Açores tinham planos para rentabilizar Atlântida em águas mais quentes

A empresa pública açoriana que encomendou dois navios aos ENVC, e os cancelou, quis explorar as embarcações noutras regiões fora da época alta. Um destino provável era as Bahamas. Auditorias do Tribunal de Contas deram primeiras indicações de uma “mudança de intenção” e do chamado duplo uso

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Nuno Ferreira Santos

O objectivo das autoridades açorianas, através da empresa pública Atlânticoline, era aproveitar a época baixa – com menor tráfego e condições de mar agrestes - para colocar pelo menos um dos navios ao serviço de outras ilhas em período de pico, o que aconteceria, por exemplo, com as Bahamas, o arquipélago de administração britânica na América Central situado entre o mar das Caraíbas, o Golfo do México e o Atlântico.

À época, nenhum responsável político e/ou empresarial da região autónoma assumiu publicamente a intenção do chamado duplo uso. Esta terá ganho corpo já com a encomenda em curso, mas acabou por ser abandonada. O PÚBLICO sabe que alguns gestores dos então ENVC tiveram dela conhecimento, mas de forma superficial, sem a certeza de abranger um ou os dois barcos. Tinham sido contratados dois de dimensão muito diferente: o Atlântida, de 96 metros, e o Anticiclone, de 60. Os navios em causa eram a encomenda que o Governo Regional cancelou em 2009, uma decisão que se revelou fatal para os estaleiros já então em crise profunda.

Indicações breves do plano de duplo uso e de uma “mudança de intenção” constam de auditorias do Tribunal de Contas dos Açores (TCA), envolvendo a Atlânticoline, em 2008 e 2009, e cujos relatórios o PÚBLICO consultou. Questionado sobre esse plano, Carlos César, que foi presidente do Governo Regional dos Açores entre 1996 e 2012, admite ao PÚBLICO que ele esteve na mesa.

“De Outubro a Abril é um período de imobilização que podemos compensar de outra forma. É normal que assim se pensasse”, respondeu Carlos César. O político defende que “não se pode excluir nunca outras utilizações” para este tipo de equipamentos e cita como exemplo os aviões. “Em época baixa, [este equipamento] pode ficar afecto a outra utilização, a determinada empresa, podia ser alugado, como acontece com os aviões”. Não confirma, no entanto, o destino pensado então. Fontes ligadas a este longo e controverso processo afirmaram ao PÚBLICO que, na altura, era referido o destino das Bahamas.

Dos 57,8 milhões de euros de investimento previsto, o objectivo era que a União Europeia comparticipasse em 80% através do FEDER, ficando 11,5 milhões a encargo dos açorianos. À luz das regras comunitárias, o duplo uso não levantaria problemas desde que o objecto da candidatura se mantivesse – transporte de pessoas e viaturas entre as três ilhas – e o plano de exploração em outras águas constasse do processo.

“Mudança de intenção”
No relatório da primeira auditoria à Atlânticoline, com data de 19 de Março de 2009, o TCA ainda não falava do duplo uso. A instituição procurava sobretudo explicação para as alterações introduzidas ao projecto inicial dos navios, com quatro aditamentos para o Atlântida e mais três para o Anticiclone em menos de dois anos. Expunham, na perspectiva do tribunal, uma “mudança de intenção” da companhia açoriana, expressão usada várias vezes ao longo do documento.

Na segunda auditoria pelo mesmo órgão fiscalizador das contas públicas, divulgada em Dezembro de 2009, o assunto é desenvolvido, a propósito das alterações e atrasos relativos ao Anticiclone, cuja construção não passou do casco. A partir da correspondência trocada entre armador e construtor, o tribunal escreve que “foi efectivamente considerada a mudança de classificação deste navio de ‘short international voyage’ para ‘normal international voyage’, o que permitiria ao navio operar para fora do circuito inter-ilhas, ideia que foi posta de parte em finais de Janeiro de 2009”.

As alterações não eram apenas invocadas como correcções aos erros detectados no projecto inicial da responsabilidade dos russos da Petrobalt. A Atlânticoline, criada em Outubro de 2005, também as justificava com “a pouca experiência técnica dos promotores do caderno de encargos”, ou seja, os seus próprios administradores.

Atribuía as alterações a uma necessidade de adequar a oferta, o que nunca convenceu o TCA, para o qual as alterações introduzidas “não são qualificáveis como ‘trabalhos a mais’, nomeadamente por consubstanciarem mudança de intenção do dono da obra ou vicissitudes que poderiam não ter ocorrido face a uma atempada e correcta previsão das necessidades do projecto inicial”.

Para o tribunal, “as alterações introduzidas não resultaram da entrada em vigor de regras técnicas regulamentos, convenções internacionais ou quaisquer outras normas legais que imperativamente condicionassem a construção do navio”, escreveu o TCA, lembrando que, num caso, tinha sido mesmo dada como justificação uma medida de segurança que só seria criada sete meses depois pela autoridade de protecção regional.

Dado que, para o órgão fiscalizador, “o ambiente marítimo inter-insular específico em que o navio” iria operar  e as características dos “diversos portos e alturas das marés”, alegados pela empresa de transporte, eram “dados básicos a ter em conta antes de pôr um projecto a concurso”, concluía, por isso, que tinha havido “mudança de intenção”.

A dada altura, a Atlânticoline respondeu ao tribunal que as alterações, no seu conjunto, se deviam a uma “espiral do projecto” – “um navio é uma estrutura de engenharia altamente complexa”. E o tribunal contrapôs ser “questionável que as alterações introduzidas pudessem ser juridicamente qualificadas como ‘trabalho a mais’”. No seu entender, o aumento do número de camarotes (mais 13 suites e sete camarotes quádrupulos), com um sobrecusto de 3,8 milhões de euros, “ficou a dever-se unicamente à mudança de intenção por parte da Atlânticoline”.

Nos aditamentos aos contratos, a Atlânticoline inscrevera quatro grandes justificações. O aumento do número de camarotes do Atlântida era devido à “necessidade de melhorar os níveis de comodidade estabelecidos inicialmente, tendo em conta o ambiente marítimo inter-insular específico” em que o navio iria operar, a “eventualidade de virem a ser utilizados em situações de emergência” e o “recurso à melhoria das condições de manobrabilidade”. Também o rearranjo de espaços interiores se devia a “torná-lo [ao Atlântida] mais adequado e apelativo para as populações que, na RAA, visa servir”.

Sem colher os argumentos da empresa, a instituição consolidou a ideia de uma “mudança de intenção” da companhia perante as diversas alterações introduzidas especialmente no Atlântida, que passou a dispor de salão, casino, pista de dança, restaurante e infantário.

Isto era resultado, na perspectiva do tribunal, de “uma deficiente ponderação das reais expectativas e necessidades que se pretende colmatar com a construção dos navios”. Por isso, em dois dos quatro aditamentos do Atlântida e da iniciativa da Atlânticoline, a secção regional dos Açores do Tribunal de Contas encontrou razões de “responsabilidade financeira sancionatória” dos membros do conselho de administração, multas que estes entretanto pagaram.

Com os atrasos que se foram acumulando devido aos erros de concepção, às alterações e às dificuldades do estaleiro, o prazo de construção do Atlântida passou de 565 para 740 dias (a tempo das eleições regionais de Outubro de 2008, que seriam daí a 20 dias) e do Anticiclone passou para 983 dias (31 de Maio de 2009) – prazos que não foram cumpridos.

O TCA calculou então em 16,9 milhões de euros a factura adicional de custos devida às alterações e atrasos: 6,5 milhões de euros (mais 16,3%) de alterações no Atlântida, 4,7 milhões (47,2%) no Anticiclone e mais 5,7 milhões de euros pelo atraso que obrigara à renovação dos contratos de afretamento, assinados em 2007.

O tribunal quis ainda o apuramento das responsabilidades do projectista em todo o processo, ao que os administradores do armador asseguraram terem “efectivamente intenção de apurar responsabilidades e tomar as medidas que se imponham”. Adiantavam ainda que tinham “já deliberado solicitar a elaboração de parecer técnico-jurídico sobre o cabimento e os termos da responsabilização dos projectistas pelos eventuais erros daqueles documentos que possam ser provados e que tenham conduzido à necessidade de a empresa suportar os danos e os custos da respectiva correcção”. É o que dizem na acta do conselho de administração de 29 de Setembro de 2008. A deliberação nunca deu resultados.

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