Abril e a liberdade religiosa
O que trouxe Abril de novo, do ponto de vista da liberdade religiosa? A mudança está contida numa única palavra: reconhecimento.
As limitações são, no entanto, importantes: a prática do culto não-católico é apenas reconhecido aos estrangeiros e o seu exercício obrigatoriamente privado, sem expressão pública, incluindo a visibilidade dos seus templos. Trata-se assim de “tolerância”, não de liberdade: a religião católica é a religião do reino e os súbditos nacionais não têm outra opção. No entanto, e encarando a liberdade, e em particular a religiosa, como um processo sempre em movimento, o avanço é significativo: no caso concreto do judaísmo, embora considerados como uma “colónia” estrangeira sem reconhecimento legal, os judeus frequentam os seus espaços de culto privados, enterram os seus mortos segundo o ritual judaico, praticam livremente a beneficência judaica em organizações cujos estatutos são aceites.
A República vai mais longe. A Lei da Separação da Igreja do Estado, de 20 de Abril de 1911, confere a personalidade jurídica às confissões não-católicas e permite a visibilidade pública dos seus templos. Trata-se, sem dúvida, de um avanço significativo para as confissões não-católicas. No entanto, não podemos ainda falar de liberdade religiosa: em primeiro lugar, porque, decalcada do modelo da lei francesa de 1905, é visceralmente uma lei anticlerical e, em segundo, lugar porque as confissões não-católicas são reconhecidas apenas sob a forma de associações privadas cultuais, não como confissões religiosas, o que, na verdade, camufla a sua verdadeira natureza sociológica. Assim, os estatutos da Comunidade Israelita de Lisboa são reconhecidos a 23 de Julho de 1912, por alvará do governo civil, como “Associação de culto israelita, beneficência e instrução, denominada Comunidade Israelita de Lisboa”.
O Estado Novo consagra a liberdade de culto na Constituição de 1933, mas as comunidades não-católicas permanecem corpos estranhos à sociedade. Não fazem parte da nação portuguesa. Sem ser religião oficial do Estado, a Igreja Católica é, de facto, a única religião reconhecida e legitimada. Individualmente, os não-católicos têm os mesmos direitos como cidadãos nacionais, mas a expressão pública e colectiva da sua prática religiosa não existe, o low profile é a regra, e nada está previsto na legislação que tenha em conta as suas particularidades religiosas: o reconhecimento destas depende da boa vontade dos interlocutores do momento. Exemplificando de novo com a comunidade judaica, a possibilidade de não trabalhar ou fazer exames ao sábado ou durante as festividades religiosas dependia de uma negociação entre as partes, sem nunca ser reconhecida na lei. Da mesma forma, o ensino da religião nas escolas públicas ou a isenção de impostos eram benefícios exclusivos da Igreja Católica e o regime jurídico determinado pelo código civil continuava a não reconhecer a natureza religiosa das confissões não-católicas. Apesar disto, é preciso dizer com clareza: durante a ditadura salazarista a liberdade de culto privado nunca esteve em causa.
Então o que trouxe Abril de novo, do ponto de vista da liberdade religiosa? A mudança está contida numa única palavra: reconhecimento. E sem reconhecimento não se pode falar em liberdade, porque esta não se restringe a tolerar a existência privada de um culto “outro”. O reconhecimento implica aceitar como igual o que é diferente: igual em direitos, igual em deveres, igual em oportunidades; implica viver a diferença como natural, a diversidade como fazendo parte intrínseca das sociedades, e a tensão daí decorrente como um elemento criativo. A homogeneidade, o nivelamento, a negação da diversidade são sempre factores de empobrecimento, nomeadamente quando forçados. São contra a própria corrente da vida.
A mudança aberta com a revolução de Abril não se fez de repente, mas muito progressivamente, e está longe de estar terminada. O principal factor de mudança foi, como não podia deixar de ser, a instauração da democracia e da liberdade política. O fim da guerra colonial e a implantação de novas minorias étnicas e religiosas em território português, a abertura do país ao mundo e sobretudo a liberdade de pensamento, de expressão e de circulação de ideias, fazem surgir uma nova atitude face à diversidade religiosa e cultural. Portugal, hoje, é uma sociedade onde coexistem diversas minorias religiosas com uma prática aberta, expressão colectiva e visibilidade pública e estes elementos são determinantes na integração social dos seus fiéis. No fundo, quanto maior for a aceitação da diferença, mais fácil é o processo de integração.
Mas isto só é possível num Estado onde exista uma separação clara entre a esfera religiosa e a esfera política. Neste sentido, a Lei de Liberdade Religiosa aprovada em 2001 vem de facto culminar o processo de separação entre o Estado e a religião, condição indispensável ao reconhecimento do real pluralismo religioso e espiritual dos cidadãos. Para os não-católicos, o significado essencial da lei não reside na isenção de impostos, no direito de escolher para os filhos nomes próprios da onomástica religiosa específica ou no reconhecimento da incidência civil dos casamentos religiosos. Todos esses direitos são obviamente importantes, mas todos eles decorrem de algo muito mais significativo: o reconhecimento das confissões não-católicas, como pessoas colectivas religiosas, e não apenas como simples associações de direito civil. Traduzido em termos sociais, políticos e culturais, isto significa o reconhecimento da pluralidade do espaço religioso português.
Podemos então dizer que o processo está terminado, que é irreversível? Claro que não. Todos os dias a realidade nos bate à porta avisando que a lei, por si só, não muda as cabeças: os estereótipos são um osso duro de roer, os comportamentos preconceituosos e sectários não acabam por decreto. O que significa que a vigilância tem de ser permanente, mesmo com os pequenos deslizes animados da melhor das boas vontades, mas que revelam o que todos sabemos: do fundo da ignorância emerge sempre o preconceito. Na verdade, 40 anos depois, o freio à liberdade religiosa não vem essencialmente da negação do pluralismo religioso, nem do laicismo radical, minoritário numa sociedade pouco dada a extremismos. Ele vem da indiferença que continua a relegar o fenómeno religioso para as margens da esfera pública, social, cultural e sobretudo mediática – a não ser pelos maus motivos.
Em jeito de balanço, se há uma lição a tirar do processo da liberdade religiosa depois do 25 de Abril é que esta tem sempre um conteúdo positivo: nunca se obtém à custa da eliminação do outro, seja ele minoritário ou maioritário. É como o coração humano: cabe sempre mais um…
Especialista em questões judaicas