Terapia genética permitiu aumentar resistência contra o VIH de pessoas infectadas
Inactivando um gene nas células imunitárias humanas, foi possível, pela primeira vez, reproduzir parcialmente, no organismo de pessoas seropositivas, uma mutação natural que torna os seus portadores imunes ao vírus da sida.
“Este é o primeiro grande avanço na área da terapia genética do VIH desde que foi demonstrado que o ‘doente de Berlim’, Timothy Brown, estava livre do VIH”, disse John Rossi, do centro do cancro City of Hope na Califórnia, citado no site da revista Nature.
Recorde-se que o chamado “doente de Berlim”, que parece ter conseguido expulsar totalmente o vírus VIH após um transplante de medula óssea, é actualmente o único caso no mundo de remissão de longo prazo num adulto com VIH.
O que faz do “doente de Berlim” um caso único é o o facto de aquele homem seroposivo ter recebido, para tratar uma leucemia, medula óssea proveniente de um dador que apresentava uma mutação num gene chamado CCR5. Ora, sabe-se há muito tempo que essa mutação, que ocorre naturalmente em cerca de 1% da população, inactiva aquele gene e faz com que a proteína por ele fabricada deixe de aparecer à superfície dos linfócitos T, os alvos preferenciais do VIH. E como isso impede a entrada do VIH nessas células, as pessoas portadoras de mutações do gene CCR5 herdadas de ambos os seus pais são imunes ao vírus da sida – e as que só a herdaram de um dos progenitores são-no parcialmente. Infelizmente, para além dos transplantes de medula óssea apresentarem riscos, seria difícil encontrar, para cada pessoa seropositiva, um dador de medula óssea compatível e portador integral da mutação.
Todavia, foi o sucesso com o “doente de Berlim” que inspirou a abordagem terapêutica agora testada, num ensaio clínico de primeira fase, por Pablo Tebas, da Universidade da Pensilvánia (EUA) e colegas.
Entre Maio de 2009 e Julho de 2012, estes cientistas administraram a cada uma de 12 pessoas seropositivas uma dose dos seus próprios linfócitos T, previamente colhidos e manipulados no laboratório de forma a desactivar o gene CCR5 e simular assim a mutação protectora natural. A operação, realizada graças a um composto disponível comercialmente – uma enzima chamada “nuclease dedo de zinco”, que corta o gene CCR5 à maneira de uma autêntica tesoura – permitiu induzir artificialmente a disrupção do gene CCR5 em cerca de 25% dos linfócitos T tratados, salienta ainda a Nature.
Segundo explica por seu lado em comunicado a Universidade da Pensilvânia, nessa altura, seis das pessoas tratadas interromperam totalmente, durante algumas semanas, os cocktails de antirretrovirais que tomavam para manter o VIH sob controlo. As outras seis continuaram a tomar os medicamentos.
Uma semana depois, os cientistas constataram, nas pessoas que tinham interrompido o tratamento químico, um marcado pico no número de linfócitos T manipulados presentes no organismo. E apesar de esses níveis terem vindo a descrecer ulteriormente, permaneceram elevados nas semanas que se seguiram à inoculação. Os autores também observaram a presença de linfócitos T mutados no tecido imunitário da mucosa intestinal dessas pessoas, tecido que se sabe ser um importante “esconderijo” do vírus da sida no organismo. São aliás estes reservatórios latentes que fazem com que o vírus ressurja, passados uns tempos, quando o tratamento antirretroviral é interrompido.
Um outro resultado promissor foi a diminuição da carga viral do VIH em quatro das pessoas que tinham interrompido os seus tratamentos, com o vírus a tornar-se mesmo indetectável numa delas. Os cientistas descobririam mais tarde a explicação deste fenómeno isolado: uma parte dos linfócitos T dessa pessoa já apresentavam, naturalmente, a mutação protectora, herdada de apenas um dos seus progenitores, o que lhe conferia à partida uma vantagem imunitária em relação aos outros participantes.
“Este estudo mostra que podemos, em condições seguras e efectivas, modificar os próprios linfócitos T de uma pessoa infectada pelo VIH para imitar uma resistência natural ao vírus, introduzir essas células no corpo da pessoa e potencialmente manter a carga viral sob controlo sem recorrer a medicamentos”, diz Carl June, co-líder do estudo com Tebas, no mesmo comunicado. “E reforça a nossa ideia de que os linfócitos T modificados são a chave que poderá um dia permitir eliminar a necessidade de tomar medicamentos durante toda a vida e conduzir a abordagens funcionalmente curativas do VIH/sida”.