Quando os eleitores de esquerda debandam, à direita volver
A capitulação em toda a linha dos socialistas franceses perante o euroliberalismo tornará cada vez mais difícil à esquerda socialista inflectir o rumo da política europeia e internacional.
No final, para as cidades com dez mil habitantes ou mais, em 2014 as esquerdas quedaram-se com um total de 349 presidências de câmara (Mairies), sendo que em 2008 tinham 509; as direitas, as grandes vencedoras, passaram de 433 a 572 Mairies (mais 11 para a extrema-direita). Das 349 Ppesidências das esquerdas, a distribuição por partidos é a seguinte: Front de Gauche – PCF, 56; PSF, 210; EELV (Verdes), 6; PRG (Radicais de Esquerda), 7; "Diversos de Esquerda", 70. Nas hostes da direita tradicional, os 572 mandatos foram repartidos pelas seguintes forças: UMP (conservadores, neogaullistas), 320; UDI-MoDem (liberais, centristas), 115; "Diversos de direita", 137. Globalmente, três notas prévias são devidas. Primeiro, apesar de as diferentes regras eleitorais usadas serem bastante penalizadores para os pequenos partidos, sobretudo os que não entram em alianças, o sistema é multipartidário. Segundo, a derrota dos socialistas e a vitória das direitas têm uma dimensão nacional. Terceiro, a grande novidade é a afirmação da extrema-direita (FN, Front National, e outros) no poder local. Mas que fatores podem explicar tais resultados e que implicações poderão os mesmos ter para a política francesa e europeia?
Antes de responder, cabe elucidar as regras eleitorais autárquicas (http://elections-en-europe.net/institutions/elections-en-france/elections-municipales-francaises-de-2014/). Primeiro, nas comunas com menos de 2500 habitantes, usa-se o sistema maioritário mitigado de "lista incompleta": permite a representação das minorias. Segundo, nas comunas com menos de 3500 eleitores, temos um sistema maioritário plurinominal em duas voltas (maioria absoluta exigida na primeira; maioria relativa requerida na segunda). Terceiro, nos municípios com mais de 3500 habitantes, é usado um sistema proporcional de lista a duas voltas: para vencer no primeiro turno é exigida maioria absoluta. Caso contrário, há lugar a uma segunda volta à qual só passam as listas com 10% dos votos ou mais. As listas com mais de 5% e menos de 10% podem fundir-se com as listas de mais de 10% para o segundo turno. Neste, a lista mais votada terá sempre "um prémio de maioria": maioria absoluta de lugares automática (mesmo que tenha só maioria relativa de votos). Além dos bónus aos vencedores e das fasquias elevadas para se passar à segunda volta, traços que favorecem os grandes partidos, estes sistemas dão fortes incentivos à cooperação interpartidária e são considerados "poderosas armas contra os partidos antissistema". Tal acontece pelos limiares para passar à segunda volta, pelos incentivos à fusão de listas e às desistências cruzadas (com indicação de voto no parceiro mais bem colocado).
Ora o ascenso da extrema-direita representa o furar do "cordão sanitário" (em que a direita tradicional recusava aliar-se ao FN) e das barreiras do sistema eleitoral. Mas não se trata só de uma maior contemporização da direita tradicional. O FN, sob a batuta de Marine Le Pen, tem feito um esforço notável para "desdiabolizar" o partido, nomeadamente tem feito uma espécie de lifting na imagem do FN, dando mais peso e visibilidade aos temas socioeconómicos (tingindo-os até com tonalidades socialistas...), e subalternizando um pouco as questões da imigração e da insegurança (Pascal Perrineau em La solitude de l’isoloir, Partis, Autrement, 2011). Finalmente, o FN beneficiou da submissão dos socialistas franceses aos ditames da Comissão Europeia e do mainstream neoliberal na UE, amiúde a contrario das promessas que fez aos cidadãos. Aliás, conhecidos os resultados, Marine Le Pen respondeu assim sobre se achava que Hollande iria mudar de política, ou não: "Ele não mudará porque quem decide é a Comissão Europeia" (cito de memória).
E como explicar a monumental derrota socialista? A esquerda terá sido muito penalizada pela elevada abstenção. Além disso, esta é uma penalização da capitulação de Hollande perante o euroliberalismo, a qual representa também uma grosseira violação dos compromissos que os socialistas tinham assumido com os franceses. Recorde-se que Hollande entrou a prometer bater-se por uma Europa do crescimento, a votar contra o "tratado orçamental", e afirmar uma política de esquerda na Europa. Tem-se especializado em violar tais promessas... O "pacto da responsabilidade" representa precisamente uma certa capitulação perante o euroliberalismo pois, por um lado, aposta na descida da carga fiscal (para as empresas, sobretudo) e dos custos do fator trabalho como esteio da competitividade, além de uma fortíssima redução da despesa pública. Na verdade, porém, este pacto tem também uma forte dimensão social (investimento nos serviços públicos, nomeadamente de educação, aposta na criação de emprego), até como contrapartida da primeira componente. Mas infletir neste "pacto" implicaria uma grande mudança nas políticas e bater o pé à Europa. Não foi essa a resposta de Hollande: vide a escolha de Manuel Valls para premier. Porém, é isso mesmo que a ala esquerda do PSF está a exigir, numa carta que endereçou ao Presidente: "L’exécutif ne peut rester sourd aux message des électeurs, il faut changer de cap. (...) Le temps est venu d’un tournant économique que établisse un rapport de force avec la Commission Européenne afin de desserrer l’étau des contraintes du pacte de stabilité" (Le Monde, 1/4/14 : p. 3). Mas os problemas de Hollande têm sido também a falta de eficácia (no combate ao desemprego, por exemplo) e uma sucessão de casos infelizes (recorde-se o antigo ministro das Finanças que iria moralizar o sistema fiscal mas tinha "n" aplicações em offshores...).
Mas e qual foi a resposta de Hollande e quais as suas consequências? A escolha do "socialista de direita", do homem que, em 2009, queria apagar a palavra "socialismo" do nome do PSF, por ser antiquada, ou que era um ministro sobretudo popular entre os eleitores de direita, para chefiar o novo executivo, é clara. Hollande apostou em mudar de rostos, mantendo as políticas, para não ter de afrontar a Comissão Europeia e o mainstream neoliberal europeu. Para já, os resultados ditam que irá provavelmente perder a frágil maioria que tem no Senado (eleito indiretamente pelas comunidades territoriais), em setembro. Segundo, os ministros Verdes saíram do governo (e, quando escrevo: 1-4-14, tudo aponta para que o partido não venha a aceitar novas pastas no executivo de Valls). Terceiro, a mudança de rostos no governo sem substancial mudança de políticas arrisca criar uma rebelião na bancada socialista, cuja ala esquerda já ameaçou criar um grupo autónomo na Assembleia Nacional. Mais: tudo isso ameaça consolidar o divórcio entre socialistas e o eleitorado de esquerda, o que poderá custar a reeleição a Hollande. Mais graves, porém, poderão ser as consequências para a esquerda europeia, em particular, e para a construção europeia, em geral. A capitulação em toda a linha dos socialistas franceses perante o euroliberalismo tornará cada vez mais difícil à esquerda socialista infletir o rumo da política europeia e internacional (aumento das desigualdades, crescimento económico anémico, violentas crises económicas cíclicas, crescente dependência da democracia face aos mercados financeiros, competição pelos mínimos sociais e fiscais), correndo-se o risco de esta família política resvalar para o estatuto de uma certa marginalização tal como sempre aconteceu nos EUA e no Japão desde a II Guerra Mundial, e ao contrário do que se passava na Europa.
Politólogo, professor do ISCTE-IUL andre.freire@meo.pt)