A alimentação substitui o petróleo nas compras chinesas
O país mais populoso do mundo está a deparar-se com uma dura realidade: por cada tonelada adicional de trigo ou carne que o mundo produz, a China precisará de praticamente metade para conseguir alimentar os seus cidadãos. Reconhecendo que não consegue produzir internamente carne e trigo suficientes, empresas da China continental e de Hong Kong gastaram no ano passado 12,3 mil milhões de dólares (9 mil milhões de euros) em aquisições e investimentos em alimentos, bebidas ou agricultura no estrangeiro, segundo indicam os dados compilados pela Bloomberg.
Essas compras incluem a maior aquisição de uma empresa americana por parte da China, quando a Shuanghui International Holdings comprou a Smithfield Foods por 7 mil milhões de dólares, incluindo a sua dívida. É provável que venha a ser seguida de investimentos em carne de vaca, borrego ou cereais, de acordo com o National Australia Bank.
“Estes negócios estavam destinados a acontecer e até estou surpreendido por não terem acontecido mais cedo”, diz Paul Conway, vice-presidente da Cargill, uma das quatro empresas que dominam o comércio mundial de alimentos. “A China estará mais integrada no sistema global de produtos agrícolas do que alguma vez esteve.”
Ao longo do crescimento económico explosivo da China nas últimas décadas, tem sido hábito do Governo utilizar as empresas do Estado para liderar as aquisições de indústrias estratégicas. Foi isto que aconteceu com a segurança energética quando a PetroChina se lançou para uma década de compras em todo o mundo, gastando 40 mil milhões de dólares na área petrolífera.
O campeão chinês da segurança alimentar é o Cofco, que controla 90% das importações de trigo e que este ano fez duas aquisições. No espaço de dois meses comprou acções que lhe permitem controlar a holandesa Nidera Holdings e a empresa de agronegócio Noble, pagando 2,8 mil milhões.
Com o agronegócio da Noble, a Cofco conquistou silos de cereais na Argentina e fábricas de açúcar no Brasil, além de fábricas de processamento de sementes na China, Ucrânia e África do Sul. A compra da Nidera deu à Cofco uma plataforma forte para a produção de cereais no Brasil, Argentina e Europa Central, afirmou a empresa em Fevereiro. A Cofco será “um investidor poderoso na agricultura, capaz de produzir directamente em várias partes do mundo”, adianta um relatório da agência de notação Fitch de 3 de Abril.
Os números mostram porquê. A China tem 21% da população mundial, mas só 9% do seu território é zona arável, e tem uma percentagem ainda menor de água doce, segundo o Jefferies Group. O aumento dos rendimentos levou a um aumento da procura de alimentos ricos em proteínas, mas a oferta interna está próxima do limite, diz Abhijit Attavar, analista do Jefferies Group em Singapura, num relatório de 15 de Abril.
Não faltarão rivais à Cofco
As americanas Archer-Daniels-Midland, Bunge e Cargill, e a francesa Louis Dreyfus – conhecidas em conjunto como as A-B-C-Ds – controlam mais de 70% do comércio mundial de cereais, de acordo com a Continental Rice, sedeada em Tóquio.
A Japonesa Mitsui também vê uma grande oportunidade no mercado alimentar. Em 2007, a empresa de comércio construiu uma quinta e uma rede comercial de raiz, e conquistou activos nos cinco continentes. As empresas de comércio japonesas aventuraram-se em activos tão diversos como as plantações de soja no Brasil, os viveiros de camarão na Tailândia ou os silos de milho nos Estados Unidos. O maior comerciante petrolífero do mundo, o Vitol, decidiu expandir-se no ano passado para o comércio de cereais, criando uma sucursal em Singapura.
“O que temos vindo a assistir é que, impulsionadas por empresas estatais, as empresas privadas e as empresas de comércio de outros países estão todas à procura de uma forma de criar linhas de abastecimento que vão da Austrália à China, e também das Américas para a China”, comenta Patrick Vizzone, director regional da alimentação e agronegócio do National Australia Bank. Vizzone, que também tem assento na direcção da unidade China Agri-Industries da Cofco, diz que vê potencial para as aquisições chinesas nas indústrias de cereais, oleaginosas e nas carnes de carneiro e vaca.
Poderão haver outras opções, e ainda maiores.
Margarita Louis-Dreyfus, presidente da empresa que tem o seu apelido, diz que a unidade de produtos será reorganizada de forma a estar preparada para uma possível venda de acções ou uma oferta pública. Isso não acontecerá num futuro imediato, mas a empresa quer estar preparada.
A Cofco não comenta as suas aquisições, respondeu por telefone o gabinete de relações públicas da empresa, que pediu para não ser identificada. Yin jianhao, o porta-voz oficial da Cofco, não respondeu aos quatro telefonemas feitos para o seu telemóvel.
“A segurança alimentar tem de incluir importações, e sem o sistema global alimentar não funciona”, diz Franz Fischler, antigo comissário para a Agricultura da União Europeia. “A ideia de auto-suficiência é um medo quase arcaico e a China está a aperceber-se disso”.
A Cofco foi formada a partir de uma série de fusões de empresas estatais de alimentação e de pecuária durante a década de 1950, e é agora a maior empresa alimentar da China, com 60 mil funcionários. O presidente, Ning Gaoning, tem um mestrado na Universidade de Pittsburgh e é também o secretário do Partido Comunista na Cofco. Actualmente, a empresa gere os maiores armazéns de cereais da China e é proprietária de portos capazes de processar 100 milhões de toneladas de cereais por ano. Para além da alimentação, a Cofco detém propriedades comerciais e residenciais, resorts turísticos, hotéis e serviços financeiros que incluem serviços de corretagem, um banco regional e uma parceria de seguros com a Aviva, com sede em Londres.
“Muitas empresas estatais chinesas estão muitos desconfortáveis com a política de apostar no estrangeiro e em operar em ambientes com os quais não estão familiarizadas”, comenta Conway, da Cargill, referindo-se ao esforço chinês de investimento no estrangeiro. “A Cofco, pelo contrário, tem muitos dos seus altos quadros a viver e a trabalhar nos Estados Unidos e é muito internacional. É a empresa que vai lá para fora e faz aquisições.”
Exclusivo PÚBLICO/ Bloomberg News/Washington Post