a pena – às vezes tinha dúvidas disso”. Amainou a severidade que dirigia contra si e deixou de ser tão castigadora, de rotular de forma taxativa como insucessos (artísticos, por exemplo) quaisquer resultados que simplesmente não tivesse previsto. Como se qualquer desvio num cenário idealizado correspondesse a um falhanço. Por isso, para a gravação de Life Is a Second of Love tornou-se essencial delegar a produção em quem não pudesse controlar. Teve de se entregar e saber lidar com um produtor com o qual não tinha a mínima intimidade, e que ia estar a mexer sem luvas nas vísceras das canções daquele que Rita Redshoes diz ser, claramente, o seu álbum mais pessoal até hoje.

Vindo de Céu

Rita Redshoes não procurou um produtor em quem depositasse o controlo total sobre as suas canções. Não partiu à procura de um mentor que a moldasse a seu bel-prazer, como Nancy Sinatra nas mãos de Lee Hazlewood. “Como com os bons psiquiatras, acabamos por transferir os nossos sentimentos”, disse Nancy há dez anos ao site Nerve sobre a sua relação com Hazlewood. Não era exactamente essa a ideia da cantora portuguesa. “Achei que deveria ser uma pessoa virgem, no sentido de não saber o que eu tinha feito para trás, o espaço que ocupo ou não, alguém que se preocupasse com aquilo que queria dizer e transmitir”, desenha o perfil. “Embora não tivesse tanta noção na altura, instintivamente precisava de alguém que não fizesse parte da minha história para trás.” A par dessa relação impoluta com as canções que lhe fossem apresentadas, Rita Redshoes procurava também um produtor que soubesse gerir o silêncio – “algo que tenho dificuldade em fazer, apetece-me sempre pôr mais coisas”. No fundo, quanto menos instrumentos atrapalhassem as melodias vocais, mais descansada ficaria. E as canções tinham já tanto da sua autora enfiada lá dentro, em cada verso, em cada acorde, em cada melodia, que Rita receou estrafegá-las se continuasse a cercar as músicas com as suas ideias de arranjos e de produção.

O nome de Gui Amabis caiu-lhe então de Céu. Não do céu, das nuvens, de uma qualquer delegação do paraíso, mas da cantora brasileira Céu, que Amabis produzira e que Rita ouviu casualmente na rádio com a atenção de quem descobria uma pista essencial para o desfecho de um disco que não passava ainda de uma ideia vaga. Após um rápido levantamento do cadastro musical de Amabis, decidiu arriscar, ciente de que caso errasse na escolha o disco poderia ficar comprometido ou, pelo menos, ser irremediavelmente adiado. Um par de emails e o acordo foi fácil de alcançar: em Lisboa, Rita gravava o chão das canções, as harmonias de base e as melodias vocais; em São Paulo, Gui acrescentava guitarras, baixos e samples, e juntamente com os seus músicos ia montando uma paisagem sonora de acordo com coordenadas enviadas pela cantora. “Ouvi só duas músicas dos discos anteriores, ela não queria que me influenciasse por aquilo – foi uma semi-ordem”, conta o produtor. “A partir das coisas que ela gostava de ouvir e até um pouco da imagem dela isso inspirou-me a buscar este som.”

Daí que o primeiro passo tenha sido a partilha de uma playlist organizada por Rita na plafatorma Spotify para balizar as linhas-mestras que orientassem produtor e músicos do outro lado do Atlântico. “Tudo coisas mais antigas, desde a Laurie Anderson a Henry Mancini, passando por Nancy Sinatra e muitas referências dos anos 50 e 60”, explica a cantora, especialmente compatíveis com um produtor cujo gosto vive no intervalo 1940-1970 e só compra discos de vinil antigo. “O que tinham sempre em comum era o tipo de produção, os silêncios, os ritmos quebrados, coisas partidas que se consertam mais à frente e se quebram novamente, um lado de orquestra clássico, antigo, sem ser demasiado pomposo e tão arranjadinho como fizera no meu primeiro disco, em que tinha referências mais clássicas, séculos XVIII e XIX. Ouvindo a playlist acho que fazia sentido.” E terá feito sentido, certamente, porque apesar dos diferentes ambientes explorados, Life Is a Second of Love não cede nunca ao atafulhamento das canções, deixa-se tombar para os lados de Laurie Anderson (ritmo quebradiço, sopros indecisos) numa pérola chamada In This White Room e inventa um papel para a guitarra no universo de Rita Redshoes que a cantora nunca tinha imaginado até hoje.

A guitarra, aliás, seria a responsável pela única circunstância em que as visões de Gui e Rita pareceram chocar. No primeiro single, Broken Bond, o segundo refrão cala-se e entra em cena um solo que se diria tirado de uma pauta de Brian May (Queen). É um momento de sobressalto, de pequeno terramoto no mundo de uma pop que há quatro ou cinco parecia sempre perfeita, polida, quase celestial, pouco permeável a ser destabilizada por um detrito de hard rock. “Esse provavelmente foi o momento mais crítico do processo, em que entrei em estúdio com dúvidas se aquilo ia ficar ou não, depois habituei-me e foi uma chatice”, ri-se. Mas foi uma questão simbólica em todo o processo. Tendo encontrado uma outra família musical, com quem a comunicação era fácil e pacífica – ainda que à distância –, foi no solo de Broken Bondque Rita Redshoes teve de aceitar que recorrer à criatividade de alguém exterior passa, nalgumas ocasiões, por ter de encaixar primeiro e perceber depois como pode integrar essa “ingerência” na sua vida.

Rita Redshoes vai ainda mais longe e canta mesmo uma composição de Gui Amabis, Curve Dance Dreams, depois de ele lha mostrar e ela perceber que “era capaz de escrever uma canção tão triste” quanto aquela. Mas Life Is a Second of Love peneira e deixa mesmo de fora algumas das canções mais dramáticas que lhe saíram durante estes quatro anos desde Golden Era. Nalguns casos, foi o produtor brasileiro a responder-lhe ao tom sombrio do outro lado do computador – “Rita, não podes estar tão triste”. A limpeza foi tal que, durante um jantar já em Portugal, quando a autora lhe disse que havia uma letra a fazer-lhe “comichão”, escrita durante “um momento aflito” entretanto aplacado, o produtor soube logo que se tratava da fatalista Lord, Have Mercy on Me. Não vale a pena procurá-la no alinhamento do novo disco. Transformou-se em Broken Bond e agora até tem um solo de guitarra. Isto, deixar os dramas de lado e integrar as incertezas, no dicionário de Lee Hazlewood era bem capaz de signicar “uma miúda rija”.
 

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Rita Redshoes
Life Is a Second of Love
Universal Music
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