Indonésia quis conhecer estaleiros de Viana mas Portugal não respondeu
País asiático tinha em vista uma encomenda para a construção de navios-patrulha. Ana Gomes, primeira embaixadora portuguesa em Jacarta, revelou ao PÚBLICO o episódio que ocorreu entre 2002 e 2004.
“Bastava convidá-los, mas nada foi feito”, salientou a actual eurodeputada socialista, referindo-se a um convite de Portugal às autoridades indonésias para visitarem as instalações. O primeiro passo normal de um negócio deste tipo que, no entanto, nunca se chegou a verificar para surpresa da diplomata.
Para além do âmbito comercial, a construção dos navios patrulhas de grandes dimensões que transportavam helicópteros, tinha uma importante dimensão diplomática. Com aquela potencial encomenda, Lisboa e Jacarta traduziriam o novo relacionamento depois da ocupação da Indonésia de Timor-Leste. Um símbolo de cooperação, ainda mais no domínio militar, portanto de redobrado significado do novo tempo entre os dois países.
Então, a diplomata Ana Gomes não pensava que, 13 anos depois, os estaleiros de Viana a viriam a ocupar. Em carta de 20 de Dezembro a Joaquin Almunia, vice-presidente da Comissão Europeia e comissário para a Concorrência, relatou em três páginas ter enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR) uma queixa-crime contra pessoas incertas por suspeita da prática dos crimes de corrupção, tráfico de influência, abuso de poder e favorecimento de interesses privados. Trata-se de delitos que a eurodeputada atribui à subconcessão pelo Estado português dos terrenos e infra-estruturas dos ENVC à Navalria/Martifer.
Na carta à PGR, da mesma data, Ana Gomes articula em 58 pontos os fundamentos da sua queixa. Destaca que o comissário Almunia se mostrou surpreendido pelo Governo português nunca ter invocado junto de Bruxelas o facto de os ENVC construírem navios para a Marinha portuguesa. O que, como o PÚBLICO revelou na edição de passado domingo, permitiu aos estaleiros públicos de Navantia, em Ferrol, Galiza, sobreviverem e terem uma carga de trabalho garantida por encomendas da Turquia. Segundo a eurodeputada socialista, com a justificação desta contrapartida para o quadro de segurança europeia, as ajudas de Estado passavam a ter um enquadramento diferente.
“O Governo português nunca utilizou este argumento, que o comissário Almunia considera de peso e a que os gregos recorreram”, observa Ana Gomes. “Aliás, o que ministro da Defesa, Aguiar-Branco, fez foi cancelar os contratos de construção da marinha portuguesa”, destaca. Aos ENVC foram retiradas as encomendas de oito patrulhas oceânicos da mesma classe dos já botados Viana do Castelo e Figueira da Foz, dois dos quais destinados ao combate à poluição e balizagem, e oito lanchas de fiscalização costeira. Missões que são agora realizadas por navios com 40 anos de vida, alguns desenhados para navegarem nos rios de África durante a guerra colonial. Dos estaleiros de Viana devia sair ainda um navio polivalente logístico para os três ramos e transporte de helicópteros, um projecto alemão no âmbito das contrapartidas dos submarinos.
“Outra forma de explicar as ajudas públicas aos estaleiros era declarar a empresa em dificuldades e apresentar um plano de reestruturação, como estava previsto em 2009 com o Governo Sócrates”, salientou a eurodeputada. Então, entraria em vigor o sistema de tax lease que permitiu a recuperação dos estaleiros de Vigo, a escassos 100 quilómetros de Viana do Castelo.
“Quem levanta a lebre sobre a situação dos estaleiros em Bruxelas é o Governo português quando comunica estar em curso um processo de privatização”, revela. Segue-se a abertura de um processo de infracção à privatização, em Abril de 2013. A eurodeputada contesta a exigência de devolução de 181 milhões de euros, argumentada pelo executivo. “Devolver a quem? Do Estado (ENVC) ao Estado (administração). É uma operação contabilística, não há qualquer devolução à Europa”, garante.
Sobre o contrato de subconcessão à Martifer, Ana Gomes destaca que o caderno de encargos não previa a obrigação de manter postos de trabalho nem de manter a construção naval, apenas a reparação. A subconcessão, acusa ainda, também não prevê o recurso à decisão arbitral ou a tribunais estaduais.
Não menos importante é o facto de “o Estado estar a passar carga de trabalho para a nova empresa” com os dois asfalteiros para a Venezuela, quando o negócio foi feito Estado a Estado. “Isto é uma matéria de intervenção para a Comissão Europeia”, garante.
“O PS deve aprovar uma comissão de inquérito ao processo de subcontratação dos Estaleiros de Viana do Castelo, mesmo que a maioria imponha uma análise desde 2000, incluindo a acção dos governos socialistas”, afirma. “Houve erros de gestão desde há muito tempo”, admite. “É bom que se esclareça tudo, do Atlântida aos asfalteiros da Venezuela, o PS nada tem a esconder, se existiram erros de gestão, assumem-se”, concluiu.