Viver abaixo das fantasias

Isabel Abreu faz um Flaubert, deus e réu, pleno de coragem e sensibilidade.

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Emma (Carla Maciel) com Léon (Isabel Abreu) José Frade
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Gustave Flaubert (Isabel Abreu) com o advogado de acusação, Pinard (Pedro Gil) José Frade
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Emma (Carla Maciel) com Léon (Isabel Abreu); advogado de acusação, Pinard (Pedro Gil) e advogado de defesa, Sénard (Gonçalo Waddington) José Frade
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Emma (Carla Maciel) e Charles Bovary (Tiago Rodrigues) José Frade

Esta adaptação de Madame Bovary tem a forma de um inquérito judicial, fictício, mas baseado no caso verídico do processo contra Flaubert pela publicação do célebre romance. O caso é apresentado perante a plateia como se o público fosse o juiz, num misto de biografia, simulação, teatro documental e ficção que vai enredando os espectadores na história original, no processo em tribunal, na vida de Flaubert e… na cena de um grupo de artistas de teatro nossos contemporâneos.

Os actores fazem as várias personagens de cada um destes dramas, mudando de nível com facilidade conforme se revela útil para contar a história. Ora são narradores, ora membros do tribunal, ora personagens do romance. Pedro Gil espalha classe e dignidade, como se mesmo perdendo as estribeiras tivesse a raison d’ État do seu lado; Isabel Abreu faz um Flaubert, deus e réu, pleno de coragem e sensibilidade; Tiago Rodrigues comove a plateia, ao despir-se de artifícios.

Parece que estamos num processo que começa por julgar Flaubert pela obra que escreveu, e que acaba a julgar Madame Bovary pelos crimes de adultério e endividamento que cometeu, mas afinal estamos num tribunal onde, às tantas, os advogados de acusação e defesa se beijam, loucos de desejo um pelo outro, à boca de cena, mesmo à frente de toda a gente, ou seja, afinal estamos num teatro que apresenta à vista de todos o que seria a febre de desejo erótico que, equivalente aos romances de Emma, escandalizasse a moral e bons costumes de hoje. Marinho e Pinto não gostaria de ver. Claro, esta plateia não se escandaliza, e bem pelo contrário, aplaude o beijo, seja entre pessoas do mesmo sexo ou não.

Madame Bovary está para os folhetins e novelas de amor como Dom Quixote para os romances de cavalaria: confundem os sonhos com a realidade. Aquilo que os condena, porém, é o que os salva. Os sofrimentos de Dom Quixote e o suicídio de Bovary redimem os seus pecados, ou pelo menos saldam boa parte da dívida. O ponto de vista de Cervantes, como o de Flaubert, sobre a sua personagem, é irónico, à primeira vista. A imortalidade das personagens, porém, vem da paixão com que agem e, em boa verdade, foram escritas. É entre a paixão e a ironia que ganham vida. Uma das proezas literárias de Flaubert foi conseguir juntar nas mesmas linhas estes dois pontos de vista, de tal modo que parece fazer todo o sentido a frase enigmática “Madame Bovary, c’est moi”, mesmo sabendo que a personagem se suicida.

O fogo da paixão ou, posto de outro modo, o carácter genuíno das escolhas de Emma, parecem purificar os seus pecados. Até o marido parece vingado, e o público consolado, graças ao ingénuo amor que mostra ter pela mulher.

Nesta versão, desmonta-se o enredo folhetinesco do romance, página atrás de página, para expor o mecanismo da obra. O jeito didático prevalece, mesmo quando lhe sobrevém a luxúria bovarista, escondida por baixo das capas, togas e becas do tribunal. A exposição do livro e a discussão dos seus méritos, incluindo a reconstituição de cenas perante um tribunal, pontuadas pelas cartas do próprio Flaubert, fazem a balança pender mais para o lado da ironia do que para o lado da paixão. A comédia do nosso tempo estará em não acreditar em nada?

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