Daft Punk ou a América a reconciliar-se com a música de dança

As grandes influências dos franceses sempre foram americanas. Agora, a América entroniza-os nos Grammy ao mesmo tempo que se reconcilia com a memória da cultura da música de dança.

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Os Daft Punk assumem-se como produto, numa lógica onde música, imagem e marketing fazem parte do processo criativo

Em todas as entrevistas faziam questão de sublinhar a influência que cidades americanas como Detroit ou Chicago, berços das músicas tecno e house, haviam tido no seu desenvolvimento artístico. Dir-se-ia que haviam crescido em Paris, mais exactamente no subúrbio chique de Versalhes, tal como os conterrâneos Air e Phoenix, mas o seu imaginário era americano.

O irónico é que para o grande público americano linguagens como o tecno de Detroit ou o house de Chicago e pioneiros como Larry Heard ou Juan Atkins eram (e são) ilustres desconhecidos. Até a história da música "disco", que foi um fenómeno de massas na segunda metade dos anos 1979 nos EUA, foi sempre mal contada.

Conhecem-se filmes como A Febre de Sábado à Noite, espaços nocturnos como o Studio 54 ou os sucessos dos Village People e Boney M, mas as movimentações mais relevantes sucederam em espaços obscuros, originadas por gente que passou anónima (de David Mancuso a Arthur Russell). Na época, o rock era considerado a música rebelde, mas é difícil imaginar outra tipologia que tivesse abalado tantos preconceitos raciais e a moral dominante como a música "disco".

A cultura da música de dança foi credibilizada e disseminou-se na Europa desde o final dos anos 1980, mas os EUA viveram de costas voltadas para o fenómeno. Até agora. Foram precisos cerca de 30 anos para deixar as franjas e conquistar o mercado de massas nos Estados Unidos.

Durante a década de 1990 e parte dos anos 2000, as rádios eram hostis à música de dança, a não ser que tivesse uma estrutura convencional de canção (dos Prodigy a Madonna). Ao mesmo tempo as grandes editoras não sabiam trabalhar projectos que possuíam um posicionamento mediático diferente do dos grupos rock, passando ao lado dos grandes palcos ou apostando num certo anonimato, como os Daft Punk.

Por outro lado existia uma associação estigmatizante entre o tecno e o consumo de estupefacientes. Resultado? A maior parte dos DJ e produtores americanos se queriam ter uma existência material decente tinham que actuar regularmente na Europa.

Para a maior parte dos observadores, houve um momento de mudança: a actuação dos Daft Punk, em 2006, no mais importante festival americano, o Coachella, no cimo de uma pirâmide. Foi a partir daí que projectos como Deadmau5 começaram a propor entretenimento audiovisual em espectáculos de massas. E nos dois últimos anos tornou-se normal ver DJs e produtores como Skrillex, Calvin Harris ou Steve Aoki partilhar os palcos com bandas rock nos grandes festivais do país.

Não espanta que o álbum do ano passado dos Daft Punk, Random Access Memories, tenha obtido enorme impacto global, com incidência no mercado americano. Era um disco que procurava regressar às raízes, à essência, da música de dança, numa era onde tudo está acessível e parece homogeneizado.

Era uma lição de história dos franceses ao grande público americano que pode ter ouvido falar de Giorgio Moroder, mas não sabe verdadeiramente qual o seu papel na implantação da música "disco" nos anos 1970, ou que já dançou ao som dos Chic de Nile Rodgers, mas que não percebe na totalidade o seu alcance na música popular das últimas décadas.

Mas a ascendência americana nos Daft Punk não é apenas sonora. Se existe alguém que percebeu a forma de actuar de Andy Warhol foram eles. Sabem que, para subverter o supermercado, têm de estar dentro dele, assumindo-se como produto, numa lógica onde música, imagem e marketing fazem parte do processo criativo, sendo por eles controlado.

Em 1980, em Chicago, milhares de adeptos do rock fizeram uma manifestação que haveria de ficar célebre por terem sido queimados milhares de singles de música "disco" em plena rua. Na altura, a palavra de ordem era "disco sucks!". A música de dança era vista como qualquer coisa de superficial, descartável e alienante.

Mais de três décadas depois, a América reconcilia-se com a sua própria memória, vendo os franceses no palco dos Grammy com os americanos Stevie Wonder, Nile Rodgers e Pharrell Williams, a interpretarem a canção "disco" mais ouvida do último ano (Get lucky) e entregando quatro Grammys aos Daft Punk.


 
 
 
 
 
 

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