Há 20 anos, a morte de Kurt Cobain, a morte de uma era
Não o sabíamos então, mas o 5 de Abril de 1994 marcou o fim de uma linhagem. A dos músicos e bandas capazes de transformar o mundo à sua volta, abrangendo toda uma geração. O desaparecimento dos Nirvana assinala esse fim. Chegou com a morte de Kurt Cobain, exactamente há 20 anos.
Nesse dia o vocalista dos Nirvana fora descoberto num quarto secreto sobre a garagem de sua casa em Seattle. Suicidara-se a 5 de Abril, com a televisão sintonizada na MTV (som desligado) e um disco dos R.E.M., Automatic for the People, na aparelhagem. Deixara uma nota de suicídio que se tornaria um requiem lido e analisado vezes sem conta desde que foi divulgado. “Já não sinto paixão, por isso lembrem-se, é melhor apagar de uma vez do que desaparecer aos poucos”, escreveu. Foi há 20 anos.
Quando morreu Kurt Cobain, os Nirvana já tinham o seu lugar assegurado na história da música popular urbana. Meros três anos antes, tinham surgido de rompante com uma canção, Smells like teen spirit, que sinalizou de forma pungente uma mudança de era. Música cáustica e distorcida, qual sublimação do punk para um novo tempo e uma nova geração. “Here we are now, entertain us”, incitava o cantor irado de tão aborrecido, cuspindo bílis sobre a alienante sociedade de consumo e levando à então Music Television que hoje é apenas MTV (20 anos é muito tempo, já cantava alguém) o cabelo desgrenhado, a roupa descuidada, o anti-glamour que se tornou sinónimo de um género, o grunge (expressão que designa algo sem valor, sujo), de que os Nirvana inadvertidamente se tornariam símbolo e que pôs no mapa uma cidade, Seattle: ali nasceram bandas da cena revelada em larga escala após o sucesso dos Nirvana – os Mudhoney, os Melvins, os Tad, os Pearl Jam, os Alice in Chains ou os Soundgarden. “Lembro-me de ver os Nirvana na televisão naquele vídeo, o Smells like teen spirit. Fiquei impressionada, porque era a primeira vez que via pessoas como eu na TV”, recordava há alguns dias uma fotógrafa de Seattle e amiga de Kurt Cobain, Alice Wheeler, ao Seattle Times.
O impacto foi imediato. Porque por trás da agressividade da música, encontro entre atitude punk, riffs metaleiros, ruído dissonante e uma voz saída das entranhas, havia algo mais: uma sensibilidade pop que os fez transbordar fronteiras. “A minha história é igual à de 90% dos músicos da minha geração, por isso, não penso que a nossa música seja diferente da de alguém que cresceu no mesmo período”, dizia Cobain nas entrevistas a Charles Cross, jornalista musical de Seattle que se tornaria mais tarde biógrafo do vocalista. Década e meia depois, as entrevistas formariam a base para o documentário About a Son, realizado por A.J. Schnack. Nele acrescentava Cobain: “Nós só temos mais atenção porque temos ‘ganchos’.” Ou seja, sintetizemos, tinham refrões. Tinham algo que, sob a distorção e a descarga de energia zangada, comunicava directamente com todos. Falamos de um tempo em que, por comparação com a híbrida realidade actual, as fronteiras entre géneros eram ainda estanques. Por exemplo, apesar de uns Run DMC e apesar de uns Beastie Boys, quem ouvia hip hop dificilmente ouviria rock, quem ouvia rock ainda estava longe de entender o hip hop.
Ainda assim, Jay-Z, nome maior do hip hop da actualidade, refere Cobain no seu último álbum, Magna Carta Holy Grail. Não é por acaso. Não é por acaso que o bem mais jovem Tyler, The Creator, mostrou conhecer bem o humor do vocalista dos Nirvana, quando “ameaçou” posar para os fotógrafos da Rolling Stone usando uma t-shirt com a frase “Fuck your magazine” estampada (numa capa da mesma revista, há duas décadas, Cobain usara uma onde se lia “Corporate magazines still suck”). Em Seattle, hoje, podemos descobrir um rapper chamado Black Cobain. Quando os Nirvana surgiram, recorda o próprio no supracitado artigo do Seattle Times, “o rock’n’roll como que não existia para um miúdo de 8-10 anos a crescer no gueto". "Quando decidi que iria dedicar-me a tempo inteiro ao rap, quis ser honesto e dizer a verdade, e sinto que o Kurt Cobain fez isso na sua música. Mesmo que não o compreendêssemos enquanto pessoa, compreendíamos aquilo de que ele falava.”
Enquanto isso, vivem-se as celebrações do mito Cobain. Em Aberdeen esculpiram-lhe uma estátua em modo “existencialista kitsch”: de barba, sentado, empunhando uma guitarra acústica e com uma lágrima desenhada no rosto. Isto, numa altura em que a cidade fez definitivamente as pazes com o filho pródigo: depois de vários anos de resistência dos sectores mais conservadores, pouco inclinados a “legitimar” através de uma homenagem municipal um estilo de vida que desprezavam, o dia do nascimento do seu músico mais célebre, 20 de Fevereiro, foi declarado “Dia Kurt Cobain”. No contexto da indústria musical, assinale-se que dia 10 de Abril os Nirvana serão integrados no Rock and Roll Hall of Fame, ao lado de um grupo ecléctico formado por Cat Stevens, Peter Gabriel, os Kiss, a E Street Band ou Hall & Oates. No meio de tudo isto, Courtney Love anunciou que as suas Hole, a banda que fundou em 1989 e que ganhou protagonismo depois do seu casamento com Cobain, estão de regresso. Não só. Há poucos dias revelou também que a perspectiva de ver na Broadway um musical dedicado à vida do seu antigo marido está menos distante do que julgávamos. O que diria Kurt Cobain de tudo isto? De um musical, do Rock and Roll Hall of Fame, da lágrima da sua estátua amargurada? O Cobain de 27 anos iria considerá-lo algures entre o grotesco e o insultuoso. Quanto ao Cobain de 47 anos, não o pudemos conhecer. Obviamente, nunca saberemos o que pensaria.
A história é de todos conhecida. Kurt Cobain, o músico genial e torturado, o homem contraditório incapaz de lidar com a fama, o agitador “deadpan” que intervinha com humor nonsense no espaço mediático, o melómano mais interessado em divulgar a música que adorava (Daniel Johnston, Raincoats, Vaselines, Meat Puppets) do que em defender as suas canções. A história de todos conhecida diz-nos que soçobrou quando se viu transformado em mais uma peça de mercadoria para o mainstream desvirtuar, distorcer e aproveitar – quando, pelo caminho, a heroína se tornou bem mais do que analgésico para as dores de estomâgo crónicas (defendia que só começara a consumi-la por essa razão). Entre 1989 e 1994, a sua banda editou três álbuns de originais (Bleach, de 1989, Nevermind, de 1991, e In Utero, de 1993), os dois últimos duas obras maiores, uma colecção de singles e raridades (Incesticide, 1992) e um acústico lançado postumamente (MTV Unplugged in New York, 1994). Trouxe para o rock uma lírica negra, pessoalíssima, uma visão do mundo em que o sinistro se cruzava com o surreal e em que o horizonte sem futuro tão do seu tempo se tornou imagem intemporal do desconforto da existência (o que enriquecia uma música que chegava aos nossos ouvidos como algo desafiante e libertador).
Pouco depois de Nevermind transformar os Nirvana num fenómeno global, Kurt Cobain começou a ver seguida com a maior avidez possível numa era pré-Internet a sua dependência da heroína, o seu casamento turbulento com Courtney Love e o nascimento da filha de ambos, Frances Bean. A 5 de Abril de 1994, depois de três semanas desaparecido, deambulando por motéis e casas de amigos toxicodependentes após fugir de uma clínica de desintoxicação, tudo terminou.
Com Kurt Cobain morto, os Nirvana, naturalmente, acabaram. Começou a nascer o mito, como sempre acontece quando os ídolos morrem jovens – ainda para mais quando, como no caso de Kurt Cobain, pertencem ao malfadado “Clube dos 27” a que pertencem também o bluesman Robert Johnson, Jimi Hendrix, Brian Jones, Janis Joplin, Jim Morrison ou Amy Winehouse. Com a morte de Kurt Cobain, porém, não desapareceram apenas os Nirvana. A 20 anos de distância, num mundo totalmente diferente no que à música diz respeito, num mundo onde as relações sociais e o universo mediático se transformaram dramaticamente com o advento do universo online, vemos a morte de Kurt Cobain como um outro fim. O fim das estrelas musicais capazes de unir uma geração em toda a sua diversidade, capazes de provocar um momento “onde é que estavas?”.
Kurt Cobain foi a estrela rock global de uma geração. O mundo que lhe sucedeu, múltiplo e espartilhado, dividido em mil janelas reclamando a nossa atenção, torna, se não impossível, pelo menos uma grande improbabilidade a repetição desse fenómeno. “Somos afortunados por viver num mundo em que temos todas as bibliotecas do mundo acessíveis aos nossos dedos, mas também estamos a afogar-nos em informação. Assim sendo, uma banda destacar-se e captar a atenção do mundo é quase impossível”, declarou recentemente ao Financial Times Bruce Pavitt, co-fundador da SubPop, a editora que lançou Bleach em 1989.
É certo que, desde o desaparecimento dos Nirvana, houve, por exemplo, a explosão definitiva do brit pop marcado pela dualidade Oasis/Blur (mas só foi fenómeno de grande escala, abrangente e transformador, em Inglaterra). É também certo que a electrónica da chamada "música de dança" começava a formar decisivamente uma comunidade de criativos e admiradores, mas essa música era ainda feita, em grande parte, de um certo anonimato, no sentido em que não existia idolatria pop dos seus protagonistas. Recordamos também que, dois anos depois da morte de Cobain, deu-se a de Tupac Shakur, verdadeiro mito do hip hop (mas também ele ficou circunscrito, em grande parte, à cultura que ajudou a definir). E, bem mais perto temporalmente, testemunhámos o impacto provocado pela morte de Amy Winehouse, estrela global cuja vida de excessos foi seguida avidamente em todas as plataformas (online e no mundo palpável). É altamente improvável, porém, que se venha a impor com o mesmo impacto geracional provocado pelos Nirvana.
Com a morte de Kurt Cobain tudo foi amplificado, como sempre acontece com as histórias deixadas inacabadas tragicamente. Se não tivesse morrido, dificilmente teria sobrevivido na nossa memória colectiva de forma tão marcante. É provável que não conseguíssemos demarcar tão claramente o fim de qualquer coisa: o fim da linhagem de músicos e bandas, nascida com Elvis Presley, prosseguida pelos Beatles ou pelos Rolling Stones, por David Bowie ou Sex Pistols, pelos Smiths ou Joy Division, que se mostraram capazes de provocar um terramoto e transformar o mundo à sua volta. Não o sabíamos então, mas o fim dessa linhagem ficou marcado: 5 de Abril de 1994. Uma última ironia sobre a memória de Kurt Cobain, o homem desdenhoso da mistificação, o músico que detestava a adulação acrítica da multidão, o homem incapaz de lidar com o sucesso. Sim, conhecemos a história.