Se a guerra síria chega ao Líbano “é o fim” dos cristãos no Médio Oriente
Iraque e Síria partilham fronteira e feridas de guerra, abertas e em sangue. Os iraquianos fugiram para a Síria, agora os sírios fogem para o Iraque. Muitos cristãos desapareceram da região
Shlemon Warduni é o bispo auxiliar do dos caldeus em Bagdad. Samir Nassar é arcebispo maronita de Damasco. Ambos passaram por Portugal esta semana trazidos pela AIS - Ajuda à Igreja que Sofre, o iraquiano veio de Roma, onde participou no encontro de Francisco com os líderes católicos; o arcebispo sírio nascido no Líbano veio directo da sua cidade em guerra.
Warduni sabe que o pior não passou no Iraque, onde os carros armadilhados voltaram a ser parte do quotidiano. Responsabiliza, e muito, os poderes ocidentais. “Os países ocidentais não põem em primeiro lugar os direitos humanos, há tantos interesses. Vender armas, por exemplo, isso é um grande pecado. Todos os que não trabalham pela paz e pela segurança são co-responsáveis pela nossa desgraça. Essa é a nossa experiência, desde as sanções”, diz Warduni, que nasceu em Mossul, no Norte do Iraque, e é bispo auxiliar do patriarca da Babilónia dos caldeus desde 2001.
O bispo recorda os anos entre a guerra de 1991 para expulsar Saddam Hussein do Kuwait e a invasão anglo-americana que derrubou o ditador, em 2003. “Quando não havia um pouco de açúcar, quando operávamos com linhas de costura.” Warduni diz que o tempo das guerras passou há muito, por isso é que “o Senhor sofreu”. “Posso fazer sofrer os outros e dizer que amo Deus? Não posso. Deus não quer que as pessoas morram de fome”, diz, e agora está a pensar nas Nações Unidas, que geriram o regime de sanções imposto à ditadura mas sofrido pelos iraquianos que menos tinham.
Agora, diz o iraquiano, são os sírios que experimentam a vida de iraquiano. “Não há pior do que a fome. Com fome o homem pode fazer tudo.”
Samir Nassar viveu de perto as consequências da guerra no Iraque, antes de a guerra chegar à Síria. “Cheguei a Damasco em 2006, havia um milhão de iraquianos em Damasco, enchiam as nossas igrejas, as nossas escolas. Os cristãos sírios viam os iraquianos. ‘Hoje somos nós, amanhã serão vocês’, eu não acreditava nisso, mas eles tinham uma intuição.”
País de acolhimento
É um dos aspectos que mais entristece Nassar: “A Síria é um país de acolhimento, acolheu refugiados arménios, curdos, iraquianos, palestinianos, libaneses. E agora, os sírios tornaram-se refugiados e têm muita dificuldade em encontrar países de acolhimento. Isso é muito duro. Acolheram toda a gente e agora não encontram quem os acolha”, afirma. E depois, conta como ainda este sábado de manhã “soube que um barco naufragou entre a Turquia e a Grécia com refugiados sírios, cinco pessoas morreram afogadas a tentar chegar à Europa”.
A Síria não era apenas um país de acolhimento, era um país plural, como todos na região, mas onde algumas minorias podiam viver as suas diferenças. Os cristãos tinham essa sorte. “Damasco é uma cidade belíssima, a cidade da conversão de S. Paulo, onde ele foi baptizado e convertido. Há igrejas vivas em Damasco, há comunidades cristãs vivas em Damasco, que existem desde sempre”, diz, e tem razão. Em Alepo, antes de 2011, essa vida cristã era ainda mais evidente do que em Damasco.
Nassar diz que os cristãos não são um alvo especial das partes envolvidas na guerra síria, foram apenas apanhados por ela. É isso e é mais do que isso. As minorias são perseguidas, é a história das ditaduras e das guerras, não são precisos radicais islamistas como os que entraram no Iraque depois da invasão de 2003 e na Síria depois da revolta de 2011 para fazer isto acontecer. Na Síria, tal como antes, no Iraque, estes radicais, a maioria árabes sunitas, matam quando podem cristãos, mas também árabes xiitas, curdos, yazidis. Para os extremistas, são infiéis, por igual.
Cidades Mortas
Warduni e Nassar partilham muitas experiencias mas têm a experiência de duas igrejas muito diferentes e, talvez por isso, olham para o futuro e o que um vê está distante do que o outro antecipa. “Os cristãos iraquianos são muito bem formados, mostram a sua piedade, a sua fé, fazem procissões. Os sírios são mais discretos”, diz o arcebispo maronita de Damasco. E enquanto Warduni fala de diálogo verdadeiro entre confissões, de orações conjuntas, Nassar diz que entre os sírios “havia o diálogo da vida, o quotidiano partilhado, não um verdadeiro diálogo doutrinal ou teológico”.
O iraquiano não imagina um Iraque sem cristãos nem sem nenhuma das comunidades étnicas e religiosas que fazem o Iraque. “Para nós não há melhor do que o Iraque. O Iraque tem tudo de bom, bastava o turismo para sermos ricos”, diz. O turismo que um dia pode chegar, basta a segurança chegar entretanto. “Nós amamos a nossa terra de uma forma muito especial, só não ficamos se não pudermos, e quando pudermos, voltamos. Nós, os cristãos, somos as flores do jardim que é o Iraque.”
O arcebispo de Damasco não acredita que a maioria dos refugiados regresse algum dia a casa. E então, admite um cenário onde a guerra continue e os cristãos desapareçam de vez, da Síria e de toda a região. “Na Síria, há as Cidades Mortas [700 localidades históricas abandonadas], um dia vai ser assim, vamos passear pelo país e dizer, ‘ali, havia cristãos’.”
“Ontem foi a igreja do Iraque, hoje é a igreja da Síria e amanhã será a igreja do Líbano. Se a igreja do Líbano desaparece é o fim dos cristãos no Oriente. É a igreja do Líbano que suporta todas as outras, nós nem temos seminários. Vem tudo do Líbano, mesmo as hóstias para a missa”, descreve Nassar. “Se esta guerra chega ao Líbano acaba a igreja no Médio Oriente.”