Uma noite cantada que fez história

Há quase 40 anos, uma canção fez com que uma noite entrasse na História.

Nessa data, menos de um mês antes do derrube da ditadura pelo Movimento das Forças Armadas e apenas 13 dias após a malograda tentativa de levantamento das Caldas da Rainha, a Casa da Imprensa organizou, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o I Encontro da Canção Portuguesa, ocasião para a entrega dos Prémios de Imprensa referentes ao ano de 1973. Pela primeira vez iriam estar no mesmo palco, perante milhares de pessoas, os nomes mais representativos da canção que era uma forma activa de contestação do regime de Salazar/Caetano, da guerra colonial e de denúncia da máquina repressiva da ditadura e da privação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.

O espectáculo esteve para não se realizar até cerca das 22h desse dia 29 de Março, porque, além dos severos cortes da censura nos textos das canções, pairava sobre o evento a ameaça de proibição da Direcção-Geral dos Espectáculos, cujo responsável máximo, Caetano de Carvalho, tentou, até ao último momento, demover os cantores-autores do propósito de cantarem para as cerca de sete mil pessoas que enchiam por completo aquela emblemática sala lisboeta. Falo do que vivi intensamente como cantor e como elemento da equipa organizadora do espectáculo.

Por decisão expressa de todos os cantores presentes, o espectáculo fez-se e fez História, designadamente por ter terminado com uma interpretação colectiva de Grândola, Vila Morena, uma das poucas canções que, surpreendentemente, não tinham sido retalhadas pela censura, apesar de ser, logo na primeira quadra, um elogio e uma celebração da democracia e da liberdade. Zeca Afonso teria preferido cantar no fecho Venham mais cinco ou O que faz falta, por serem empolgantes canções de refrão. Grândola, Vila Morena foi a alternativa natural e histórica. Criada em 1964, há 50 anos, foi estreada em Santiago de Compostela em 1972. No final do espectáculo, com o Coliseu dos Recreios literalmente cercado pelas forças repressivas, milhares de pessoas saíram para as ruas da Baixa lisboeta pacífica e comovidamente, por terem tido a percepção clara de que aquele espectáculo e aquele remate musical prenunciavam a queda da ditadura, que a movimentação dos militares do MFA, já com o seu programa político aprovado, a 5 de Março em Cascais, por cerca de duas centenas de oficiais, talhava para o triunfo, que seria, inevitavelmente, o abrir de portas para o fim da guerra em África e para a efectiva democratização de Portugal, após 48 anos de ditadura.

Essa noite entrou na História, porque foi no final do espectáculo do Coliseu que os oficiais presentes escolheram a segunda senha do movimento libertador. Ficou também na História do Portugal contemporâneo por ter confirmado a importância da canção mais politizada e interventiva e dos seus autores e intérpretes no processo de consciencialização de largas camadas da população, cansadas de guerra, de repressão e de total falta de liberdade.

Em 28 de Março próximo, um espectáculo comemorativo marcado para o Coliseu, numa iniciativa da Associação José Afonso, com o apoio, entre outros, da Casa da Imprensa, recordará o que foi e o que significou essa noite, antecipando o 25 de Abril e a força transformadora que o fez triunfar. Logo a seguir começará o mês de Abril, tempo de reencontro com a memória e com a História, tempo de partilha e de mobilização para os combates que a defesa da democracia, da cidadania e da soberania nacional reclamam. A recordação das canções que ajudaram a fazer História, como antes a fizeram A Marselhesa, A Internacional ou O povo unido jamais será vencido, deverá ser a verdadeira banda sonora de uma dinâmica comemorativa capaz de renovar energias e vontades, em nome de tudo aquilo a que Portugal e os portugueses não podem, nem devem renunciar.

Há quase 40 anos, uma canção fez com que uma noite entrasse na História. A força e o alcance dessa canção não se esgotaram. Ela já mostrou que pode continuar a fazer História, porque, não esquecendo o passado, é sempre do futuro que continua a falar, por ser intemporal e universal e o que nos diz.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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