Não é fácil resumir uma vida, mas a de Ana Laíns pode sintetizar-se assim: nasceu em Tomar, em 1979, cantou o fado pela primeira vez em público em 1995 (tinha 16 anos), foi vencedora da Grande Noite do Fado em 1999, lançou o primeiro disco em 2006 ("Sentidos") e aparece com o segundo agora, em 2010 ("Quatro Caminhos"). Desta vez, Ana também quis resumir uma vida, a sua. E pôr no disco muito do que lhe diz respeito. Teve, tal como no primeiro, a ajuda do guitarrista Diogo Clemente, mas também de Amélia Muge, que assina três canções em 13.
"Foi uma aposta que podia ter corrido mal", diz Ana, "porque eles não se conheciam. Mas acabou por funcionar e o resultado final acaba por ter uma grande percentagem de 'culpa' quer da Amélia quer do Diogo. E foram os dois ao encontro daquilo que era essencial para mim, que era eu rever-me a cem por cento neste disco." Não foi fácil: "Foi complicado e estimulante. Complicado, porque superei todos os meus limites como intérprete. Tive alguma dificuldade em conseguir ser cinco ou seis pessoas num só dia, quase em simultâneo, porque os temas pediam interpretações diferentes, num apelo ao eclectismo que é talvez a minha grande mais-valia. Mas foi também estimulante, pela capacidade de me superar e tornar este disco tão meu, por todos os aspectos em que eu estive envolvida, o que não aconteceu no primeiro disco."
Esse eclectismo de que Ana Laíns fala já lhe trouxe dissabores. Certa noite, saiu de uma casa de fados desgostosa pela forma como a tinham tratado. E escreveu de um fôlego a letra de "Não sou nascida do fado" (que está neste disco): "E se eu não nasci do Fado/ Nem da Saudade de alguém/ Se o fado me foi negado/ Eu não nasci de ninguém."
Mas isso não a fez deixar as casas de fados. "Canto em várias, depende de quando é necessária a minha prestação de serviços." E há alturas em que é ela própria que sente necessidade dessa entrega. "O fado é e será, ao longo da minha vida, a minha maior questão pessoal. Porque se eu me identifico com o fado, com o que ele diz sobre nós, com a forma musical e poética que ele tem, ao mesmo tempo tem sido o meu calcanhar de Aquiles. É uma relação de amor-ódio."
Fora dessa relação está a sua participação no tema "Amazing Grace", de Boy George, a convite deste, no verão de 2009, "uma experiência bastante enriquecedora". Ana canta logo no início, e em português "Fui eu que fiz aquele bocadinho da letra, depois de ouvir a música até à exaustão." (está no YouTube, em "Amazing Grace, original mix").
Vitória pessoal
Mas "Quatro Caminhos" tem outras justificações: "O facto de o meu pai ter falecido sem conhecer o meu primeiro disco, e de eu já não ter a possibilidade de lhe dedicar toda a minha emoção, pesou muitíssimo. Depois, todas estas ambiguidades em relação ao fado tinham de estar patentes." Dos pais, Ana teve sempre apoio. A mãe também cantava quando era nova, como amadora, num coro em Ourém, e Ana diz que ela "é a típica mãe babada, que acha que a filha é a melhor do mundo." O pai, "militar de carreira, [que] nunca passou de sargento", teve uma atitude que a marcou muito. "Era o ser humano mais completo que eu conheci. Quando eu, com 17 anos, acabei o 12º ano e lhe disse que não estava certa de continuar a estudar porque gostava mesmo era de cantar, ele engoliu em seco, ficou com a lágrima no olho, mas disse que se era isso que eu queria, ele ajudava-me. Dois ou três dias depois viemos para Lisboa procurar um quarto para eu começar a bater às portas".
E as portas foram-se abrindo, em Portugal e no estrangeiro. Cá, nos últimos dez anos, ficou muito ligada ao Casino da Figueira, a que chama casa. Foi lá que conheceu o marido, o pianista Paulo Loureiro, e que estreou os seus discos, antes de os levar a outros palcos ("Quatro Caminhos" foi lançado no Instituto Franco-Português).
Mas o pai não chegou a ouvi-la cantar. "Da última vez que falámos sobre o meu primeiro disco, tivemos uma discussão brutal. Eu estava em casa a ouvir os temas em bruto, aquilo estava ainda muito mau, o meu pai abriu a porta muito desgostoso e disse: 'Então é essa porcaria que tu vais gravar?' Chorei tanto, de nervos, que disse para mim que ele não ia ouvir mais nada até ter o resultado final. E ele já não pôde ouvir." Teve um AVC, aos 52 anos. Uns escassos dez segundos. Ela estava na Madeira.
"A 'Parolagem da vida' [de Drummond de Andrade] é o tema que eu dedico ao meu pai. Não o escrevi na dedicatória, porque chega-me a mim saber, de mim para ele. Com todas as limitações que encontrei por não ter um caminho muito ortodoxo, há momentos em que me questiono se isto vale a pena. O que me mantém é sentir que ia defraudar a confiança do meu pai. Este disco tem também esse lado de vitória pessoal."