A luta pelo Camões não acaba ao cair do pano

Professores, pais e alunos, antigos e actuais, da secundária de Lisboa, juntam-se na terça-feira para uma gala de solidariedade, às 21h30 no Coliseu dos Recreios. Deixam uma promessa: não vão deixar cair o Camões.

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Telas presas às janelas substituem as persianas estragadas Tiago Machado
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Chove em algumas salas de aulas e as paredes acusam anos de infiltrações Tiago Machado
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Escadas dão acesso ao segundo andar: onde antes vivia o reitor com a família funcionam agora salas de estudo Tiago Machado
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Janelas de madeira apodrecida deixam entrar o frio nas salas de aula Tiago Machado
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Ginásio foi palco de vários momentos marcantes do Camões mas agora é a zona mais vulnerável do liceu Tiago Machado
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Os azulejos soltos nas paredes atestam a degradação do imóvel Tiago Machado
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Campo de jogos está fechado há oito anos porque um dos muros cedeu Tiago Machado

Em 104 anos, aquele que foi o primeiro liceu – agora escola secundária – a ter um edifício construído de raiz em Lisboa nunca teve obras de fundo e as marcas do tempo estão a pôr em risco a segurança dos que o frequentam. Enquanto esperam por uma intervenção que ninguém sabe quando (e se) irá avançar, professores, pais e alunos, actuais e antigos, recusam baixar os braços.

Na terça-feira às 21h30, o Coliseu dos Recreios em Lisboa será palco de uma gala cujo objectivo é angariar pelo menos 20 mil euros – tanto quanto vai custar esta iniciativa patrocinada por privados – para a reparação urgente das janelas e do escudo que está sobre a porta principal, cheio de fissuras, em risco de queda.

Entre concertos, peças de teatro, dança e testemunhos de actuais e antigos alunos – entre eles nomes como Durão Barroso, Mariano Gago, Nicolau Breyner, Luís Miguel Cintra ou Júlio Isidro, entre muitos outros – a organização quer mostrar que o edifício projectado por Ventura Terra, classificado em Dezembro como monumento de interesse público, é feito de mais do que paredes e tectos a cair.

Obras suspensas

A requalificação da escola secundária, a cargo da Parque Escolar, chegou a ter início marcado para Agosto de 2011 mas foi suspensa, sem data para avançar. Para executar o projecto da autoria do arquitecto Falcão de Campos são precisos 18 milhões de euros. Um valor que “não está previsto” no orçamento da empresa pública para 2014, adianta ao PÚBLICO o seu gabinete de comunicação, não revelando quando é que a intervenção poderá avançar.

O relatório do Orçamento do Estado para 2014 prevê um acréscimo nas transferências para a Parque Escolar em 105,7 milhões de euros mas não refere o valor global do orçamento. Em Outubro, “fonte oficial” da empresa revelava ao Diário Económico que em 2014 seriam investidos 330 milhões em 22 escolas. Mas a secundária de Camões, onde estudam 1700 alunos do 10.º ao 12.º ano, incluindo ensino nocturno e cursos profissionais, não é uma delas.

Nada de novo para o director da escola, João Jaime Pires. Há algum tempo que este professor de Matemática, apenas um dos muitos rostos da luta pela requalificação do liceu, percebeu que o projecto “morreu na praia”. “Na primeira reunião com o ministro Nuno Crato percebemos que em 2012 e em 2013 não haveria condições. Mas hoje não percebemos. Não é um problema de dinheiro. Há um critério escondido do qual ninguém fala”, lamenta.

João Jaime Pires considera que o liceu foi “usado” pela Parque Escolar, em particular pelo antigo presidente Sintra Nunes (ex-aluno do Camões), para “prolongar” a actividade da empresa. “Só faz sentido haver Parque Escolar enquanto houver edifícios de grandiosidade como o Camões ou a escola Alexandre Herculano, no Porto, para requalificar”, sustenta.

Quem espera, desespera. No ano passado, a associação de pais conseguiu dinheiro para pintar as paredes das salas. Comprou telas para tapar as janelas sem persiana porque os alunos não viam o quadro, com a luz do sol. “No Inverno os miúdos estão de casaco vestido porque as janelas, apodrecidas, deixam passar o frio”, descreve a presidente da associação, Paula Soares. Inscreveu as duas filhas na secundária, que este ano ficou em 98.º no ranking do PÚBLICO entre as escolas com mais de 50 provas realizadas e em 7.º lugar entre as escolas de Lisboa.

Podia tê-las matriculado noutra escola ou até num colégio privado. Mas “esta escola é única”, argumenta. Porquê? Desfia uma lista de razões: por ser das poucas escolas apenas com ensino secundário em Lisboa e Paula Soares é contra os agrupamentos, porque os alunos têm “espaços de reflexão, ciclos de cinema, projectos de solidariedade” e “saem do liceu a saber pensar”. Além disso, o corpo docente é estável e o edifício fica situado numa zona bem servida de transportes públicos. “É tranquilizador”, remata.

“O que é realmente importante é a estrutura do edifício, sem corredores, com as salas de aula viradas para o pátio, para um espaço de liberdade”, resume por seu turno João Jaime Pires. E sublinha que, apesar das más condições do edifício, todos os anos há uma enchente de alunos a querer entrar na escola.

Proibido correr

Os anos pesam no Camões e isso vê-se por todo o lado, apesar dos remendos que se vão fazendo aqui e ali. Vê-se nas paredes rachadas, nos tectos forrados de cortiça a desfazer-se, nas persianas emperradas, no emblemático ginásio – simultaneamente palco de festas, projecções de cinema e discursos (como o de Salazar, a 11 de Março de 1938) e sala de ginástica – cheio de infiltrações.

Era no ginásio que antigamente se faziam os exames de admissão ao liceu. O apresentador Júlio Isidro, que entrou para o Camões aos dez anos em 1955, recorda bem o seu. Teve “zero erros” no ditado. Era o aluno número 27 de uma turma de 42. Da gaveta das memórias vai tirando as que o marcaram mais, numa visita à escola com o PÚBLICO, acompanhado por Ricardo Silva, aluno do 12.º, um dos fundadores do Movimento Camoniano (grupo de alunos que dinamiza a escola, a par da associação de estudantes) e aspirante a militar da Força Aérea.

Além da obrigatoriedade de usar gravata, era a proibição de correr no pátio que mais chateava o menino Júlio. “Às vezes dava dois passos e olhava com medo para as galerias para ver se estava o reitor, com a sua gabardina cinzenta e o chaveiro a tilintar pendurado no dedo.”

Proibido correr e jogar à bola, para “evitar prejuízos de várias espécies”, justificava o reitor Sérvulo Correia, personalidade controversa e exigente, numa nota interna de 27 de Janeiro de 1960, na qual reprovava o comportamento do aluno António Dias Ferreira (que viria a ser presidente do Sporting). Na tarde anterior, tinha levado para a escola um balão, que utilizou como bola. “E, como se isso não bastasse, teve para com o empregado [então designado “pessoal menor”] que lhe pediu o balão uma atitude pouco correcta e desrespeitosa.” Resultado: um dia de suspensão.

Hoje, os alunos têm mais liberdade mas continuam sem poder correr e jogar à bola. O campo de jogos está fechado há oito anos porque o muro que o circunda cedeu. Até já podia ter sido arranjado, mas à semelhança de outras intervenções, ficou suspenso à espera das obras da Parque Escolar. De edifício modelar à época em que foi inaugurado, em 1909, o Camões passou a liceu remediado. As salas de estudo, por exemplo, ficam na antiga casa do reitor, onde este vivia com a família, no segundo andar do edifício.

“Piolhos verdes”

O fim da figura do reitor foi uma das conquistas de Abril. É que a história do liceu anda de mãos dadas com a história do país, como retrata o livro Liceu de Camões – 100 anos, 100 Testemunhos, de Sarah Adamopoulos e José Luís Falcão de Vasconcellos. Nos corredores do liceu respirava-se o mesmo medo que se vivia nas ruas, durante o Estado Novo. “Tínhamos aqui a PIDE”, conta Júlio Isidro.

Às quartas-feiras e sábados à tarde, os alunos – o liceu foi unicamente masculino entre 1936 e 1971 – tinham de participar nas paradas da Mocidade Portuguesa no pátio, sob pena de chumbarem por faltas. O apresentador recorda o fascínio que, ainda inocente, tinha por toda a encenação. “Usávamos uns calções caqui apertados por um cinto com um S na fivela, que significava Servir Salazar.” A camisa verde e a gravata compunham o resto da farda. “Chamávamo-nos uns aos outros piolhos verdes”, diz.

Júlio Isidro foi aluno de notáveis como Vergílio Ferreira e Mário Dionísio. Lembra-se de ter falado uma única vez com o reitor, para ser interrogado sobre um “acidente” no laboratório de Química. Ricardo Silva não imagina o que seria não poder hoje falar com o director. “Não existe distância” entre alunos e direcção e isso compensa as salas frias e as paredes a cair, garante.

Ricardo Silva vai estar na terça-feira a ajudar na organização da gala, que envolve toda a comunidade escolar dentro e fora das aulas. Está tudo a trabalhar para um objectivo comum, gravado na faixa pendurada a entrada da escola, que cita um verso de Camões: “É fraqueza desisir da cousa começada”.

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