Marte aqui na Terra
A ExoMars é uma missão a Marte da Europa e da Rússia, que irá procurar vida no planeta vermelho. A parte principal da missão é pôr um robô em solo marciano – e o cientista português Nuno Silva é quem chefia a equipa que desenvolve o piloto-automático desta máquina.
Este Terreno de Marte, como se chama, de 30 metros de comprimento por 13 de largura, inaugurado em Março nas instalações da empresa Airbus Defence and Space, em Stevenage, está a ser percorrido por três protótipos do futuro robô europeu: os veículos Bridget, Bruno e Bryan. O objectivo é não deixar nada ao acaso na futura missão a Marte: a ExoMars, uma viagem conjunta entre a Agência Espacial Europeia (ESA) e a Roscosmos, a agência espacial da Rússia, e que está estimada em 1200 milhões de euros.
Nem a Europa nem a Rússia alguma vez chegaram com sucesso à superfície de Marte, ou não fosse este planeta um cemitério de sondas (uma das razões deve-se à sua atmosfera pouco densa, pelo que a resistência do ar que ajuda a travar a velocidade das sondas é menor).
O Beagle 2, um módulo britânico levado à boleia pela sonda Mars Express, da ESA, estatelou-se lá em baixo em 2003. E o mesmo aconteceu às tentativas da ex-União Soviética, que até foi o primeiro país a tentar pôr uma sonda em solo marciano, a Mars 2, em 1971. Só que se despenhou. Apenas os Estados Unidos, a começar com as duas sondas Viking em 1976 e a acabar com o robô Curiosity em 2012, foram bem sucedidos.
Composta por duas partes, a ExoMars começará com o lançamento em 2016 de uma sonda que se manterá em órbita de Marte, servindo para estabelecer as comunicações entre a Terra e os aparelhos que a missão enviará para a superfície do planeta, em 2016 e 2019. Essa sonda, a Trace Gas Orbiter, também servirá para estudar os gases na atmosfera do planeta, como o metano, que pode ter origem biológica. Por último, a sonda transportará um módulo de demonstração – o Schiaparelli – que irá até ao solo marciano, ainda em 2016. “Será um módulo de aterragem pequeno e terá alguns equipamentos científicos, que durarão cerca de dois dias. O objectivo é mais político: a Europa quer demonstrar que sabe aterrar em Marte”, diz Nuno Silva.
Em 2018, avançará a segunda parte da ExoMars, com o lançamento do módulo de aterragem que levará o robô (de seis rodas) para Marte, e que lá chegará Janeiro de 2019. O desenvolvimento deste módulo está agora a cargo da Rússia, substituindo os Estados Unidos nesta parte da missão. “Os russos também querem demonstrar que sabem aterrar em Marte. Até agora não conseguiram.”
É de dentro do módulo de aterragem russo que depois sairá por umas rampas o rover da Europa, o elemento principal da ExoMars. Sozinho, de forma autónoma, será capaz de percorrer até 100 metros por dia e funcionará a energia solar. Os segredos que Marte guarda sobre a vida no planeta estarão à sua espera. Chegou mesmo a existir? Ou ainda existe?
Nuno Silva, de 35 anos, é responsável pela equipa de oito investigadores que desenvolve a navegação autónoma do robô na Airbus Defence and Space, desde o software até ao equipamento, incluindo as suas câmaras de navegação e localização, e explica a razão de ser do terreno marciano aqui na Terra. “Estamos a desenvolver o piloto-automático do rover. Isso permitirá que seja comandado desde a Terra. Em Marte, ele fará tudo sozinho, evitando obstáculos. Para testar isso, temos um simulador. Mas os simuladores não estão completamente isentos de riscos: pode haver coisas que não estamos a modelizar e que são importantes, e algumas são bastante difíceis de modelizar.”
É pois para isto que estão agora a servir a Bridget, o Bruno e o Bryan, já usados antes como modelos de locomoção do futuro robô. Tanto quanto sabe Nuno Silva, o terreno marciano onde andam é o maior espaço coberto na Europa para testar rovers, robôs com rodas. A experiência tinha de ser sem chuva, porque em Marte não chove. “Com solo molhado, os testes são inválidos”, esclarece. A sua equipa é que decidiu as características do terreno, que custou cerca de 500 mil euros.
Depois de ter estudado Engenharia Aeroespacial no Instituto Superior Técnico, o programa Erasmus levou em 2000 Nuno Silva a Toulouse (França), até à Escola Nacional Superior de Aeronáutica e do Espaço, seguindo-se um estágio em 2001 na Airbus Defence and Space na zona de Paris, onde continuou até ao final de 2007 (trabalhou no foguetão Ariane 5 e no Veículo Automático de Transferência, o cargueiro que abastece a Estação Espacial Internacional). No início de 2008 foi para Stevenage desenvolver a navegação autónoma do robô da ExoMars, máquina cuja construção está a cargo da Airbus Defence and Space (por uma equipa de 80 pessoas), enquanto a empresa Thales Alenia Spazio é a responsável geral do projecto ExoMars para a ESA, incluindo os instrumentos científicos.
Utilizada na construção civil, em particular em campos de ténis, a areia do Terreno de Marte foi escolhida com todo o cuidado. “Temos de ter uma areia que na Terra, com a gravidade da Terra, se comporte como uma areia de Marte com a gravidade de Marte”, explica o investigador, dizendo ainda que a gravidade da Terra é três vezes superior à de Marte. Por esta razão, a areia no nosso planeta está três vezes mais comprimida, o que influencia o comportamento do rover.
“A areia tem aproximadamente o mesmo tipo de grãos que existe em Marte: o diâmetro é o mesmo e a composição química é parecida. Os grãos de areia dão a mesma tracção do que os grãos de areia dão em Marte. E o mais importante para nós: a cor é a mesma.”
Para planear um caminho do robô e descobrir qual é a sua posição e orientação em Marte, os cientistas vão utilizar câmaras destinadas a captar o ambiente visual. “O rover usa imagens para fazer estas duas funções – planear um caminho e descobrir a posição e orientação –, por isso o que vê tem de ser muito parecido com o que se vê em Marte. A cor faz parte disso.”
Outro aspecto relevante no desenvolvimento do sistema de navegação autónoma do robô são as rochas que pode encontrar pelo caminho e a sua capacidade de subir as mais pequenas, até 25 centímetros de altura, e de evitar as maiores. “O rover é capaz de subir as rochas mais pequenas e evitar automaticamente as que não consegue subir, para não se danificar.” A inclinação do terreno também é importante: “Se for muito inclinado, o rover não o consegue subir e poderá ficar enterrado na areia”, explica Nuno Silva.
Furos inéditos de dois metros
O Terreno de Marte prolonga a paisagem marciana com fotografias do planeta vermelho na parede, que nos mostram uma aridez acastanhada, manchada aqui e ali por rochas mais escuras. Estas fotografias, admite Nuno Silva, destinam-se mais aos visitantes do espaço do que aos próprios cientistas. “É mais para impressionar o público.”
O acastanhado da paisagem marciana na parede foi escolhido de propósito, para que a sua tonalidade se situasse entre a cor do terreno e a do céu. Então, de que cor veríamos o céu de Marte se lá pudéssemos estar neste instante? “A cor do céu varia entre amarelo claro e amarelo-torrado, por causa das próprias poeiras no ar. Quando há menos poeiras no ar, é um amarelo esbranquiçado”, responde.
Já a temperatura fica de fora das simulações no terreno em Stevenage e também há uma razão muito prática. “Marte pode ser muito frio e ter 120 graus negativos à noite”, refere o investigador. “Mas este terreno é para testar com pessoas, que geralmente não sobrevivem a 120 graus negativos…”
Por outro lado, durante o dia marciano, as temperaturas podem chegar aos 40 graus Celsius. A enorme amplitude térmica entre a noite e o dia – devido à atmosfera rarefeita de Marte – tem efeitos profundos nos materiais de robôs e sondas que para lá se enviem. “Esta grande amplitude térmica induz os materiais a um stress térmico, que os faz fracturar. E a electrónica é mais complicada, porque geralmente temos uma placa de um material rijo e vários componentes de materiais diferentes montados e soldados nessa placa. Vão expandir-se e comprimir-se e nem todos o vão fazer da mesma forma”, explica Nuno Silva.
Ainda que no Terreno de Marte não se teste a resistência dos equipamentos às temperaturas marcianas, o seu desenvolvimento decorre em diversos locais, como Canadá, Suécia, Itália e outros países-membros da ESA. Enquanto os Estados Unidos e algumas empresas norte-americanas já têm capacidade para desenvolver estas tecnologias, os países europeus estão agora a dar esses passos. “A Europa está a desenvolver tecnologias para a electrónica sobreviver a temperaturas tão baixas. É mais complicado do que parece.”
Noutros locais de teste também se estudarão, por exemplo, os efeitos da radiação nos componentes electrónicos (a que a missão ExoMars estará sujeita durante a viagem e no planeta) e das poeiras lá em baixo, levantadas pelos ventos marcianos constantes.
Mas o que fará de diferente o robô europeu em relação aos norte-americanos? Pela primeira vez, um destes aparelhos terá uma broca capaz de furar até dois metros de profundidade, sendo essa amostra sujeita a uma série de análises. “É provavelmente a maior contribuição científica da ExoMars. Os EUA só têm amostras superficiais”, responde Nuno Silva. “Os dois metros abaixo da superfície são importantes porque Marte é um planeta que morreu, a areia depositou-se e [quase] não foi mexida depois disso. Escavando em profundidade, podemos ver como era há centenas de milhões de anos. Se houve vida, é mais provável encontrar sinais disso, que ficaram protegidos pela própria areia.”
Além disso, uma panóplia de instrumentos científicos centrar-se-á na procura de vida, como um microscópio que irá observar as amostras da broca, um espectrómetro que pesquisará água no solo, um aparelho que detecta uma variedade de moléculas orgânicas ou câmaras panorâmicas de alta resolução. Mas até a ExoMars levantar voo, Marte fica na Terra.