Moscovo joga com as divisões na Crimeia
Grupo armado pró-russo invadiu o Parlamento da Crimeia, que acabou por votar a realização de um referendo sobre o estatuto de autonomia.
No exterior, um grupo de manifestantes que tinham acampado durante a noite lançava gritos de apoio perante o vislumbre da bandeira russa içada no edifício do Parlamento, em Simferopol. “Esperávamos por este momento há vinte anos. Queremos uma Rússia unificada”, afirmou um dos líderes do protesto, relatava o correspondente da BBC. Estas palavras encerram um conflito de raízes profundas que, no contexto da turbulência política na Ucrânia, é agora transposto para a arena internacional.
Enquanto a instabilidade tomava conta da pequena península no mar Negro, a Rússia dava início a manobras militares na zona ocidental, mobilizando 150 mil soldados, 880 tanques, 90 aeronaves e 80 embarcações. Ouviram-se os tambores da guerra logo pela manhã, com o Presidente interino da Ucrânia, Olekander Turchinov, a avisar que “qualquer movimento de tropas armadas será considerado como uma agressão militar”.
Do Ocidente também vieram avisos dirigidos a Moscovo e a Simferopol. O secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, mostrou-se “preocupado com os desenvolvimentos na Crimeia” e apelou à Rússia “para não tomar nenhuma acção que faça escalar a tensão”. Washington alertou, através do secretário de Estado da Defesa, Chuck Hagel, para a possibilidade do Kremlin dar “passos que possam ser mal interpretados, ou levar a cálculos errados, numa altura muito delicada”.
Moscovo assegurou, por seu turno, que os exercícios anunciados “não apresentam qualquer ameaça” e que as actividades estão relacionadas apenas com a “preparação para combate”, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov.
O que está em causa naquele território de 2,3 milhões de habitantes? Um artigo de opinião de dois analistas do Centro Carnegie de Moscovo dá a resposta: “De todos os potenciais conflitos na Ucrânia pós-revolucionária, nenhum é mais importante do que uma crise séria na Crimeia, que pode levar a uma guerra quente na Ucrânia e aumentar de forma dramática as tensões entre a Rússia e o Ocidente.”
A Crimeia é a única região autónoma da Ucrânia e é também a única em que a maioria dos habitantes (cerca de 64%) é de origem russa. Para além disso, a província passou para a administração ucraniana apenas em 1954, pela mão de Nikita Kruschev, quando a Ucrânia pertencia à União Soviética. O domínio russo vem desde o final do século XVIII.
Não é de admirar, portanto, que a Crimeia registe o maior apoio a Moscovo e, consequentemente, onde Ianukovich recolheu grande parte dos votos. A sua deposição foi vista como um golpe de extremistas radicais e neonazis que derrubaram um Presidente legitimamente eleito e que agora ameaçam a sua cultura e a língua. A verdade é que uma das primeiras decisões dos novos governantes foi a revogação de uma lei que definia o russo como uma das línguas oficiais nas regiões onde a maioria da população é russófona.
Por outro lado, a maioria russa na Crimeia convive com uma minoria tártara que alimenta um grande ressentimento em relação a Moscovo, fruto de décadas de perseguição durante o domínio soviético, que culminou numa deportação em massa em 1944. Também eles receiam que a recente afirmação da maioria russa possa reanimar os sentimentos xenófobos.
O cenário corporiza “uma clássica situação de conflito em que ambos os lados se sentem ameaçados”, observa à rádio Free Europe o director do Centro de Estudos do Médio Oriente de Kiev, Igor Semivolos. Na quarta-feira, duas manifestações opostas encontraram-se em frente ao Parlamento em Simferopol, envolvendo-se numa batalha campal, depois de um grupo de tártaros ter invadido o edifício.
Na quinta-feira foi a vez de um comando pró-russo ter tomado os edifícios governamentais, numa operação descrita como “profissional”. Os deputados votaram a realização de um referendo sobre o estatuto de autonomia para 25 de Maio, alimentando receios de que o separatismo se torne realidade. Foi noticiado também que o governo se demitiu.
Moscovo assiste, para já, de longe, utilizando a presença militar para testar os nervos dos novos governantes ucranianos, e do Ocidente, e para lembrar que um cenário como o da invasão da Geórgia, em 2008, se pode repetir. Na altura, a Rússia justificou a intervenção para proteger os interesses russos nos territórios da Ossétia do Sul e da Abecázia.
Tendo aparentemente perdido, no curto prazo, a influência sobre a Ucrânia, a Rússia poderá ver numa possível guerra interna a oportunidade de manter sob a sua esfera alguma parte do país, a começar pela Crimeia. Entretanto, o Presidente russo, Vladimir Putin, continua sem reagir publicamente aos acontecimentos de Kiev, mostrando estar ainda à espera dos seus desenvolvimentos.