Os 39 anos de “Juan, o Breve”
A Espanha modernizou-se com um rei que comeu o pão que Franco amassou.
Em 22 de Novembro de 1975, escassas 48 horas após a morte de Francisco Franco, Juan Carlos foi proclamado rei pelas Cortes de Espanha. No exílio, o líder comunista Santiago Carrillo traçou-lhe uma biografia: “Será Juan, O Breve.” Ontem, com 39 anos de reinado, Juan Carlos I anunciou que vai abdicar.
Carrillo estaria na Roménia de Ceausescu quando prognosticou que o herdeiro político de Francisco Franco duraria pouco no trono. A história foi então conhecida. Eram os tempos em que Juan Carlos constava do anedotário espanhol como cuchara, colher: porque não pinchava, picava, como o garfo; e não cortava, como a faca. Ou seja, não passava de um adereço. Um utensílio a que o ditador Franco recorreu para humilhar os monárquicos da oposição, a começar pelo pai do jovem, o conde de Barcelona exilado no Estoril. E para, num país governado sob a bota militar depois da vitória na Guerra Civil de 1936/39, não pôr uma farda na sucessão.
O mal-entendido do dirigente comunista com o monarca desfez-se. Entre densas nuvens de fumo dos cigarros de tabaco negro de Santiago e as manchas odorosas dos charutos do monarca. Emissários e mais emissários e, depois da legalização do PCE, reuniões após reuniões, criaram uma amizade à partida improvável. Carrillo e Juan cumprimentavam-se com abraços, enquanto o monarca com o socialista Felipe González trocava sorrisos de afecto mas um seco aperto de mão.
Uma das características do reinado do monarca foi a imprevisibilidade. Ninguém pensou que aquele miúdo de nove anos, chegado a Madrid vindo do Estoril, de olhar melancólico e sem sorriso, educado em colégios de elite de uma ditadura e nos corredores das academias militares, marcasse o reencontro da Espanha com a história. As fotos do então príncipe de Espanha envergando farda militar nos palanques oficiais atrás de Franco eram prenúncio de continuidade. Era isso que o ditador procurava, para desespero, a 650 quilómetros de distância, do conde de Barcelona.
Afinal, nem colher, nem garfo, ou faca. Juan Carlos foi bisturi. Encontrou no regime caduco quem queria a mudança para a Europa – Adolfo Suárez, os três ministros da Opus Dei, López Rodo, López Bravo e López de Letona, e sólidos interesses económicos. E foi assim que as Cortes franquistas se dissolveram no mais espantoso e, uma vez mais, inesperado arakiri da história política. Que os comunistas passaram de “rojos” a deputados, que a greve de luta passou a festa, que o biquíni deixou de ser multado.
A Espanha modernizou-se com um rei que comeu o pão que Franco amassou. Um monarca jovem, cosmopolita, mundano, por vezes demasiado mundano. Um homem do seu tempo. Bonacheirão e de gostos simples, afável e sensível, que os espanhóis preferiram de imediato. Foi assim que nasceu o “juancarlismo”: ser monárquico por Juan Carlos, não pela monarquia. O monarca também facilitou: impediu a ganga bajuladora da corte e manteve uma atitude frugal.
Contudo, os anos passaram. De pobre país, a Espanha passou a rico. De olvidado a estar sob os holofotes. A pressão social e as amizades estreitaram o cerco a um homem que era símbolo da Espanha. E que, mesmo nas recentes horas baixas, continuava a ser embaixador dos interesses do Made in Spain pelo mundo: esteve há pouco no Médio Oriente, com as casas reais dos Emirados, a vender a excelência da alta velocidade ferroviária.
A crise económica, as caçadas, as companhias femininas, os acidentes de lazer, as intervenções cirúrgicas empalideceram a sua estrela. A radicalidade política pôs em causa a sua estrela questionando a unidade de Espanha, a primeira das obrigações de qualquer monarca. Já ninguém se lembra de que abdicou do amor da sua juventude, Maria Gabriela, filha de Umberto de Itália, que conhecera no Estoril, por tripla imposição: a de Franco, que dizia ser Umberto maçon; a do conde de Barcelona, que alegava ser a jovem italiana aristocrata sem trono; a de Gabriela, que não queria ser rainha.
Os negócios do genro Iñaki debilitaram a imagem da coroa. Aconselharam mudanças. Consumiram os últimos meses de nefastas sondagens. Juan Carlos abdica pelo seu pé com um reinado de 39 anos. Nada breve. E muito consequente.