Soares dos Reis, o escultor que subiu ao Olimpo e depois desistiu

O escultor de O Desterrado suicidou-se faz hoje 125 anos, na sua casa-atelier em Gaia. A data vai ser assinalada pelo Museu Nacional Soares dos Reis com a actualização da galeria que lhe é dedicada. Mas o principal acontecimento do ano será a publicação do catálogo raisonée da escultura e desenho do artista.

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O Desterrado Adriano Miranda
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Retrato que o Marques de Oliveira fez de Soares dos Reis

A morte, com apenas 41 anos, do “eminente estatuário”, como se lhe referiu o Jornal de Notícias na notícia necrológica, provocou surpresa e consternação no meio artístico portuense e nacional. E mais ainda em alguns amigos mais próximos, como Nicolau de Almeida (da conhecida família de comerciantes de vinhos e pai do fundador do FC Porto) e Eduardo Sequeira (jornalista), que tinham passado a noite da véspera com o autor d’O Desterrado no café Suíço, na Baixa do Porto. Nesse serão, Soares dos Reis tinha descrito o seu projecto para “o maravilhoso monumento” ao Infante D. Henrique, que a Sociedade de Instrução do Porto previa erigir na Praça do Infante (e que acabaria por ser depois projectado por um seu discípulo, Tomás Costa).

O aniversário da morte de Soares dos Reis (Vila Nova de Gaia, 1847-1889) vai ser assinalado, hoje, no Porto e em Gaia. De manhã, às 11h30, com uma romagem, nesta cidade, ao cemitério de Mafamude – em cujo túmulo se encontra uma fundição da sua obra Saudade; às 16h, no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR), com a assinatura de um protocolo entre esta instituição e o Círculo Dr. José de Figueiredo (amigos do museu), a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e a Câmara Municipal de Gaia, com o objectivo de definir o futuro da casa-atelier do escultor, que, desde 1947, é propriedade do Estado.

O vereador da Cultura de Gaia, Delfim Sousa, disse ao PÚBLICO que esta autarquia está disponível para assumir a programação do edifício (projecto do arquitecto José Geraldo Sardinha), que continua fechado e a degradar-se. E acrescenta que tem tido “um diálogo franco e construtivo” com responsáveis da FBAUP, à qual está adstrita a gestão.

No MNSR, serão também inaugurados alguns acrescentos e a actualização da galeria dedicada ao seu patrono. “Vamos acrescentar duas vitrinas com algumas peças pequenas relativas à vida e obra de Soares dos Reis”, diz Maria João Vasconcelos, recém-reconduzida no cargo de directora do museu.

Desenhos, esbocetos, maquetes, um dos teques e a câmara clara que eram usados pelo escultor são alguns exemplos das peças que vão passar a estar expostas, em conjunto com a modelação feita em gesso por Teixeira Lopes (pai) da mão direita de Soares de Reis (que, posteriormente, o filho daquele passaria a mármore) e das (suas) mãos que o próprio escultor usou na preparação d’O Desterrado.

“São peças importantes para explorar as questões da própria escultura, das suas técnicas e fases”, nota a directora do MNSR. O acesso a mais informação sobre Soares dos Reis vai passar também pela instalação de informação virtual em tablets, um sistema que o museu contratou à firma de Guimarães Cicerone, e cuja fiabilidade vai ser testada nos próximos meses. “O nosso objectivo é chegar ao fim do ano tendo disponível para o visitante informação sobre toda a nossa escultura”, diz Maria João Vasconcelos.

No resto, o visitante do MNSR vai continuar a ter a galeria com obras do escultor de acordo com o arranjo projectado pelo arquitecto Fernando Távora aquando da remodelação do velho Palácio dos Carrancas nos anos 1990. “Não quis alterar a forma como o arquitecto Távora tratou a escultura, que, de resto, não fez grandes mudanças em relação ao que já existia”, justifica a directora. Assim sendo, aí se poderão continuar a admirar as obras mais emblemáticas do escultor: O Desterrado, Conde de Ferreira, Brotero, Flor Agreste, A Inglesa, Fontes Pereira de Melo, etc…

Escultura e desenhos
Mas o acontecimento que deverá marcar a programação deste ano – em que o MNSR associa os 125 anos da morte do seu patrono com os 180 anos da fundação da instituição (ver PÚBLICO de 1/12/2013) – será a há muito esperada publicação do catálogo com a obra (quase) integral de Soares dos Reis. “Vai ser uma espécie de catálogo raisonné, que será exaustivo relativamente à escultura e desenho do artista”, diz Paula Leite Santos, conservadora do MNSR na área da Escultura, e responsável pela organização da publicação em parceria com Paulo Henriques, historiador de arte e ex-director dos museus do Azulejo, Arte Antiga e do Chiado, em Lisboa.

De fora ficará apenas a pintura, “porque é minoritária e irrelevante na obra do artista” – diz aquela investigadora –, que no MNSR está representada em mais de uma centena de peças de escultura e mais do dobro de desenhos.

Não há ainda a garantia de que o volume possa ser editado em 2014, mas esse é o objectivo das responsáveis do museu. Trata-se, de resto, da concretização de um projecto lançado já em 1997, aquando do 150.º aniversário do nascimento do escultor, e no qual Paula Leite Santos vem trabalhando desde essa data.

A historiadora explica que a publicação vai mostrar, nos casos em que isso for possível, “o faseamento da criação das obras: o desenho, a maqueta em barro ou em gesso e depois a obra final, em mármore, pedra de lioz, granito ou bronze”. Será também feita “a actualização da localização das obras” do escultor – que, para além do museu nacional portuense, está representado no Museu do Chiado, na Casa-Museu Teixeira Lopes (Gaia) e no Museu Malhoa (Caldas da Rainha), além de em colecções privadas e no espaço público, sendo as estátuas de D. Afonso Henriques (Guimarães) e de Brotero (Coimbra) as mais conhecidas.

A par da Europa
Sobre as revelações que este trabalho de quase duas décadas está a proporcionar aos autores do catálogo, Paula Leite Santos realça sobretudo a possibilidade de “comparar a qualidade da criação de Soares dos Reis com o contexto internacional”, principalmente em França e em Itália, países em que o escultor completou a sua formação entre 1867-72, depois do curso na Academia Portuense de Belas-Artes – Soares dos Reis foi, de resto, o primeiro pensionista de escultura da escola do Porto em Paris, tendo sido acompanhado pelo arquitecto José Sardinha.

Sobre a evolução da obra do autor d’O Desterrado – esculpido em 1872, em Roma, como trabalho de fim de pensionato –, a conservadora do MNSR nota que ele começa por ter “uma formação muito exigente no tratamento da figura humana”, o que pressupunha um grande domínio tanto do desenho como da anatomia. “Soares dos Reis esteve sempre à altura, e muitas vezes ultrapassou as expectativas dos seus colegas, tanto em Paris como em Roma”.

Paula Leite Santos mostra-se convencida de que a carreia do escultor gaiense seria diferente se tivesse sido desenvolvida no estrangeiro. “No regresso a Portugal, o tipo de encomendas que Soares dos Reis vai receber – sobretudo peças para canteiros e arte funerária – decepcionam-no um pouco, e aí ele mantém-se muito preso às exigências de um neoclassicismo de escola”.

A historiadora vê na estátua do Conde de Ferreira (1876) o anúncio do que será uma carreira notável como retratista, que apurará nos anos 80. “Nós vemo-lo evoluir, com uma certa rapidez, para o retrato naturalista e até, de certo modo, como no caso do Busto da Inglesa, para o hiper-realismo, de que José Augusto França diz tratar-se de um retrato que já está para além do real”.

O episódio do retrato da Inglesa, que acabará por ser uma das suas últimas obras, é bem ilustrativo dos dissabores profissionais e artísticos que, associados a um quadro fortemente depressivo que já vinha de trás, muito provavelmente viriam a precipitar o suicídio.

A Inglesa em causa era Mrs. Elisa Leech, mãe de um ministro inglês em Berlim que, de passagem pelo Porto, conheceu Soares dos Reis num jantar em casa de Nicolau de Almeida, tendo-o contratado para lhe esculpir o busto. Estávamos no final de 1887, o escultor interrompeu as aulas na Academia Portuense de Belas-Artes e radicou-se em Lisboa durante dois meses para executar o trabalho. No final, a Inglesa pagou as cem libras contratualizadas com o artista, mas, certamente porque não gostou de se ver representada numa expressão tão severa, nunca foi levantar o retrato.

“Foi uma recusa que certamente marcou Soares dos Reis”, diz Paula Santos, recordando que ela veio somar-se a outras recusas, como a do busto de Joaquim Pinto Leite, a substituição do rosto da Virgem que tinha esculpido para a Igreja de N. Sra. da Vitória, no Porto, ou ainda a derrota no concurso para o monumento aos Restauradores, em Lisboa.

“Ele tinha consciência do valor do seu trabalho, e lidava mal com a frustração – até porque, também financeiramente, as coisas começaram a não correr bem”, diz Paula Santos, que vê na sua morte trágica “uma desistência”.

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