“Há toxicodependentes que estão a faltar às consultas por falta de apoio”
Com o fim dos apoios da Segurança Social para o transporte de pessoas, há "no dia-a-dia relatos mais ou menos dramáticos" de situações concretas.
Criado há dois anos, o SICAD veio substituir o antigo Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), e as competências de intervenção passaram para as administrações regionais de saúde (ARS). Esta mudança foi criticada, até por si. Como é que as coisas estão a funcionar?
O IDT era um serviço que funcionava bem, dava resposta à população. A minha leitura, na altura, foi a de que estaríamos a introduzir factores de perturbação. O grande receio era o de que, na sequência da integração dos profissionais nas ARS, a capacidade de resposta ficasse comprometida. Mas, na prática, isso não aconteceu.
De acordo com os últimos dados disponíveis, de 2012, verificou-se uma redução nos tratamentos, mas as recaídas aumentaram substancialmente…
De acordo com os resultados do último inquérito à população, houve uma diminuição do consumo de substâncias ilícitas em geral. O único sinal de alerta dos últimos anos tem a ver com as recaídas dos consumidores de heroína sobretudo. As readmissões relacionadas com heroína passaram de médias que variavam entre 700 e 800 por ano para 1352 em 2011 e 2418, em 2012. Até Setembro do ano passado, foram 906, mas ainda nos faltam os dados globais. Portanto, houve uma relativa estabilidade durante uma série de anos, depois assistimos a um pico em 2011 e 2012 e 2013 também estará acima da média. Há igualmente um aumento em relação à média de anos anteriores [menos de 70] nas readmissões de consumidores de cocaína (215, em 2012, e 106, até Setembro de 2013). E as readmissões por consumo de cannabis foram 148, em 2012, e 93, até Setembro passado. Tudo isto reflecte aumentos de consumo, mas também a confiança nos serviços.
Como é que tem sido possível dar resposta a este aumento de procura?
Como as primeiras consultas não têm subido, tem havido capacidade de absorver estas readmissões.
O recrudescimento do consumo da heroína não é um sinal de que a crise económica está a ter impacto?
Estas coisas são sempre multifactoriais, é difícil estabelecer uma relação de causa e efeito. Era antecipável que uma camada tradicionalmente marginalizada fosse particularmente atingida. O recrudescimento do consumo de heroína tem a ver com a recaída de antigos consumidores, em muitos casos com idade avançada. Muitos tinham conseguido organizar a sua vida, constituir família, arranjar casa. Só que estão na primeira linha da fragilidade social.
Definiu em tempos a heroína como “o inimigo público número um”. Qual é hoje a grande ameaça?
A droga que mais efeitos devastadores causou foi a heroína. Não temos neste momento um “inimigo público” com o grau de ameaça que a heroína constitui. Há outras substâncias que nos preocupam, como a cannabis, que goza ainda de uma aura de inocuidade e de grande aprovação social, mas tem um potencial psicotrópico muito mais violento do que acontecia há 20 anos, porque há modificações na sua produção, e a capacidade de interferir com mecanismos cerebrais e de criar situações de dependência é muito maior.
O presidente da Sociedade Portuguesa de Alcoologia disse há duas semanas que está a aumentar o consumo de bebidas alcoólicas destiladas e que a crise pode agravar os consumos, sobretudo os mais perigosos.
Não é possível afirmar isto com base em estatísticas consolidadas. O último inquérito aos consumos em geral foi feito em 2012. Agora, quem está na primeira linha do atendimento tem esta percepção. As pessoas consomem substâncias por um de dois motivos: ou para potenciar o prazer (caso da cocaína, de determinados tipos de álcool, das novas substâncias psicoactivas), ou para aliviar o desprazer, o sofrimento, e aí temos a heroína e o álcool distribuído ao longo da semana com consumos excessivos. Há pessoas a beber um pouco todos os dias para estarem permanentemente anestesiadas. É o que está a acontecer, de acordo com as impressões que vêm do terreno. Mas isso verifica-se com os psicotrópicos todos, os tranquilizantes, os antidepressivos. É uma espécie de automedicação para a ansiedade.
Relativamente às novas substâncias psicoactivas, com a proibição legislativa em 2013, as smartshops quase desapareceram. O problema ficou resolvido?
O número de episódios de urgência relacionados com novas substâncias psicoactivas reduziu drasticamente. Não resolveu tudo, mas resolveu uma parte significativa dos casos.
Mas há sempre pessoas que compram pela Internet. Como é que isso se controla?
É muito complicado, as substâncias estão sempre a mudar. Mas não foram acrescentadas novas substâncias na lista portuguesa, apesar de estar prevista essa possibilidade.
Os cortes no financiamento do Serviço Nacional de Saúde estão ou não a ter um reflexo no acesso dos cidadãos?
O acesso aos cuidados vai sendo mais complicado. A par da concentração dos serviços, há também reduções nos apoios para os transportes.
Os toxicodependentes faltam às consultas?
Sim, por dificuldades relacionadas com transportes. Antigamente era relativamente fácil, conseguia-se o apoio da Segurança Social para o transporte de pessoas que precisavam de vir às nossas consultas. Hoje, vai sendo cada vez mais difícil obter esses apoios.
Mas os responsáveis governamentais defendem que, apesar dos cortes no financiamento, o SNS não está a ser afectado naquilo que é de mais fulcral.
O que podemos ver no dia-a-dia são relatos mais ou menos dramáticos de cidadãos concretos.
O Governo alega que são casos excepcionais…
Penso que há demasiadas excepções.
O que aconteceu na Grécia – o aumento de consumo de drogas e de toxicodependentes infectados com VIH – pode verificar-se também em Portugal?
O que aconteceu na Grécia foi uma retirada quase total das respostas, que eram sobretudo privadas e asseguradas por organizações não-governamentais. Em Portugal, no essencial tem sido possível manter as respostas, apesar das dificuldades. As intervenções das equipas de rua, os centros de abrigo e de acolhimento têm-se mantido. Não desaparecemos do terreno por dificuldades financeiras.
Há associações a queixar-se que a troca de seringas nos centros de saúde não está a funcionar.
Pois, os toxicodependentes têm alguma dificuldade em aceder aos centros de saúde. A parte mais significativa [da troca de seringas] é assegurada por equipas de rua. As farmácias eram um óptimo apoio, tenho pena que tenham saído do circuito.
O plano estratégico 2013-2020 (Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e Dependências) é muito abrangente, inclui outras adições, como o jogo.
O plano aguarda aprovação, está no gabinete do ministro desde Dezembro.
Faz parte do grupo de trabalho que em Fevereiro foi, por despacho, incumbido pela tutela da definição de um calendário para incluir os centros de respostas integradas nos agrupamentos dos centros de saúde e das unidades de desabituação de alcoologia nos hospitais. Na altura, reagiu, dizendo que temia que isto resultasse numa pulverização das respostas e na perda da sua eficácia. Nenhum dos membros do grupo foi avisado previamente do despacho. Isto não é estranho?
Sim, mas, ultrapassando essa questão, o grupo iniciou os trabalhos. Não quero antecipar os resultados.
Mas o secretário de Estado adjunto da Saúde respondeu às suas críticas, sugerindo que quem não concordasse devia pedir a demissão. Tenciona fazer isso?
Aceitei ser director-geral do SICAD na medida em que penso que a minha experiência pode ser útil para manter o essencial do modelo integrado que desenvolvemos ao longo de décadas. Continuarei a bater-me por ele enquanto puder. Se chegarmos a um modelo completamente incompatível, será necessário encontrar outro responsável. Provavelmente voltarei para o terreno para atender toxicodependentes como fiz antes.