O primeiro dia da longa noite que deixou o Brasil em brasa

Há 50 anos, um golpe militar abria a porta a uma ditadura caótica e feroz, que se alimentou da tortura e da repressão

Fotogaleria
Fotogaleria

Às 22 horas da noite de 30 de Março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho hesitava entre ver ou virar as costas ao aparelho de televisão que transmitia em directo o discurso do Presidente João Goulart no Clube Automóvel do Rio de Janeiro. Perante uma plateia de sargentos exaltados que lhe pediam “manda brasa, Presidente”, Goulart culpava “a minoria dos privilegiados que vive de olhos voltados para o passado” pela crise que assolava o Brasil e dava o seu apoio a uma facção da tropa em conflito com a hierarquia militar. Na sua casa em Juiz de Fora, uma pequena cidade de Minas Gerais, Olímpio medita sobre as possibilidades de sucesso do golpe militar que decidira horas antes. Às cinco da madrugada de 31, ainda vestido com um pijama de seda vermelho, começa a disparar ordens e informações pelo telefone.

A tropa começa a mobilizar-se e às seis entra em acção. O destino era o Rio de Janeiro. Humberto Alencar de Castello Branco, um cearense atarracado, de 63 anos, que chefiava o Estado-Maior do Exército, é informado do movimento e deita as mãos à cabeça. “Isso é uma precipitação”, diz a Olímpio. “Vão prejudicar tudo”, acrescenta. Tarde de mais. Um dia, a impaciência dos militares teria de vir ao de cima. A rejeição de um Presidente popular e populista, com forte ligação aos sindicatos e às forças da esquerda, haveria, tarde ou cedo, de se consumar num golpe. Mandaria a prudência que o passo decisivo fosse dado por um general com o prestígio de Castello Branco. Mas, perante o calculismo geral, o chefe da tropa de Juiz de Fora ousou jogar as suas cartas. Contra as mais sensatas previsões, ganhou.

O Presidente João Goulart, conhecido pelo seu petit nom Jango, estava numa posição precária. Tinha contra ele os Estados Unidos, irados com a lei que limitava a remessa de lucros das multinacionais ou com a independência da sua política externa. Tinha desafiado o lobby agrário ao avançar com um prenúncio de reforma agrária. Tinha sobressaltado o empresariado com a cobertura que dava aos sindicatos. Tinha afrontado os militares, que já em 1954 forçaram a sua saída do Governo de Getúlio, ao tolerar a indisciplina de sargentos. Ainda assim, nada indicava que a sua permanência no poder estivesse em causa.

Foto
Jango era dono de 15 mil hectares de terras entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai Instituto João Goulart

Gaúcho (do Rio Grande do Sul), rico, dono de 15 mil hectares de terras entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai, Jango casara com uma mulher de extrema beleza, Maria Thereza Fontella, deslocava-se num dos cinco aviões entre as suas fazendas e não desdenhava exercícios fugazes na condição de playboy. Cunhado de Leonel Brizola, um dos grandes amigos de Mário Soares na esquerda brasileira, estreara-se na política à sombra do também gaúcho Getúlio Vargas, a figura central da política brasileira entre 1930 e 1954. Getúlio, obreiro do trabalhismo e mentor de Jango, suicidar-se-ia no seu gabinete presidencial em Agosto de 1954 em resposta a um prenúncio de golpe dos militares. Escreveria um testamento no qual garantia dar “o primeiro passo no caminho da eternidade”, saindo “da vida para entrar na história”.

Em 1960, Goulart candidata-se a vice-presidente (na altura, Presidente e vice concorriam em listas separadas) e obteve um resultado esmagador. Jânio Quadros, um populista histriónico, elege-se empunhando uma vassoura com a qual varreria a corrupção. Sem que nada o fizesse prever, Jânio renuncia ao cargo sete meses depois da posse, dizendo-se “esmagado por forças terríveis”. Pela letra da Constituição, a saída de Jânio implicava a nomeação do vice, que se encontrava numa visita oficial à China, como Presidente. Depois de várias hesitações, o Exército dispôs-se a aceitar Jango. Mas só depois de uma emenda constitucional transformar o regime presidencialista numa democracia parlamentar, onde, obviamente, o Presidente teria menos poder.

A cada mês que passava, a pressão sobre Jango aumentava. Os quatro governadores dos principais estados (Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, onde governava o inefável Adhemar Barros, conhecido pela sua máxima “roubo, mas faço”) estão na frente da oposição. A Igreja alertava para os perigos do comunismo. A embaixada norte-americana investia avultadas somas em dois institutos, o Ipea e o Ibad, para alimentar uma permanente operação de contra-informação. Jango contava com o apoio dos sindicatos, do partido que Getúlio fundara, o Partido Trabalhista, do Partido Comunista do Brasil — o velho “partidão” do guerrilheiro ortodoxo e romântico Luís Carlos Prestes —, do aparelho de Estado e da UNE, a União dos Estudantes. Parecia suficiente para resistir até ao final do seu mandato.

Foto
Manifestação em São Paulo que a 21 de MArço de 1964 juntou mais de 500 mil pessoas contra o comunismo Bettmann/CORBIS

Com base nessa convicção, o Governo organiza a 13 de Março uma gigantesca manifestação na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Inspirado por Leonel Brizola e por Darcy Ribeiro, um intelectual que deixaria para a posteridade, entre outros, a genial obra O Povo Brasileiro, Jango sobe ao palanque para discursar perante 200 mil pessoas. Estão lá também Miguel Arraes, governador do Estado do Pernambuco e avô do actual candidato à presidência Eduardo Campos. Foi uma prova de força que teria resposta em São Paulo, seis dias depois. A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” levaria à rua meio milhão de pessoas que denunciavam o “perigo da implantação iminente do comunismo no Brasil”. A crispação estava no auge.

Castello Branco, general que comandara a Força Expedicionária Brasileira na II Guerra Mundial, fazia parte da linha moderada do sector militar. O conflito social crescente e os indícios de anarquia na Marinha e no Exército levam-no a tomar posição. A 20 de Março, emite uma circular que valeria mais pelo sinal do que pela mensagem (apesar de tudo, ponderada). Um sinal que provava a contaminação da ala legalista das forças armadas pelo vírus do golpismo. Tarde ou cedo, percebeu-se, uma das frentes em conflito pegaria em armas. O bem informado embaixador norte-americano Lincoln Gordon, um intelectual de Harvard e amigo pessoal de John F. Kennedy, convencera há muito a Administração da necessidade de um plano de apoio a uma revolta militar que julgava iminente.

Depois de perder Cuba, os Estados Unidos estariam dispostos a fazer tudo para manter o gigante brasileiro na sua esfera de influência. Gravações de telefonemas entre Lincoln Gordon e Kennedy, primeiro, e Gordon e Lyndon Johnson, divulgadas em toda a sua extensão recentemente, comprovam a existência de uma operação, a “Brother Sam”, na qual Washington se dispunha a agir para aniquilar o perigo vermelho de Jango. Uma frota que incluía o porta-aviões Forrestal e barcos carregados de armamento e combustível tomariam o caminho das costas brasileiras ao primeiro sinal de insurreição — o que se confirmou.

Foto
JOão Goulart com JFK depois de um encontro em Washington em Abril de 1962 JFK Presidential Library and Museum

Documentos descobertos pelo historiador Carlos Fico nos arquivos de Washington revelam um plano de contingência que levaria os americanos a apoiar um governo que, tendo por base um dos estados importantes, decidisse enfrentar Jango — um papel que estaria pronto a ser desempenhado por Magalhães Pinto, de Minas Gerais.

Jango, porém, age como se nada se passasse. O general Assis Brasil, chefe do Gabinete Militar do Presidente, avisa-o que está tudo controlado. Havia um “dispositivo” fiel ao poder legal que dissuadia o aventureirismo. As contas eram fáceis de fazer: dos quatro comandantes das regiões militares (Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul e Nordeste), só o general Justino Bastos, baseado no Recife, não era de confiança. Todos os outros ou eram legalistas ou eram amigos pessoais de Jango, caso do poderoso Amaury Kruel, comandante de São Paulo. Mas, quando discursou no Clube Automóvel perante os sargentos que lhe pediam “brasa”, Jango estava, sem o saber, a cometer o seu “suicídio político”, como reconhece o historiador norte-americano Thomas Skidmore numa obra marcante sobre o Brasil do século XX — Brasil: De Getúlio a Castello.

A queda

As primeiras notícias do levantamento de Olímpio Mourão Filho chegam ao Rio de Janeiro, onde Jango se encontrava, e esbarraram com um muro de indecisão, quase de indiferença. O “dispositivo” que apoiava o Presidente não se moveu. As tropas que largaram de Juiz de Fora avançaram sem pressa, como que à espera de uma vaga de fundo. Às dez da manhã do dia 31, Castello Branco está no seu gabinete, como habitualmente. A revolução parecia uma brincadeira feita de paralisia, amadorismo e desconfiança. Ainda assim existia. Ao contrário da contra-revolução.

Com o evoluir do dia, a situação começa a mudar. Os cépticos começam a acreditar. A vaga de fundo cresce. Às dez da noite, Amaury Kruel tenta dar pela última vez a mão a Jango. Pede-lhe que rompa com o radicalismo. O Presidente responde-lhe: “Não posso abandonar as forças populares que me apoiam.” O diálogo tinha acabado: “Ponha as suas tropas na rua e traia abertamente”, desafia Jango. Kruel sentencia o seu destino. “Então, Presidente, nada podemos fazer.” Nas horas seguintes, uma a uma, as principais forças do dispositivo declaram neutralidade ou passam-se para os revoltosos. O Exército “dormiu janguista” e “acordou revolucionário”, escreve Elio Gaspari na sua monumental tetralogia dedicada à ditadura, As Ilusões Armadas, reeditada este ano.

Castello Branco e outros oficiais desafectos ao Governo estão já envolvidos de corpo e alma no golpe. Às 12h do Dia das Mentiras, 1 de Abril, Jango apanha o avião e foge para Brasília. Daí parte para o Rio Grande do Sul natal, onde Brizola o desafia a organizar uma resistência armada. O Rio fica de portas abertas aos revoltosos. A ordem constitucional ruíra sem combate. Os militares são os novos donos do poder. Goulart acabaria exilado no Uruguai e, mais tarde, na Argentina, onde morreu em 1976. Há quem suspeite de um atentado da ditadura — em Jango, Vida e Morte no Exílio, o jornalista Juremir Machado da Silva assume essa tese.

Foto
Tanques guardam o palácio das Laranjeiras, onde está o ainda Presidente João Goulart, na manhã de 1 de Abril de 1964 In AS ILUSÕES ARMADAS Vol. 1 (Editora Intrínseca) de Élio Gaspari

Ainda hoje se discutem as razões que levaram Jango a desistir sem lutar. “A esquerda foi apanhada de surpresa”, o que retirou uma base de apoio ao Governo, explica à Revista 2 Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos mais consagrados historiadores do período da ditadura. Mas, mais importante ainda, foi a “índole pacifista do Presidente”, diz Fico. “Antes da sua tomada de posse como vice, em 1961, ele tinha dito que faria tudo para o conseguir [assumir o cargo], menos derramar o sangue dos brasileiros”, precisa o historiador.

É natural que no seio de um golpe que nasceu e se consumou com uma certa dose de improviso fosse difícil definir um programa. Na combustão dos primeiros dias, cruzavam-se os moderados, como Castello Branco, com os militares do que viria a ser designado por linha dura, com o general Costa e Silva, “o português”, à cabeça. Castello Branco acabaria por se sobrepor à concorrência, mesmo tendo de engolir Costa e Silva, que, por livre iniciativa, ocupara o Ministério da Guerra ainda durante o golpe. Seria o primeiro dos cinco presidentes-generais da ditadura.

A evolução imprevisível, quase acidental, deixa também em aberto qual seria o real objectivo do golpe. “O golpe não pressupunha necessariamente a ditadura que se seguiu”, admite Carlos Fico. Em princípio, limitar-se-ia a remover Goulart. Mas cedo o regresso da normalidade constitucional se revelou impossível. Os militares sentem-se com força para dirigir uma “Revolução Redentora” que mudaria a natureza do poder político.

Foto
Goulart com a mulher, Maria Thereza In AS ILUSÕES ARMADAS Vol. 1 (Editora Intrínseca) de Élio Gaspari

Um Comando Supremo Revolucionário, integrado por militares, dedica-se de imediato a purgar do sistema político as principais vozes da oposição. Uma semana depois do golpe, aprova o Acto Institucional 1 (AI-1), que permite ao Presidente cassar direitos políticos por um prazo de dez anos. Figuras cimeiras da política, como Jânio Quadros, João Goulart, Leonel Brizola, João Carlos Prestes, o prestigiado economista Celso Furtado, Darcy Ribeiro ou Miguel Arraes são calados. No Recife, o comunista Gregório Bezerra é brutalmente espancado pelos militares e exibido no jornal da noite esfarrapado e vencido. Generalizam-se inquéritos policiais militares (IPM). Os generais tomam o gosto à ditadura.

Castello Branco prorroga o seu mandato, as presidenciais de 1965 são adiadas, mas o poder militar confia no seu músculo para avançar com eleições nos estados. Na maioria dos casos, os seus candidatos triunfam. Mas estados de peso como Minas Gerais e Guanabara (actual Rio de Janeiro) passam para a oposição. Os militares perceberam então que dificilmente poderiam eleger um Presidente por voto directo. Duas semanas depois, Castello Branco aprova o AI-2, que acaba com as eleições directas, confere ao Congresso o poder de eleger o Presidente e limita o confronto político a dois partidos oficiais, a Arena, do Governo, e o Movimento Democrático Brasileiro, MDB, da oposição.

“Foi o fracasso de Castello Branco em opor-se à linha dura que levou o Brasil até à ditadura”, diz Carlos Fico. O general que veio do Ceará rendeu-se aos radicais. Costa e Silva, rosto dessa facção, é o senhor que se segue na corrida pela presidência. Castello Branco, um homem atarracado, lamentaria à prima e escritora Rachel Queiroz: “Vão substituir um homem sem pescoço por um homem sem cabeça.”

O endurecimento do regime com o AI-2 leva parte da intelligentsia brasileira ao exílio e o radicalismo de esquerda na clandestinidade para a luta armada. Brizola começa a ensaiar essa via com o apoio de Cuba, sem sucesso visível. Alípio de Freitas, um padre português a quem José Afonso dedicou uma canção (Alípio de Freitas), é um dos símbolos dessa agitação — e da repressão que lhe sucede (esteve preso 16 vezes). O PCB, adepto, como se esperava, do formalismo, cinde-se numa versão maoísta, o PC do B, e na Acção Libertadora Nacional de Carlos Marighella. Alguns dos mais importantes líderes do Partido dos Trabalhadores hoje no poder, incluindo a actual Presidente Dilma Rousseff, José Genoíno e José Dirceu, entram na clandestinidade e na guerrilha.

Foto
Costa e Silva (à esquerda) e Castello Branco, o primeiro Presidente da ditadura militar Bettmann/Corbis

Depois de 1966 até à tomada de posse de Costa e Silva, um ano depois, vai-se formando um ciclo de violência e repressão que se auto-alimenta. O Serviço Nacional de Informações ou as células especializadas na contra-subversão da Polícia Federal fecham os olhos à tortura de prisioneiros, quando não a incentivam em sessões de demonstração com cobaias humanas. A fronteira entre a legalidade e a ilegalidade nos quartéis diluiu-se. A linha dura, explicaria Elio Gaspari, alimenta-se da indisciplina e da insubordinação. “O regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma bagunça”, escreve o jornalista. Uma bagunça que, de acordo com os números oficiais, custou a vida de 357 pessoas.

Em Março de 1967, Costa e Silva toma posse. Se Castello Branco tinha pretensões intelectuais, Costa e Silva preferia o póquer ou as corridas de cavalos. Era um oficial de caserna. Se a explosão da Bossa Nova condiz com o tempo modernizador de Juscelino Kubitchek na presidência (1956-1961), a tomada de poder de Costa e Silva é um contra-senso com o início do tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, com o esplendor do Cinema Novo de Glauber Rocha ou com as ousadias estéticas de Hélio Oititica. O nascimento de uma nova vaga cultural parecia antes reflectir a inquietude de uma sociedade cansada do regime.

Pela primeira vez, milhares de estudantes descem às ruas em sucessivas “passeatas” (manifestações) nas quais se pedia o fim da ditadura. Em Março de 1968, Edson Luís da Lima Souto, um estudante de 18 anos, é baleado pela polícia no Rio de Janeiro. Mais de 50 mil pessoas acorrem ao seu funeral. “1968: O ano que não terminou”, título de uma soberba crónica memorialística do jornalista Zuenir Ventura, tinha começado. A 21 de Junho desse ano, na “Sexta-feira sangrenta”, a polícia dispersa uma manifestação com balas reais, fazendo quatro mortos, 20 feridos e mais de mil prisões. Uma semana depois organiza-se a Passeata dos 100 mil, com a nata da nova geração cultural na primeira fila (Caetano, Gil, Chico Buarque, Nara Leão, Paulo Autran, entre outros).

Pressionado nas ruas, o regime enfrentava ainda o recrudescimento da insurreição armada. Uma vaga de assaltos a bancos acentua-se em 1967 e prolonga-se pelo ano seguinte. Militantes treinados por Havana actuavam nas grandes cidades e não nas zonas rurais, como prescrevia a cartilha castrista. A Acção Libertadora Nacional, de Carlos Marighella, é o inimigo público número um. Tem a concorrência do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (data da morte de Che Guevara) ou do VAR-Palmares, grupo trotskista que no ano seguinte roubaria 2,6 milhões de dólares de um cofre que o ex-governador Adhemar de Barros, agora no exílio, tinha deixado na casa do irmão de uma amante, no Rio de Janeiro.

Foto
A passeata dos 100 mil, a 26 de Junho de 68, juntou vários artistas e intelectuais nas ruas. Na foto podemos ver Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Paulo Autran In AS ILUSÕES ARMADAS Vol. 1 (Editora Intrínseca) de Élio Gaspari

Os tempos de chumbo

Num primeiro momento, Costa e Silva tolera as manifestações. Mas por uma questão de tempo. O seu poder dependia em parte do apoio tácito ou explícito da linha dura. À margem da hierarquia, milícias como o Comando de Caça aos Comunistas agrediam actores e destruíam salas de teatro. O regime caminhava para a ditadura plena. Precisava de um grão na engrenagem para consumar a mudança. Em Setembro, o até então discreto deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, tratou disso. Num discurso na câmara dos deputados, pede às mulheres dos militares que imitassem Lisístrata, uma personagem do teatro de Aristófanes, e negassem sexo aos maridos ou namorados enquanto durasse a repressão.

O discurso passou despercebido ao público. Mas os militares leram-no e remoeram. Exigiram a Costa e Silva a cassação do mandato do deputado, pretensão que o Congresso recusaria. A linha dura não desistiu. Pressionou. Em Dezembro de 1968, Costa e Silva leva à aprovação do Acto Institucional 5. O que esse acto propunha era a “ditadura escancarada”, o título do segundo volume da obra de Elio Gaspari. Um “golpe dentro do golpe”, considerou Óscar Pilagallo, jornalista, no livro O Brasil em Sobressalto. O Presidente podia fechar o Congresso, cassar políticos, demitir funcionários, suspender o habeas corpus, a mais elementar medida de protecção dos cidadãos contra o poder do Estado. No Governo, só o vice-presidente, Pedro Aleixo, votou contra. Por desconfiar das “mãos honradas” de Costa e Silva, perguntaram-lhe? “Desconfio é do guarda da esquina”, respondeu.

Depois do AI-5 e até à tímida abertura iniciada por Geisel em 1974, o Brasil viveu os seus dias de chumbo. Em 1969, inicia-se uma vaga de prisões. Intelectuais como Fernando Henrique Cardoso foram demitidos e tiveram de se exilar. Cateano e Gil foram detidos, raparam-lhes as cabeças e partiram para Londres. A tortura e o assassinato da polícia ou dos militares banalizaram-se, sem castigo. Até que fosse revogado, em Janeiro de 1979, o AI-5 puniu 1607 cidadãos, proibiu 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros e mais de 500 letras de música. “O serviço de informações tinha células nas empresas, nas escolas em todos os serviços públicos. Ainda hoje estamos por saber ao certo o número de vítimas dessa repressão”, diz Carlos Fico.

O endurecimento do regime acolhe milícias privadas, como a da Operação Bandeirantes, no combate à guerrilha urbana, que em 1969 se torna notícia mundial com o rapto do embaixador americano Charles Elbrick. Por pouco não o confundiram com o embaixador português. Fernando Gabeira, jornalista e político que integrou o grupo de raptores, escreveu: “Íamos nos enganar de século.” Mais tarde, um cônsul japonês e o embaixador da Suíça seriam igualmente sequestrados. Estes episódios, porém, foram uma espécie de canto do cisne da insurreição armada. Depois de 1971 a guerrilha ficaria confinada ao Araguaia, algures entre o Pará, Maranhão e Goiás. Seria dizimada em 1975 — um dos poucos sobreviventes foi José Genoíno, do PT.

Costa e Silva ficaria apenas alguns meses à frente do monstro que ajudou a criar. Em Agosto de 1969, uma trombose debilita-o. O regime militar permanece porém amarrado na ditadura, agora dirigida por uma junta. Emílio Garrastazu Médici, que lhe sucede, limita-se a gerir a herança, ajudado por uma conjuntura económica que nenhum outro Presidente da história do Brasil conhecera ou iria conhecer. Entre 1968 e 1974, o produto cresce a um ritmo de 11% ao ano. A bonança arrefece a contestação. A vitória na Copa do Mundo de 1970 ajuda. O slogan do Governo, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que apressara Roberto Carlos a cantar “Eu te amo meu Brasil, eu te amo”, perdera utilidade. O próprio Lula da Silva reconheceria mais tarde que se Médici disputasse eleições livres, ganhava.

Foto
Protestos no Rio de Janeiro a 24 de Junho de 1968, ano em que se dá início à "ditadura escancarada" Bettmann/CORBIS

O princípio do fim

Desgastados pelas denúncias da tortura e pela pressão popular, os generais começaram a perceber que chegara a hora de desarticular a ditadura. Ernesto Beckmann Geisel, 67 anos, luterano, descendente de alemães do Sul e eminência parda no mandato de Castello Branco, dispôs-se a cumprir esse papel. Havia de o fazer à sua medida, controlando quer o aparato da repressão, quer a pressa da oposição. O assassinato do jornalista Vladimiro Herzog nas celas da polícia paulista, em 25 de Outubro de 1975, mostrara que a sua mensagem de distensão estava longe de ser acolhida pacificamente pela ala radical. À primeira, Geisel tolerou. O assassinato do operário metalúrgico Manuel Fiel Filho, em Janeiro, também nas caves do Exército em São Paulo, foi a gota de água. No dia seguinte, o comandante do segundo exército, Ednardo D’Ávila Mello, foi demitido. A tortura deixara de andar em roda livre.

Quando chega o momento de se retirar, Geisel sinaliza que a distensão que iniciara era para continuar. Num golpe palaciano, demite o general Sylvio Frota, o representante da linha dura, do Ministério da Guerra. Frota tenta uma resposta, mas os tempos no exército estão a mudar. João Baptista Figueiredo, um moderado, é eleito em 1978. O seu pensamento político está longe de revelar a erudição de Geisel. Era um bruto. “Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo”, dizia. Mas tinha um propósito. Restauraria a democracia, “nem que fosse à força”.

Foto
Ernesto Geisel assumiu a tarefa de desmantelar a ditadura In AS ILUSÕES ARMADAS Vol. 1 (Editora Intrínseca) de Élio Gaspari

Assim foi. Indiferente ao estertor da ala ditatorial que o interpela com uma vaga de atentados bombistas, Figueiredo promulga uma lei em Agosto de 1979 que liberta quase cinco mil presos políticos. Mas os bons auspícios colidem com as más notícias da economia. O segundo choque petrolífero gera uma nova crise no Brasil. A inflação em 1981 chegou aos 100% e no ano seguinte estava já nos 200%. O PIB recuava. O Brasil pede ajuda ao FMI e tem de enfrentar uma vaga de 429 greves em 1979 contra a perda do poder de compra espoletado pela inflação. No coração industrial do Brasil, o ABC paulista, emergia um sindicalista que se preparava para fazer história: Luís Inácio “Lula” da Silva. Em 1980, fazendo uma síntese entre sindicalistas, católicos progressistas, trotskistas, marxistas e intelectuais de várias esquerdas, Lula lança o mais poderoso partido de massas do Brasil moderno: o PT de Lula.

A nova configuração do sistema partidário teria no entanto de esperar até 1989 para que o último espartilho totalitário de 1964 acabasse. As eleições estaduais de 1982 mostram um país com uma enorme sede de mudança. O PMDB ganha em São Paulo e Minas Gerais. No Rio, Leonel Brizola ascende a governador. O sucesso leva à exigência de eleições directas para as presidenciais de 1985. Em Janeiro de 1984, no aniversário de São Paulo, 300 mil pessoas reclamam “Directas, já”. Lula, Fernando Henrique Cardoso ou a actriz Fernanda Montenegro estão na primeira fila de um movimento que se estenderá a todo o país.

Não foi suficiente. A emenda constitucional para o voto directo seria derrotada em Abril de 1984. Um editorial da Folha de São Paulo vituperou os “deputados representantes de si próprios”, os “fósseis da ditadura”. Mas o regime não era já capaz de esconder a sua decrepitude. A possibilidade de eleição de um democrata civil era agora uma realidade. Entre Paulo Maluf, uma figura próxima do regime, e Tancredo Neves, ex-primeiro-ministro de Jango, o colégio eleitoral escolheria o segundo.

Tancredo toma posse em Março de 1985, mas é de imediato hospitalizado. Julgava-se que tinha uma apendicite ou, mais tarde, uma diverticulite. Tinha um tumor. Após sete operações, confidencia ao seu neto Aécio Neves, que disputa as eleições presidenciais de Outubro próximo: “Eu não merecia isto.” Morreu a 21 de Abril. Dois milhões de pessoas acompanharam em São Paulo o cortejo fúnebre. O Brasil comove-se com o desfecho da sua primeira experiência de liberdade.

Em 1989, os brasileiros puderam escolher de novo o seu Presidente numa eleição directa, o que já não acontecia desde os tempos em que Jânio Quadros agitava uma vassoura e tirava sandes de mortadela do bolso do casaco nos comícios. Depois de uma primeira volta muito disputada, Lula da Silva e Fernando Collor de Melo entram na recta final. Lula parece ter vantagem. Mas, antes de um segundo duelo televisivo, a campanha de Collor põe a correr a “revelação” de Miriam Cordeiro, uma ex-namorada de Lula, que teria sido aliciada por ele para fazer um aborto. Nervoso, irritado e com a realização a focar o suor que escorria da tez até à barba mal-amanhada, Lula desorienta-se e perde. O alagoano milionário, com ar de playboy, é o primeiro Presidente do pós-ditadura. Em 1992, seria acusado de corrupção e acabaria afastado num processo de impeachment (impugnação) votado no Congresso. O primeiro episódio da nova República foi um desastre. Mas essa é já uma outra história.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários