"Papá, por favor, ajude-nos, nós precisamos de paz"

Renamo respondeu à tomada pelas Forças Armadas da base onde vivia o seu líder, Afonso Dhlakama, com ataque a posto de polícia. Antigos rebeldes anunciaram o fim do tratado de paz de 1992 mas admitem não retaliar se o Exército retirar. Apesar de duas décadas de paz, a reconciliação em Moçambique está por fazer.

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Elementos da Renamo na Gorongosa, em 2012 JINTY JACKSON/AFP

Tinham passado poucas horas mas em Chibabava já todos sabiam dos ataques dos dois últimos dias, a uns 300 quilómetros de Mucheve, que trouxeram de volta o receio da guerra a Moçambique. Primeiro, ao início da tarde de segunda-feira, foi a ofensiva das Forças Armadas contra uma base do principal partido da oposição e antigo movimento guerrilheiro, a Renamo (Resistência Nacional de Moçambique). Depois a resposta: um ataque de antigos guerrilheiros a um posto da polícia em Marínguè, na província de Sofala, na madrugada desta terça-feira.

O apelo de Lucas, durante um comício, no distrito natal de Afonso Dhlakama, foi relatado ao PÚBLICO por Rodrigues Luís, enviado da Beira pelo jornal estatal Notícias, para acompanhar a presidência aberta que Guebuza está a fazer em Sofala. O chefe de Estado falou na necessidade de diálogo e de paz e justificou a ofensiva das Forças Armadas contra a base da Renamo como uma acção de “defesa”. O que não bastou para afastar comentários de “apreensão” e “medo” que o jornalista ouviu da boca de populares em ndau, a língua local. Comentários de preocupação pelo risco de regresso à guerra civil que o país conheceu durante 16 anos, entre 1976 e 1992.  

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Na segunda-feira, a tensão político-militar agudizou-se depois da ocupação pelas Forças Armadas daquela que era a principal base da Renamo, em Satungira, na Gorongosa, onde Dhlakama estava aquartelado há cerca de um ano. Logo de seguida, o partido da oposição declarou o fim do tratado de paz de 1992. A ocupação, que não causou mortos nem feridos, foi apresentada pelo director nacional da Política de Defesa, Cristóvão Chume, como resposta a uma “provocação" – um ataque, ao fim da manhã de segunda-feira, às forças militares que se encontravam nas imediações do local onde vivia Dhlakama.

A ofensiva das forças governamentais foi feita “porque era preciso parar as pessoas que atacaram, as Forças de Defesa e Segurança perseguiram os homens da Renamo até ao local de onde tinham saído, neste caso onde se localizava o senhor Afonso Dhlakama”, disse Cristóvão Chume, numa conferência de imprensa, em Maputo. “Disparámos contra o inimigo, usando todas as nossas capacidades militares e, em 15 minutos, tomámos a base de Satungira. Estranhamente não encontrámos ninguém, nem morto nem ferido. Acreditamos que o líder da Renamo e os seus homens fugiram para a serra da Gorongosa”, disse fonte das Forças Armadas, citada pelo jornal O País.

Dhlakama "perdeu o controlo"
O porta-voz da Renamo, Fernando Mazanga, acusa o Governo da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) de querer “assassinar a sangue frio Dhlakama”. E anunciou que a tomada da base de Satungira “marca o fim da democracia multipartidária em Moçambique”. O objectivo da Frelimo é “assassinar o presidente Dhlakama, para subjugarem a vontade dos moçambicanos, pois ele jamais permitiria que os moçambicanos ficassem acorrentados na ideologia de partido único”, acusou Mazanga. O líder da Renamo “está de boa saúde e com moral bastante elevado”, garantiu.

Na madrugada desta terça-feira, a Renamo respondeu, com o ataque em Marínguè. “Foi o caos. Durante uma hora ouvimos disparos em todos os sentidos, as pessoas fugiram das suas casas”, contou à AFP Romão Martins, professor. “Felizmente não há nenhum morto”, disse à agência, por telefone, o administrador Anton Absalão. O ataque ocorreu por volta das 4h locais (3h em Portugal Continental), prolongou-se por cerca de uma hora e foi descrito como “intenso” por uma fonte policial ouvida pela Rádio Moçambique. Maríngué fica a cerca de 35 quilómetros da base da Renamo agora ocupada.

Fernando Mazanga admitiu que os antigos rebeldes estejam na origem da represália mas disse que agiram sem ordens, numa reacção espontânea ao ataque de segunda-feira. “O presidente da Renamo perdeu o controlo da situação e não podem responsabilizá-lo pelo que está agora a passar-se”, disse à AFP. “A guerrilha dispersou-se. Vão atacar sem ordens.”

O Presidente, Armando Guebuza, disse na segunda-feira que não há nada no acordo de 1992, assinado em Roma, que não tenha sido resultado do acordo das partes e, citado pel' O País, afirmou que a Constituição ”não admite que haja dois exércitos, duas ordens em Moçambique”.

A actual crise é a mais séria ameaça à paz que o país viveu nas duas últimas décadas. A Renamo recusa-se a participar nas eleições autárquicas marcadas para 20 de Novembro, por discordar da composição dos órgãos eleitorais que, considera, favorecerem a Frelimo - partido que governa o país desde a independência, em 1975 e tem uma larga maioria no Parlamento. Nos últimos meses, os dois partidos mantiveram negociações que não produziram efeitos. “Não podíamos interromper os contactos”, lamentou à RDP África o bispo da Igreja Anglicana, Dinis Sengulane.

Possível saída
O desejo de diálogo expresso por Lucas Sevene, que tem idade para saber do que fala quando fala da guerra, é extensivo à generalidade das entidades que já se pronunciaram sobre o que está a acontecer: Portugal, logo na segunda-feira, a embaixada dos Estados Unidos, nesta terça-feira, as igrejas. 

Já na tarde desta terça-feira, a Renamo deu um sinal de disponibilidade para o diálogo, o que pode indiciar uma via alternativa à guerra. Lourenço do Rosário, negociador independente que faz a ligação entre o Governo e os antigos rebeldes, disse à imprensa em Maputo que o partido de Dhlakama se compromete a não retaliar, desde que o Exército se retire da zona da Gorongosa, "para que o líder da oposição possa continuar a dirigir as suas forças", afirmou, segundo a AFP.

O ataque a Satungira segue-se a escaramuças que se intensificaram nos últimos dias – o Ministério da Defesa denunciou um ataque de ex-rebeldes a uma unidade militar no final da semana passada – mas se têm repetido nos últimos meses, principalmente desde Abril.

Num documento interno divulgado na segunda-feira – quando ainda não era conhecida a ocupação da base da Renamo nem a decisão de declarar sem efeito o acordo de paz de 1992 – os responsáveis das agências das Nações Unidas que operam em Moçambique alertavam, segundo a Lusa, que é “difícil acreditar a 100%” nas informações, porque "ambas as partes envolvidas estão a gerir numa perspectiva política” a informação.

Nas legislativas de 2009, a Frelimo venceu com 74,7 %, que lhe deu 191 lugares no Parlamento. A Renamo obteve 17,7%, que lhe permitiu eleger 51 deputados, e o MDM (Movimento Democrático de Moçambique), com 3,9 %, conseguiu oito assentos.

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