Visita relâmpago ao bairro de Eusébio
Em Maputo, uma associação de jovens guia visitas para lá da cidade de cimento. Mafalala é um lugar mítico, como o Soweto. (Este texto foi publicado originalmente na revista Fugas, em Março de 2013)
O guia, Ivan Laranjeira, elege a avenida Marien Ngouabi como ponto de partida. Desenrola um mapa: “No século XX, os portugueses fizeram um plano de expansão. Pegaram num compasso e fizeram um arco, que passa pela avenida Marien Ngouabi. Num lado, as casas de cimento. Do outro, as casas de caniço. Os portugueses precisavam de força de trabalho e a força de trabalho não podia estar longe. Atrás da linha, ficavam os moçambicanos. Para passar, tinham de ter um passe.”
Na sua biografia, intitulada Vidas, Lugares e Tempos, Joaquim Chissano, que sucedeu a Samora Machel na presidência, dá detalhes sobre esses tempos: “O racismo em Moçambique, nos anos quarenta e cinquenta, era, quanto a mim, pior que o apartheid na África do Sul. A lei dizia que não havia segregação racial. Portugal era uno e indivisível, era inter-racial, etc. Mas tudo estava bem separado.” Foi o primeiro a entrar no Liceu Salazar, actual Escola Secundária Josina Machel.
O nome do bairro é uma deformação da palavra Li fa-la-la, uma dança dos macua, povo originário do Norte de Moçambique. “Era praticada nos tempos coloniais por pessoas provenientes da Ilha de Moçambique”, explica Ivan. “Quando as pessoas queriam referir este sítio em ronga, a língua tradicional de Maputo, diziam ka mafalala, ‘onde se dança m”falala’. Com o tempo, ficou Mafalala.”
José Craveirinha viveu na fronteira, a que chamava estrada da circunvalação. Prestava muita atenção à diversidade, que ainda hoje é uma marca do bairro, com 21 mil pessoas alojadas em casas de madeira e zinco. A língua oficial é o português, mas as famílias queixam-se da falta de emprego e da alta de preços numa das várias línguas bantu: tsonga, chope, tonga, sena, shona, nyungwe, chuwabo, macua, koti, lomwe, nyanja, yao, maconde e mwani.
Ivan conduz-nos pelas ruas estreitas, por vezes estreitíssimas. Quando chove, fica tudo alagado. Soltam-se as tampas das fossas. Circular torna-se penoso ou mesmo impossível. Hoje, está sol. Cheira a comida. Cozinha-se a carvão. E há miúdos a saltar à corda, mulheres a transportar água em bidons, homens a beber putso, uma aguardente de arroz e farinha compacta.
Pára numa rua que já foi morada de Noémia de Sousa, que apresenta como “a pioneira da literatura moçambicana”. Entre 1949 e 1952, escreveu dezenas de poemas. Deixou de o fazer quando foi enviada para Lisboa, mas a sua poesia continuou a ecoar como um grito contra a opressão. O seu caderno, policopiado, influenciou muitos outros a baterem-se pela libertação dos povos africanos.
É atrás desta memória colectiva que cada vez mais estrangeiros vêm ao bairro. No 2012, a Associação Iverca - turismo, cultura e meio ambiente, criada por Ivan e dois colegas da Escola Superior de Economia e Gestão, guiou mais de 2500 pessoas. Entram ali como quem entra no Soweto, em Joanesburgo.
O tour inclui uma passagem pelas ruas que chegaram a ser de Samora Machel, Joaquim Chissano e Pascoal Mocumbi, mas Mafalala não é só política. Daqui saíram grandes jogadores de futebol, como Eusébio ou Hilário. Passámos em frente ao “campinho”, onde tantas vezes jogaram.
Os estudos entusiasmavam pouco o rapaz nascido a 25 de Janeiro de 1942. Amiúde, Eusébio faltava às aulas para jogar à bola. A sua habilidade espantava. Ele sonhava com o Desportivo, mas o facto de ser negro barrava-lhe a entrada. Entrou no Sporting de Lourenço Marques. Aos 16 anos, consagrou-se campeão.
A sua história ainda inspira muitos miúdos do bairro, onde se formam filas para entrar no jogo. O “campinho” é ainda agora um campo de terra batida com uma baliza sem rede em cada ponta. De lá parte a Rua Eusébio da Silva Ferreira, que percorremos, no encalço do grupo Tufo de Mafalala.
Homens tocam, sentados no chão, mulheres dançam, usando vestes coloridas, anéis, pulseiras e colares de metais preciosos, algumas com o rosto coberto com mussiro. Elas dizem-se muthianas horeras, que quer dizer “mulheres bonitas”. Muitas vezes, actuam em cerimónias oficiais. Vão mostrar a políticos vindos de outras paragens um pouco do que é ser moçambicano. Na certeza de que, para perceber Maputo, o melhor é vir até cá, onde termina a cidade de cimento, e andar por aí, por vezes agarrado à parede, e acabar a tomar uma Lourentina no bar do Lima, como nós.