Os médicos que matam a esperança

As pessoas sujeitas a cancro podem facilmente vivenciar uma situação de stress pós-traumático. Que médicos pensarão nisso?

Como muitos saberão, o filme baseia-se pelo menos no facto real de ter havido pirataria ao largo da Somália. Resumidamente: o navio de carga é assaltado pelos piratas e o nosso capitão Tom Hanks é feito refém.

Os militares americanos acabam por matar os piratas e salvar o capitão, mas ele, depois de uma fase de grande autocontrolo, já se encontra muito abalado, em estado de choque. A bordo do navio militar, uma enfermeira faz-lhe algumas perguntas para ver como reage. No final, repete-lhe, enquanto o deita numa cama: “You’re safe, now, captain, you’re safe!”. Ao ouvir estas palavras, as lágrimas começaram a correr-me pelo rosto. De repente, vi à minha frente a sala de espera do IPO, os rostos de tristeza com que lá me deparei, o rol de ameaças de morte precoce que os médicos me dirigiram, as biopsias que tive de fazer, as tentativas de concretizar o tratamento paliativo que me ofereciam, enquanto esperaria a morte, a necessidade de me aposentar da Universidade por “incapacidade”, as dores fortes que tenho tido por causa da mastectomia funda a que fui submetida, toda esta necessidade de manter o medo sob controlo, num país em que nem sequer tenho a possibilidade de uma morte assistida legal se tudo correr pelo pior. E, de repente, só quis que alguém me deitasse também numa cama para descansar e me dissesse: “You’re safe, now, Laura, you’re safe!”.

Não sei por que artes mágicas aqueles médicos que me ameaçaram de morte precoce sabiam exactamente de que lado das estatísticas é que eu me encontrava. Quando desconfiavam de que eu pretendia “saber mais”, pareciam ter um gosto macabro em transmitir-me a sentença, como se dissessem: “Nem lhe passe pela cabeça que pode escapar! A não ser que morra atropelada ou de AVC fulminante, tem o destino marcado: morte precoce”. Aquando das idas ao IPO, passei a lembrar-me das “palavras em letreiro escuro escritas [...] por cima de uma porta [a do Inferno]: 'Deixai toda a esperança, vós que entrais'”. Cada ida ao IPO era seguida de um bom filme no Arrábida, num exercício delicado de “espanta-espíritos”.

Recordo-me do comentário sádico de uma médica não-oncologista: sabia de alguém em situação semelhante à minha que se “safara”, mas em que Nossa Senhora de Fátima estivera muito “metida”. A mensagem implícita era: “Como não me parece que tenhas grande devoção por Fátima, prepara-te, pois vais mesmo morrer”.

Em tempos, numa revista belga ligada a questões oncológicas, li um artigo em que se mostrava como as pessoas sujeitas a cancro podiam facilmente vivenciar uma situação de stress pós-traumático. Que médicos pensarão nisto? E, se pensam, como é que isso altera a sua relação com os doentes? E que conhecimento deste stress têm os responsáveis pelas instituições? Lembro-me do terror que representava para mim o início de um novo ano lectivo na Universidade. Precisava de um horário “aconchegado”, por causa das debilidades que ia apresentando, mas como obtê-lo, sobretudo quando do outro lado havia sobretudo indiferença ou má vontade?

Um psi, percebendo bem os meus desabafos amargos, deu-me a consolação possível. Há muitos anos, o pai, anátomo-patologista, verificara em lâmina o cancro perigoso de uma amiga da família. Porém, o cancro desaparecera depois, sem deixar rasto e sem tratamento. Aquele médico não estava a dizer que eu me iria “safar”, mas também não se atrevia a tirar-me a esperança – havia o que a medicina ainda não sabia explicar. Aos médicos que se arvoram em deuses e se permitem ditar, despudoradamente, sentenças de morte a pessoas de quem só conhecem uns tantos exames que decerto um dia serão considerados primitivos, a esses médicos talvez fosse recomendável que se deitassem no divã do psicanalista. Ao menos, a bem dos seus doentes.

Docente aposentada da Universidade do Minho (laura.laura@mail.telepac.pt)
 
 
 
 

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