Danças de corte em tempos de revolução
Anne Teresa de Keersmaeker regressa a Lisboa pela mão da Companhia Nacional de Bailado que integra no seu repertório Mozart Concert Arias: Un Moto di Gioia. Um divertimento coreográfico que mostrou, em 1993, a inteligência de alguém que não queria caber em norma nenhuma.
A coreografia, usando o palco como um enorme salão vaidoso, estreia esta quinta-feira (até 10 Maio no Teatro Camões) pela Companhia Nacional de Bailado (CNB), acompanhada pela Orquestra Divino Suspiro - orgulhosa também ela de poder, pela terceira vez, introduzir o trabalho da coreógrafa belga no seu repertório.
Depois de The Lisbon Piece (1998) e do programa triplo L’Après-Midi d’un Faune, Grosse Fugue e Noite Transfigurada (2012), a CNB volta a dançar De Keersmaeker numa peça única para noite inteira e oferece, em todo o seu esplendor e dedicação, um elenco que devolve a unidade a uma peça feita num tempo em que a companhia Rosas (a de De Keersmaeker) era, ainda, corpo sólido e coeso. Ou seja, um tempo que já não existe, de companhias independentes que criavam repertório, que pediam meças às outras companhias, de elencos instalados e desequilibrados. É, também, o regresso desta peça a Lisboa, sete anos depois de ter sido apresentada no teatro São Luiz e numa altura em que deixou de ser dançada pela companhia Rosas.
Assim, este Un Moto de Gioia, no anacronismo que então era de ruptura, ao justapor, mais do que opor, música e movimento, construía, a partir das árias de amor compostas por Mozart um movimento quebrado, galante mas quebrado, irónico e, diríamos, insolente para dialogar com a música. Ou para a expor na sua imensa ambiguidade. Árias de amor ou de fel? Responde Augusto M. Seabra num dos textos do programa: “Peças de concerto, as árias de Mozart não deixam de ser também pequenos dramas; a escolha, aliás, incide sobre algumas que enunciam situações de angústia, amor, perplexidade e fúria. São obras de exibição e virtuosidade, obras de aparências sob as quais existe o drama.”
Explicava a coreógrafa na altura que a tarefa mais árdua era encontrar, e depois desenvolver, a linguagem corporal adequada para o trabalho: "De qualquer modo, como o objectivo é alcançar mais do que uma harmonia superficial e decorativa entre a música e a dança, logo que a música deixe de ser um mero medium prático, mais ou menos incidental para o movimento que acompanha, então surge inevitavelmente a questão do significado.”
A importância hierárquica do significado era, na altura, a chave para as obras de Anne Teresa de Keersmaeker. No início da década de 1990, e depois de um fulgurante percurso que a havia colocado (e catalogado) como herdeira natural de um equilíbrio entre a dança clássica, a contemporânea e a dança-teatro (recordemos as quatro peças iniciais, Fase, Rosas Danst Rosas, Elena’s Aria e Bartok, revisitadas em 2012 no Centro Cultural de Belém), Anne Teresa buscava ainda na música um modo de explorar o movimento. Composições como as de Mozart, no caso, mas antes Steve Reich e Bartók, e logo no ano seguinte com Bach, por exemplo, deixavam marcas no palco, nos corpos e nos sentidos, de modo a que “qualquer partitura sofre[sse] uma evidente actualização porque é esse o ponto nuclear da sua matemática coreográfica”, explica Cristina Peres no texto que acompanha o programa desta estreia da CNB. O significado era, portanto, o da ordem, o das regras, o da forma: que importância tem?
Passional mas lúdica, esta é uma coreografia que joga com os códigos da composição, ao convocar a ética e o protocolo das danças de corte para dentro do movimento. Os gracejos, o cross-gender, a futilidade, o desejo de deslocar a partitura para o corpo, a possibilidade de rasgar, com um olhar, a mais delicada das entregas amorosas, revelam, afinal, há 22 anos como agora, um modo de questionar a própria lógica de um movimento. Movimentos mais livres, hoje parecendo-nos infantis, na altura inscrevendo numa ruptura pop provocatória, por exemplo, fazem lembrar o mesmo tipo de provocação retórica que estruturou Marie Antoinette, da realizadora Sofia Coppola (2006). Os jogos dos comportamentos sociais sujeitos a uma forma, os corpos ansiando por uma ruptura, convocando-a através do cruzamento de referências diversas expressas nos movimentos, nos olhares, na convocação do próprio público, num piscar de olho pícaro que activa uma presença e uma consciência reactiva.
O que procurava De Keersmaeker? Continua Cristina Peres: “A busca de uma formulação que seja capaz de recolocar a evocação histórica na linguagem contemporânea, que alcance uma reinterpretação de códigos tal como eles são entendidos no presente e contando com a diluição operada pelo relato da História, pela distância da interpretação típica de cada época.”
A mesma lógica viria a construir Toccata, estreada no ano seguinte, dialogando com a música de Bach. Uma das sequências, precisamente a Suite Francesa, recupera a ordem de composição de Moto de Gioia e os pares galantes formam e deformam a música numa coreografia que, na sua longilínea construção, envolve a música como se ela fosse parte do próprio movimento. Exemplos que pudemos ver em 2012 mostram como esse diálogo foi sendo constante, por vezes forçando a diluição das fronteiras (Drumming, 1998), outras vezes mostrando a organizando o espaço a partir da organicidade entre música e movimento (En Attendant e Cesena, 2011-12).
Vinte e dois anos depois, quando dias 13 e 14 de Maio virmos, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, a mais recente criação da coreógrafa, Partita 2, percebemos que o diálogo entre música e movimento constituiu para a coreógrafa a pedra-de-toque de um discurso sobre a percepção. E perceberemos ainda que o que são as rondas, as voltas, os minuettos, enfim, as danças galantes que constituem a base de Un Moto di Gioia existem como alavanca para a constituição de um movimento que desafia o estilo, a ordem e o rigor, sem nunca deixar de ser, precisamente, ordeira, rigorosa e elegante.