António Borges: um homem frontal, um economista liberal

António Borges ganhou, recentemente, grande notoriedade nacional como consultor do Governo, onde foi uma peça-chave na defesa do programa de austeridade. Mas a sua projecção internacional tem 25 anos. Um dos momentos altos deu-se em 1988 quando a revista Fortune o elegeu para capa. Considerado "um especialista liberal", foi acusado de estar desconectado do mundo real. Outros sublinham o optimismo, a boa preparação técnica, a franqueza como traços distintivos. Fica sempre uma questão por responder: por que razão Borges foi sempre tão frontal, por vezes, parecendo inoportuno? Os amigos explicam: foi muito independente, não esteve ligado às opiniões dominantes e pagou um preço. O PÚBLICO conta a história de um homem com carreira internacional em várias áreas, mas que, no fundo, é um professor, um gestor de academias que sempre quis viver em Portugal

Foto
António Borges em Março deste ano Rui Gaudêncio

Com o mesmo vigor com que defendeu abertamente as medidas de austeridade, Borges, que morreu neste domingo aos 63 anos, protagonizou, nas últimas décadas, braços-de-ferro com a banca portuguesa que lhe custaram, em 2004, a liderança da Caixa Geral de Depósitos (CGD). "O objectivo dele não é proteger este ou aquele empresário, mas que a actividade económica esteja ao serviço do bem-estar do cidadão consumidor", salienta Diogo Lucena, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa e com quem coincidiu em Stanford no final da década de 1970.

Os críticos temem o impacto das suas teses na economia. "Não há dúvida de que é um homem sabedor, mas está agarrado àquelas teorias neoliberais, o mercado é que conta. O mercado não é ético, aquele jogo entre governos e grandes negócios falseia a concorrência", contrapõe Jacinto Nunes, ex-governador do Banco de Portugal (BdP) e professor catedrático jubilado pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).

Apesar de ter vivido nos últimos anos fora de Portugal, não perdeu a ligação ao país. A vida política nacional sempre o atraiu. A dada altura, no início da década passada, até admitiu candidatar-se a líder do PSD. Mas, em 2005, no Congresso de Pombal, faltou-lhe a empatia. As multidões, já se sabe, exigem muitas vezes candidatos a falar de temas triviais.

Há precisamente 20 anos, o Insead - Institut Européen de l'Administration des Affaires escolhe-o para se sentar na cadeira de dean (reitor), o posto mais alto que um português desempenhou numa academia de gestão mundial. Cinco anos antes, já na qualidade de responsável pelos MBA da instituição de Fontainebleau, a revista Fortune elege-o para capa. Ao economista atribui-se o mérito de ter colocado a pequena escola de negócios francesa ao lado de Harvard e de Columbia. Por isso, não é arriscado dizer que há um antes e um depois de António Borges no Insead.

Fora de Portugal, Borges alcançou cargos de topo em várias áreas. No FMI foi braço direito de Dominique Strauss-Kahn, o homem "que credibilizou a instituição" e que abandonou Washington após ser detido por agressão sexual e violação a uma empregada de hotel. Antes, porém, o economista passou pela Goldman Sachs, o banco que o diário francês Le Monde acusou de possuir uma rede de influência transversal, "tanto subterrânea, como pública", que lhe confere "poder de governo mundial". Mas o que Borges sempre foi foi um académico que os alunos classificam como "brilhante". Não um produtor de matéria teórica, mas um professor, um gestor de academias. É aqui que gera unanimidade. O ex-primeiro-ministro italiano Mario Monti entregou-lhe, há quatro anos, a liderança do conselho consultivo da Universidade Bocconi de Milão, onde foi reitor.

Quem foi, então, António Borges? Quais são as suas competências? Por onde andou? Que episódios marcaram a sua vida? Quem são os pesos-pesados do Governo alinhados com as suas teses? Para falar destes temas, o PÚBLICO ouviu em Março ex-alunos e assistentes, como Vítor Gaspar, José Pena Amaral, Viana Baptista, Paiva Chaves, Luís Gravito, Nogueira Leite e outras personalidades com quem se cruzou nos últimos 40 anos, como Carlos Moedas, Lobo Xavier, Francisco Pinto Balsemão, Diogo Lucena, Leonor Beleza, Vítor Bento, Belmiro de Azevedo, Mira Amaral. Apesar de ter tido conhecimento do trabalho que o PÚBLICO fez nos últimos tempos sobre o seu percurso de vida, António Borges optou por não prestar declarações. Trata com discrição os assuntos privados. Mas um pouco se vai sabendo: nasceu, em 1949, no Porto, o mais velho de cinco irmãos; é casado há 42 anos com Isabel, com quem tem quatro filhos, três rapazes e uma rapariga, oito netos; é adepto do Futebol Clube do Porto desde criança e com a camisola azul é duas vezes campeão nacional de voleibol; as férias escolares, passava-as em Alter do Chão, na propriedade da família (Monte Barrão, 600 hectares de exploração agrícola), que geriu e onde continuava a ir aos fins-de-semana. A Lisboa chegou apenas em 1967 para estudar Economia no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), actual ISEG e... aprender a jogar ténis no CIF com o professor húngaro Geza Torok.

1972
O mundo não era um lugar fácil para se viver. Em Munique, durante os Jogos Olímpicos, o conflito israelo-árabe agravou-se. Naquele Verão, 11 atletas judeus foram feitos reféns pelo grupo Setembro Negro, que reclamava a libertação de 234 palestinianos. Em Portugal, dava-se um paradoxo: o país crescia a uma média de 6,2%, na Bolsa de Lisboa a animação recaía sobre títulos especulativos, a admissão à cotação do BIP, de Jorge Brito, recebeu palmas no Terreiro do Paço, mas a questão ultramarina estava a dar grande expressão à contestação universitária.

No Quelhas, em Lisboa, no antigo ISCEF, reinava o desassossego. A PIDE, polícia política do regime, mata, nesse ano, à queima-roupa, o estudante Ribeiro Santos. As aulas são interrompidas com frequência e os alunos finalistas, como Borges, concluem a licenciatura em Novembro/Dezembro, não em Julho como habitual.

"Ele já revelava um raciocínio lógico fora de série, o que explica que tenha sido um dos melhores do curso, mas não se envolvia na vida académica, até porque passava muito tempo no Porto, onde moravam os pais, e até tenho ideia de que nem foi à viagem de final de curso", evoca a economista Isabel Leal de Faria. Muito diferente de Miguel Beleza, o ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, "mais próximo e com um convívio fácil com os colegas, sempre presente e disponível para ajudar nas vésperas das frequências", menciona ainda Isabel Leal de Faria.

"O António tinha muitos princípios e era exigente com ele, mas também com os outros, e não perdoava falhas", conta outro economista do mesmo curso, mas este já não perde um debate associativo. Nos testes, é claro, ressente-se. "O Borges passava por mim e ironizava: 'Pois é, pois é, agora não sabes. Tivesses estudado, tivesses estudado.'"

1973
Já casado, Borges prepara-se para deixar o Quelhas, onde o clima de crispação se agravara. Nesse ano, é assistente de Alfredo de Sousa, aquele que muitos consideram um dos maiores economistas portugueses, e que se mudara, entretanto, para o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), acabado de inaugurar e onde ainda prevalecia um ambiente de estudo. José Pena Amaral, actual administrador do BPI, recorda: "Para quem vinha do liceu, foi uma descoberta: tinha uma relação fácil com os alunos, ajudava a pensar e a estudar. Apresentou-nos uma visão da História Económica completamente nova e diferente da perspectiva incipiente que trazíamos do liceu." Afirma ainda que Borges "tinha o prazer de ensinar e, desse ponto de vista, não perdeu a mão". Apesar de ser uma ilha, no meio da contestação juvenil, a adrenalina já contamina o ISCTE. "As aulas dele não chegaram a ter esse problema, porque, entretanto, chegou o 25 de Abril. Mas a verdade é que ele não se exprimia como adepto do regime ou das oposições, não era por aí que se afirmava. Era mesmo muito bom pedagogicamente, muito claro, tinha grande método. Um grande professor, não há dúvida", afirma José Amaral, um independente que tem colaborado com o PS. E conclui: "Hoje, é difícil olhar para António Borges e interpretá-lo nesta perspectiva, porque o mais visível é o seu posicionamento político, muito claro e controverso. Mas as suas grandes qualidades são as mesmas." A seguir ao 25 de Abril, o administrador do BPI voltou a cruzar-se com Borges em várias ocasiões. Não hesita: "Já com um grande currículo, de homem público, banqueiro central, académico, mantém-se, no essencial, igual ao que sempre foi."

1975
Março. Já se sabe que os tempos pós-revolução são sempre de grande agitação. Nomeado ministro de governos provisórios, Joaquim Magalhães Mota, um dos três fundadores do Partido Popular Democrático, com Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão, vai buscar Borges para assessor. Foi, nessa altura, que o economista e ex-ministro das Finanças João Salgueiro ouviu, pela primeira vez, falar dele. "O Magalhães Mota tinha grandes expectativas e dizia-me que ele era um jovem que tinha acabado de sair da faculdade e um apaixonado pela necessidade de termos uma política para desenvolver o país e um caminho para a União Europeia." Em pleno gonçalvismo, Borges já olhava para a realidade portuguesa com base nas interpretações mais liberais, que eram, então, fora do lugar-comum. Pela mão de Magalhães Mota, participa no lançamento do PPD, a origem do PSD.

Poucos meses depois, agarra uma oportunidade de ouro e troca o status de professor de uma academia em tumulto pelos bancos tranquilos de Stanford, em Palo Alto, na Califórnia. Ora, a partida para os EUA, com a mulher, Isabel, e dois filhos, para se doutorar, marcará um ponto de viragem, o início de uma longa caminhada que o manterá longe de Portugal durante cinco anos. Data dessa época a relação com o administrador da Fundação Gulbenkian Diogo Lucena, professor da Universidade Nova, de quem Borges ficará amigo. "Um dia, fui até ao International Center para saber que portugueses tinham chegado a Stanford, depois meti-me na bicicleta e fui a casa dele." Dos quatro portugueses a viver em Palo Alto, Lucena era o único que recebia o Expresso em casa: "Uma simpatia do Marcelo [Rebelo de Sousa], que era o director." O semanário circulava e transformou-se na principal fonte de informação do grupo. "Era através do Expresso que sabíamos o que se passava em Portugal, pois as notícias chegavam muito raramente e através das televisões americanas que passavam imagens de caos." Os dois estão longe, sobra-lhes tempo para discutir política, religião, filosofia e economia. "É muito difícil ganhar uma discussão com Borges, mesmo quando temos razão. É inteligentíssimo, inteiramente seguro de si", observa Diogo Lucena.

1980
Aos amigos Borges confessa que o american way of life não o seduz a si ou à família. Quando termina o doutoramento, António Borges tem à sua espera boas ofertas, mas decide-se pela carreira académica e instala-se em Fontainebleau para dar aulas no Insead. "Não o fez por dinheiro, mas por ali ter perspectivas de crescimento profissional", explica Lucena, para quem "o adiamento do regresso a Portugal foi feito com nostalgia". Em Outubro desse ano, sabendo da presença do economista em Portugal, o chefe de gabinete de Francisco Sá Carneiro, António Patrício Gouveia, com quem coincidira na faculdade, convida-o para ser assessor económico do primeiro-ministro do VI Governo Constitucional. Borges tem 31 anos. Aceita. Dois meses depois, a 4 de Dezembro, a tragédia bate à porta de Sá Carneiro e de Patrício Gouveia. Em trânsito para o Porto, a aeronave onde viajam despenha-se à saída de Lisboa.

1981
A revolução fica para trás. Em Janeiro desse ano, Francisco Pinto Balsemão substitui Sá Carneiro. O fundador do PPD sabe que é hora de seguir em frente. Ao ter conhecimento da existência de um grupo de jovens economistas, Borges, Diogo Lucena e Miguel Beleza, formados nos EUA, pede ao colaborador Alexandre Patrício Gouveia, irmão de António, que os convoque a São Bento. Assim acontece. Conta Balsemão que Borges "o surpreendeu pela preparação e capacidade de raciocínio", razão pela qual, depois de deixar o Governo, voltou "a pedir a sua colaboração em iniciativas do Instituto Sá Carneiro". "Promovemos, então, vários seminários, muito abrangentes, envolvendo gente do PS, e onde se discutiam temas relevantes como o futuro da banca, dos transportes. O António Borges funcionava muitas vezes como o relator das conferências." O presidente do grupo Impresa salienta: "[O economista] é das pessoas com maior capacidade de síntese que conheço, ao fim de oito horas de debate, em 20 minutos, fazia um resumo magistral do que ali se passara e procurava ainda tirar conclusões." A boa relação perdurou e, nos anos seguintes, Borges surgirá como orador em vários eventos promovidos pelo grupo editorial de Balsemão.

1982
Entretanto, há sinais de mudança no universo universitário. É verdade que no Quelhas a vida académica continua intensa. Ali, ainda predomina o debate ideológico, com o ensino de O Capital, de Karl Marx, destacado. Mas na Universidade Católica, os estudantes assumem a ruptura com o PREC, interessados em construir uma carreira. Ora, é precisamente aí que Borges se cruza, pela primeira vez, com o actual ministro das Finanças, Vítor Gaspar, a frequentar o último ano da licenciatura.

"Um dos aspectos mais notáveis é a sua capacidade de comunicação e de motivar os alunos, característica que também tem como gestor de pessoas", afirma Gaspar à Revista 2."Fiquei logo com grande admiração como professor [da cadeira de Economia do Bem-Estar e da Economia de Energia], partilhada, aliás, pelos meus colegas, que o elegeram como o melhor docente do nosso curso." Um dia haveriam de discordar. Num exame, em que a nota mais elevada foi um 17, Borges atribuiu a Gaspar um 14. Gaspar não concordou e reclamou revisão de nota. O professor exclamou: "Nunca ouvi tal desplante na vida!" Na realidade, relata Gaspar, Borges enganara-se no somatório das cotações. Quando começa a pensar no que irá fazer após terminar o curso, é com António Borges que Gaspar vai ter. E recebe a opinião: "O doutoramento sem qualquer hesitação." "Foi um dos conselhos mais relevantes que recebi." A seguir inscreve-se na pós-graduação da Universidade Nova, onde tem novamente o economista como professor. "Como o meu orientador de tese de doutoramento foi o Diogo Lucena, por essa via, mantivemos contacto." Da época Gaspar, que se preparava para ser assistente de Alfredo de Sousa na Nova, reteve um trabalho sobre Segurança Social subscrito por Lucena e por Borges. "Eles colocaram questões fundamentais, como a sustentabilidade das pensões, que já era um problema central, e que marcou o debate e que se mantém actual."

"Etiquetado" como distante, António Borges deixa outra imagem nos alunos. Para João Confraria, professor da Católica e gestor da Anacom, o regulador das telecomunicações, o economista "era um dos professores mais populares" do seu curso. Continua: "Vinha a Portugal uma vez por mês dar aulas com uma certa intensidade, pois prolongavam-se o dia inteiro. Mas a não existência de interacção diária não se notava ao nível da docência." Aqueles são, sem dúvida, tempos alucinantes. Borges ora está em Paris, ora em Lisboa. Para retemperar forças, a seguir ao almoço, dorme sempre dez minutos.

"Apesar de ensinar temas novos [a cadeira de Economia da Energia e do Bem-Estar] e complexos, procurava simplificá-los e dar a intuição subjacente ao raciocínio formal", afirma Confraria. E conclui: "Explicava os temas da energia com um ar optimista, o que é simpático." O secretário de Estado adjunto de Pedro Passos Coelho, Carlos Moedas, que só se cruzará com Borges mais tarde, concorda. "O optimismo é um traço distintivo: vamos fazer, vamos conseguir. É muito empolgante!"

Por essa altura, Luís Mira Amaral está na Universidade Nova de Lisboa. O actual presidente do BIC Portugal defende tese sobre "O consumo de energia no sector automóvel em Portugal". "O Borges e o Manuel Vilares eram membros do júri, mas o meu orientador foi o Diogo Lucena, da Nova", explica Mira Amaral: "O Borges foi o mais interventivo na discussão, em especial nas questões da política energética."

1983
António Viana Baptista (ex-Telefónica), presidente executivo do Credit Suisse para a Península Ibérica, está agora em Fontainebleau, onde conhece António Borges. "Como responsável do programa de MBA do Insead, Borges teve a visão de que era preciso ir buscar os melhores professores, nomeadamente aos EUA, para criar um corpo docente internacional, exigente e qualificado, que atraísse os melhores estudantes, sem baixar a qualidade." O gestor nem hesita: "Não sou eu que o digo, é o mercado, pois o nível de salários à saída de Fontainebleau passou a ser muito alto." "Ele conseguiu que as pessoas que estavam a fazer mestrados em Gestão gostassem de Economia. Era pragmático, tinha boas ideias sobre o mundo. Foi uma das duas pessoas que mais influenciaram a minha carreira internacional."

1984
António Nogueira Leite, administrador da EDP Renováveis, descreve a época. "Nos anos 80, a Universidade Católica era ainda muito paroquial e os professores eram uns cinzentões. Depois, havia o Borges, que era brilhante e impressionava pela capacidade de apresentar os temas e de persuadir os alunos. Ele tratava-nos em pé de igualdade, muito longe do modelo antiquado do professor a quem o assistente levava a pasta." E, neste ano, Borges incita os bons alunos da Católica a transferirem-se para os quadros da faculdade de Economia da Universidade Nova, mais aberta a incentivar os doutoramentos no estrangeiro. Luís Cabral e Nogueira Leite tornar-se-ão assistente de Borges na Nova. Borges regressa, mais tarde, à Católica, onde é professor catedrático convidado da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais.

Entretanto, no meio exclusivo das academias de ensino de Gestão e de Economia impera a ambição. Por lá, circulam tribos "vidradas" nas cities londrina e nova-iorquina. "Borges teve uma enorme influência na minha geração, pois a sua visão adaptava-se à nossa vontade de progredir quer do ponto de vista empresarial e de gestão, mas também académico", explica o economista Nogueira Leite, para quem a rede de contactos que Borges começara a estabelecer na Califórnia e que amplia em Fontainebleau "contribuiu para muita gente sair de Portugal para estudar ou trabalhar". Nogueira Leite partiu, em 1984, para os EUA, para estudar em Illinois. Luís Cabral seguiu-lhe as pisadas um ano depois, para se instalar em Stanford.

1985
Portugal prepara a entrada na então CEE, há perspectivas de liberalização da economia. Borges arranja tempo para colaborar com Lucas Pires, Lobo Xavier, Adão da Fonseca, entre outros, no chamado Grupo de Ofir, um projecto liberal conservador. Por ali, respira-se entusiasmo. Borges introduz no debate uma nova argumentação teórica. Com 26 anos, Lobo Xavier fica deslumbrado. "Lembro-me de aos 15 anos conhecer apenas o que era ser comunista e socialista ou anticomunista." Para este advogado, é o deserto. "António Borges trazia as teses liberais completamente novas em Portugal, onde não existia experiência de contactos com essa corrente de pensamento. Falava em privatizações, na redução do peso do Estado na economia, o que era fascinante para mim. Era já um espectacular orador que melhorou o debate ideológico." Mais tarde voltarão a encontrar-se no grupo Sonae. "Foi aí que o conheci melhor e impressionou-me, pois era muito rápido a pensar, tinha intervenções sempre apropriadas. Foi um belíssimo administrador não executivo da Sonae."

1988
Borges tem 38 anos. Em certos meios restritos é visto como uma estrela do Insead. Em Maio desse ano, a revista norte-americana Fortune colocou-o na capa, onde figuram habitualmente nomes do mundo dos negócios e da política: Barack Obama, George Bush, Steve Jobs, John Mccain, Carlos Slim, Bill Clinton, Warren Buffett ou Oprah Winfrey. Mas, até hoje, mais nenhum português foi eleito. Para essa edição da Fortune, Borges é fotografado em mangas de camisa, de gravata, sorridente. A revista considera a escola de negócios francesa o "Rolls-Royce" que "inventou o conceito de ensino internacional". Premonitório! Cinco anos mais tarde, o economista receberá um telefonema que vai mudar a sua vida para sempre. Antes, porém, era tempo de regressar a Portugal.

1990
A morte dos pais coloca o economista perante o dilema do regresso a Portugal. Nesse ano, é nomeado vice-governador de Tavares Moreira no BdP. No período que antecede a adesão à moeda única, o país enfrenta vários problemas. A excessiva entrada de capitais do exterior, nomeadamente de curto prazo, pressiona a taxa de câmbio do escudo para cima. Como a inflação está acima dos 14%, elevam-se as taxas de juro. Para moderar os impactos adversos, o Banco de Portugal (BdP) aperta o controlo do movimento de capitais.

A abertura à iniciativa privada do sector financeiro gera pressão competitiva. Aparecem agências bancárias com o intuito de canalizar capitais de curto prazo para Portugal. O BdP toma uma medida radical: por cada sucursal inaugurada em Lisboa e Porto, exige aos bancos que paguem 40 mil contos (200 mil euros), valor que baixa para 20 mil (100 mil) fora do Porto e de Lisboa. A medida é muito contestada pelo sector, mas Borges aparece a defendê-la com vigor.

Na altura, o Banco Comercial Português (BCP) está a lançar a Nova Rede (banca de retalho) e acusa o vice-governador de pôr chumbo nos pés dos privados. Um ex-administrador, João Talone, envia-lhe uma carta: "Disse-lhe que tinha sido uma desilusão, pois a decisão dificultava a vida à iniciativa privada e era, em termos práticos, a defesa da banca nacionalizada." Para Talone é ali que começa o desentendimento entre Jardim Gonçalves e António Borges, que terá novos episódios.

É, também nessa fase, que Vítor Bento, então director adjunto do departamento de estrangeiro do BdP, conhece Borges. "Foi uma das pessoas com quem trabalhei, e trabalhei com gente muito boa, com quem mais aprendi, pela capacidade de liderança e consistência teórica forte", declara o actual presidente da SIBS (Multibanco) e conselheiro de Estado. Borges, enquanto vice-governador de Tavares Moreira, representa o BdP nos comités monetário da UE, em Bruxelas, e dos bancos centrais, em Basileia. E Bento, com actuação directa sobre a política cambial e a gestão das reservas, acompanha-o às reuniões. "Havia dois grupos: os falcões germânicos, mais ortodoxos, e as pombas latinas, mais tolerantes com a inflação." A presença de Hans Tietmeyer, então vice-governador do Bundesbank, era "fortíssima". O conselheiro de Estado presenciou uma cena que retém na memória: "Só vi Tietmeyer [que viria a ser governador] gaguejar duas vezes. Ambas, depois de Borges ter contra-argumentado com ele, usando ideias do mesmo quadro intelectual. Só quem lá esteve pode avaliar o impacto. Borges era realmente impressionante."

1992
O vice-governador está prestes a reencontrar Vítor Gaspar. O ex-ministro das Finanças guarda a carta de missão que Borges lhe dirigiu quando chegou pela primeira vez ao BdP. "É um documento verdadeiramente inspirador pela clareza de objectivos e por revelar uma confiança nas possibilidades de concretização de um novo elemento dos quadros." Por vezes, Vítor Gaspar também participa nas reuniões internacionais onde constata que "o prestígio" de António Borges "era grande, assim como a sua capacidade de persuasão e de motivação, que ficam muito patentes em comités e reuniões de pequenos grupos". O economista, diz à Revista 2, "ajudou a aumentar os padrões de qualidade, em particular no departamento de estatísticas e estudos económicos, melhoria que teve consequências duráveis".

1993
A economia portuguesa entra, mais uma vez, em recessão, com o PIB a cair 0,7%. Miguel Beleza está agora à frente do BdP e mantém Borges como número dois. Mira Amaral evoca que Braga de Macedo, na altura ministro das Finanças, "andava chateado com o aperto que o BdP estava a fazer em termos de política de taxas de juros e de taxas de câmbio." Pressentia-se uma "guerra" surda. Na cerimónia pública de tomada de posse de um novo gestor do BdP, Braga de Macedo abre as hostilidades, com estrondo. E acusa o regulador de ignorar a economia real.

O primeiro-ministro Cavaco Silva estava fora do país e "não teve consciência imediata" do impacto das declarações do seu ministro das Finanças, recorda agora Mira Amaral, que assistiu à intervenção de Braga de Macedo. Mas as ondas de choque sentem-se pouco depois: os juros disparam, o escudo desvaloriza-se, a bolsa sofre um abalo sísmico. "Só aí é que o Cavaco apareceu a falar na televisão sobre o assunto, de cara fechada", relata o banqueiro do BIC.

Mas nos gabinetes da autoridade monetária sente-se grande agitação. O vice-governador acaba o dia a anunciar a sua demissão e refugia-se na sua propriedade de Alter do Chão. "O BdP tinha um estatuto de independência face ao poder político e a tentativa de intromissão gerou uma tensão muito grande", refere Vítor Bento. Inquirido sobre o incidente e a sua relação com Borges, Braga de Macedo responde-nos por email: "Colaborámos na coluna Mão Invisível [do extinto Semanário criado por Marcelo Rebelo de Sousa, Daniel Proença de Carvalho, Victor Cunha Rego] com outros professores da Nova em meados da década de 80. Depois de regressar a Portugal, Borges aceitou integrar a Comissão Trilateral [onde está Mario Monti] europeia onde as suas intervenções têm prestigiado o grupo português."

No Verão, Borges está ao telefone com Fontainebleau. O Insead quere-o a ocupar a cadeira de dean. Pode recusar? Aceita com um propósito claro: tornar o Insead na escola de negócios mais internacional, diferenciando-a das norte-americanas.

A meio da década de 90 há tigres a acordar na Ásia. Borges percebe que o crescimento mundial vai estar naquela região e decide arrancar com um pólo em Singapura. João Talone vive em Paris e participa no board francês do Insead, ao lado dos presidentes executivos dos grandes grupos europeus. E constata "a reacção do conselho, quando ele sugeriu que se abrisse um pólo em Singapura". "Houve um grande debate, houve uma divisão. Mas a imagem do Borges era fantástica e foi convincente, o projecto lá arrancou [1997]. Hoje, sabemos que estava certo. As escolas norte-americanas seguiram o mesmo caminho 15 anos mais tarde."

1996
17 de Julho. Já se sabe que o destino é uma incógnita. Três anos depois de assumir as novas funções no Insead, um golpe de sorte atravessa-se no seu caminho. Nesse dia, António Borges tem viagem marcada de Nova Iorque para Paris, num voo da TWA. Em cima da hora a secretária altera o horário da partida. Doze minutos depois de descolar do aeroporto JFK, o Boeing 747-131 despenha-se no oceano Atlântico, sem sobreviventes. O acontecimento não deixa ninguém indiferente.

Datam desse período as tentativas para persuadir os empresários e gestores portugueses a subsidiarem uma cadeira em Fontainebleau com a bandeira de Portugal. Para além de Belmiro de Azevedo, Américo Amorim, Pedro Queiroz Pereira, Álvaro Barreto, Ferreira de Oliveira e Ricardo Salgado estiveram nas reuniões.

O engenheiro Paiva Chaves, à frente da associação dos antigos alunos portugueses do Insead, recorda que o reitor Borges "sempre confraternizou com a comunidade portuguesa do Insead, tornando-se uma referência clara e única. Ele conseguiu convencer o Insead a apoiar alunos portugueses brilhantes, que a troco de ali fazerem o MBA, sem pagarem, teriam de ser assistentes de docentes. Hoje, dos cerca de 300 membros da associação, metade frequentaram o estabelecimento quando lá estava." Foi, ainda, quem nos inspirou, na associação, a desenvolver duas iniciativas cívicas: a atribuição de um prémio de empreendedorismo e a conferência anual sobre conhecimento."

Um dos empresários portugueses que Borges convidou para integrar os órgãos de gestão do Insead foi Belmiro de Azevedo, da Sonae. "Em 1974, 1975 já trocávamos impressões sobre análises macroeconómicas. Mais tarde, participámos como oradores nas mesmas conferências." O empresário, com MBA em Harvard, salienta "que Borges foi administrador não executivo da Sonae e depois da Sonae.com e, nesse período, falava com ele quase diariamente e ele não descartava fazer carreira no grupo". "Era um indivíduo que comunicava e analisava muito bem. Impressionava. Mas já tinha dificuldade em ouvir... mas acabava sempre por aceitar os argumentos dos outros na altura própria. Não era casmurro, aprecio pessoas assim. Não têm que ficar zangadas. Estávamos os dois em perfeita sintonia." Hoje, Belmiro declara: "Tenho grande estima por ele, que conheço em total transparência. Assim como toda a família. O irmão trabalhou numa empresa nossa. Quando ele foi para a Goldman, nos anos seguintes, ainda mantivemos contactos." Borges, relatou, "participava nos encontros do Douro [da Sonae] e nos almoços das alheiras no Marco [na quinta de Belmiro de Azevedo em Marco de Canaveses]."

Um dos assistentes de Borges no Insead é Luís Gravito. "Do ponto de vista dos alunos, quando ele falava era uma festa. Foi o maior pedagogo que conheci, transforma os conceitos complexos em coisas simples. Vê o que é acessório e o que é importante de forma imediata." Para o vice-presidente do BCG - The Boston Consulting Group, "Borges é um gestor de academia de mão-cheia. A produção de conhecimento académico não o entusiasma tanto." A frontalidade não o prejudica? "No domínio da gestão a transparência e a verdade trazem enormes vantagens e, talvez, por isso, a sua carreira académica seja extraordinária." Em poucos anos, salienta, "o número de alunos do Insead triplicou". Gravito lembra que "o Insead desenvolvia programas específicos para as empresas e que Borges era um excelente negociador." O BCP, por exemplo, confirma Talone, "encomendou um programa feito à medida e destinado à alta direcção. Borges fazia dois discursos, um à entrada, outro à saída."

1997
Em Junho, o dean do Insead está em Atlanta, Georgia, nos EUA, para participar, pela primeira vez, numa conferência de Bilderberg, um fórum restrito a gente com poder de decisão mundial. Os temas em cima da mesa estão relacionados com a NATO, a China, o islão, a energia, o crescimento, a governação. Entre os 120 participantes, provenientes de todo o mundo, estão mais dois portugueses, Ricardo Salgado, do BES, e Francisco Pinto Balsemão, para além de Giovanni e Umberto Agnelli, da Fiat, de Jon Corzine, presidente da Goldman Sachs, ou nomes como Henry Kissinger e Paul Wolfowitz. Em 2001, Borges voltará a marcar presença, agora a convite de Balsemão, no encontro de Bilderberg que se realizará em Chantilly.

1999
São dias de mudança. Sendo a mãe oriunda do Alentejo, Borges passa muito tempo na região onde tem uma casa de família e uma herdade. "É a sua paixão. Sempre teve uma vida profissional muito cheia, mas, por detrás está Alter do Chão. Muito do que ganhou no estrangeiro investiu lá", explica Diogo Lucena. Nesse ano, o economista reencontra o cirurgião cardiotorácico José Roquette, que conta: "Quando eu era presidente da Assembleia Municipal de Fronteira, e ele se candidatava a presidente da Assembleia Municipal de Alter do Chão, decidi apoiá-lo." Os municípios alentejanos são vizinhos e os dois iniciam um processo de plantação de vinhas. "Um dia estava em Londres e desafiei-o para ir jantar para lhe sugerir que nos juntássemos e fizéssemos uma sociedade vinícola. Ele aceitou." E nasceu a sociedade Terras de Alter com a "ambição de dar a conhecer os vinhos portugueses". "O que me impressionou? Bom, a capacidade de análise da economia e, sim, a pedagógica. Um dia soube que ele ia dar uma conferência na Católica e fui assistir." O médico avalia: "Prendeu a assistência explicando o que era complexo, de modo simples."

2000
Borges tem 51 anos. Passaram sete anos desde que assumiu funções de dean em Fontainebleau. O combate para colocar o Insead a rivalizar com Harvard e Columbia estava concluído. Na cerimónia de homenagem promovida pelos CEO das empresas associadas do Insead, estão presentes, para além da mulher, Isabel, mais dois portugueses, Ferreira de Oliveira, da Galp, e Álvaro Barreto, da Portucel.

A dada altura, Álvaro Barreto sobe ao palco. António Borges não faz a mais pequena ideia do que ali se irá passar. Barreto conta à Revista 2: "Anunciei que um grupo de empresas portuguesas tinha decidido apoiar, com 400 mil euros, a cadeira de Política Europeia do Insead." Assim que termina o discurso, de dois minutos, o auditório, onde estão mais de 150 pessoas, levanta-se, num só movimento, para ovacionar o reitor. "Borges deu-me um enorme abraço, chorámos os dois."

O tempo de Borges em Fontainebleau chega ao fim. Mas quando se é dean de uma escola de negócios, que dá conhecimentos de estratégia empresarial, as portas abrem-se. O economista tem em cima da mesa convites do Lehman Brothers e da Goldman Sachs (GS), os dois porta-aviões nova-iorquinos, que, em 2008, estarão no epicentro do terramoto financeiro que abalou os mercados. O português vai assumir uma das vice-presidênciasda Goldman, em Londres, onde terá como chefe Peter Weinberg, o ex-número dois da Morgan Stanley para a Europa e, nessa qualidade, chefe de Paulo Cartuxo Pereira (actual Perella), um ex-assistente de Borges no Insead.

A Wall Street e à City londrina chegam, por essa altura, "matemáticos" com ideias engenhosas, fixando preços em todos os produtos, auferindo salários milionários. É neste ambiente de inovação que o engenheiro do Instituto Superior Técnico Carlos Moedas se candidata a um posto na Goldman Sachs. Para muita gente, o banco de investimento norte-americano representa a excelência e todos querem estar na instituição conhecida por contratar jovens quadros a quem incute o seu ADN.

O secretário de Estado adjunto de Passos Coelho tem 30 anos quando, em 2000, conhece António Borges. "Eu era um júnior que iniciava uma carreira internacional, ele estava noutro patamar, já muito conhecido em Portugal." Depressa se torna uma "inspiração" para o mais novo. "Na Goldman, Borges era visto como a pessoa que tinha transformado o Insead. Talvez, por isso, lhe entregassem o projecto de gestão de talentos." Para Moedas, o economista não é apenas um "excelente académico que foi gestor do Insead. É a pessoa mais inteligente e mais bem preparada que o país tem, com sucesso verdadeiramente internacional". Através dele, Moedas vai envolver-se activamente na vida do PSD, por via do gabinete de estudos social-democrata. "Fui ajudar o Sampaio e Melo que estava nos EUA e continuei depois já com Passos Coelho." Está aqui, em parte, a explicação por que Passos Coelho foi buscar Carlos Moedas para integrar o actual Governo.

2001
Talone deixara, entretanto, a administração do BCP e procura António Borges. "O que devo fazer?" Este dá-lhe um conselho: "Vai tirar um AMP (Advanced Management Program) em Harvard." O regulamento das admissões exigia que o candidato fosse proposto por uma empresa, mas Talone acredita ter currículo para se autopropor. Prepara-se para partir para os EUA. A carta de rejeição leva-o ao desespero. Telefona ao amigo, que lhe diz: "Vou falar com o dean de Harvard e vamos encontrar uma solução." Dias depois, chega a Lisboa a confirmação. Talone faz questão de declarar: "Devo a António Borges poder ter ido para Harvard."

2003
O ex-presidente do BCP Jardim Gonçalves tentou jogar na liga dos grandes, mas o 11 de Setembro de 2001 "deprimiu" o sector segurador e a cotação do banco começou a cair, influenciada pela posição de 25% que detinha na companhia holandesa Eureko. O BCP contratou, então, a Goldman para libertar a Seguros e Pensões da seguradora holandesa.

Os últimos anos provaram que, seja, em que circunstância for, Borges diz o que pensa. É muito afirmativo e, por vezes, roça a arrogância e gera anticorpos. Daí os atritos com a banca portuguesa. Um dos episódios ocorreu a 12 de Maio de 2003. Em entrevista ao PÚBLICO, o ainda vice-presidente da GS não esconde: "Se olharmos para o BCP, que tem uma belíssima rentabilidade na sua actividade normal, apercebemo-nos de que tem um problema de capital, porque consumiu muito, numa política de expansão e, depois, viu-se obrigado a fazer marcha-atrás." Jardim Gonçalves não gosta do que lê e reage à patada. Mal o jornal chega às bancas, já enviava uma carta ao CEO da Goldman Sachs a informar que não quer Borges a trabalhar no BCP. "A missiva está nos arquivos do banco e foi escrita mesmo antes de a GS ter recebido os honorários", confirmou um alto quadro do grupo. Os acontecimentos mais recentes vieram provar que o BCP estava mesmo descapitalizado.

Por essa altura, o fundador do BCP relata um episódio ao conselho superior. "Ele [Borges] veio ter comigo e disse-me que queria regressar a Portugal e que só o lugar de presidente do BCP o merecia." Os factos, todavia, nunca foram confirmados pelo economista.

2004
Pouco depois de o velho capitão da indústria António Champalimaud ter morrido, em Maio, ficou a saber-se que cerca de um quarto da sua fortuna pessoal, então calculada em 2 mil milhões de euros (valores conhecidos), se destinava a erguer uma fundação para promover a ciência em Portugal que seria liderada por Leonor Beleza. O fundo não pode ser "gasto" em despesas de funcionamento, que, por sua vez, não devem ultrapassar 4% do bolo inicial. Leonor Beleza conhece Borges e desafia-o a gerir o património financeiro da Fundação Champalimaud. A decisão é fácil de explicar. "Convidámo-lo numa altura em que era preciso não só definir as regras de utilização e preservação do património, como fazer escolhas relacionadas com o perfil e as áreas de actividade da fundação", explica a ex-ministra da Saúde. "António Borges tem relações internacionais excepcionais nos meios científicos e académicos onde nos inserimos. São pessoas com quem convive de forma fácil e espontânea, é o seu meio de toda a vida."

Durante quase 30 anos fora de Portugal, a oportunidade de regressar parece estar, agora, ao alcance do economista. Em Setembro desse ano, Santana Lopes substitui Durão Barroso, que parte para Bruxelas. O Expresso anuncia que o Governo tem três nomes para ocupar a pasta das Finanças: Eduardo Catroga, António Borges e Mira Amaral. "Nesse sábado, o Borges ligou-me para perguntar se eu tinha sido convidado. Respondi que não e ele disse-me: 'Consigo o lugar fica bem entregue.' Mas o Paulo Portas impôs ao Santana que convidasse o Bagão Félix", narra Mira Amaral.

Estava prestes a rebentar nova polémica envolvendo os banqueiros portugueses. Dias depois da sua nomeação como vice-primeiro-ministro, Álvaro Barreto foi a São Bento. "O Pedro Santana Lopes disse-me que era necessário indicar alguém para substituir o António de Sousa na CGD e perguntou-me se eu tinha sugestões. Falei em Borges e pediu-me que o sondasse." O economista respondeu a Barreto: "O convite atrai-me profissionalmente e estou disponível para sair da Goldman." O ex-ministro explica que Borges lhe disse ainda que "necessitava de uma determinada remuneração, que era, aliás, aceitável e muito inferior à que auferia em Londres, para poder honrar os compromissos, nomeadamente, os relacionados com Alter do Chão." Conhecendo a resposta, Santana Lopes deu luz verde e pediu ao Barreto que conversasse com Bagão Félix. "Estivemos todos de acordo", assegura o ex-vice-primeiro-ministro. Acertados os detalhes, Borges informou a Goldman que ia deixar a instituição. Ficou à espera.

Numa escala em Bruxelas, onde se ia encontrar com Durão Barroso, na qualidade de presidente do Instituto Europeu de Corporate Governance, foi avisado pelo presidente da UE: "Vai ter uma surpresa quando chegar a Lisboa, eles não vão confirmar o convite para a CGD." Borges entrou no avião preocupado. Espera por uma mensagem que não chega.

Enquanto Borges viaja para Lisboa, Santana chama de novo o número dois a São Bento. "Ponderei os prós e os contras e peço-lhe que desconvide o António Borges. Depois lhe explicarei as razões", evoca Barreto. "Fiquei embaraçado, pois os contactos tinham sido feitos com a cobertura do primeiro-ministro e do ministro das Finanças. Telefonei logo ao Borges e informei-o de que tinha havido uma viragem política." Quem pressionou Santana Lopes? "Tenho as minhas suspeitas, mas não as posso revelar sem certezas, Santana Lopes nunca explicou porque recuou." E, assim, Borges dá o dito por não dito e regressa à Goldman Sachs.

O segredo já é de polichinelo e depressa chega às páginas dos jornais. Os banqueiros, já se sabe, são por natureza desconfiados de quem vem de fora para romper com o statu quo. Os nomes de Jardim Gonçalves, do BCP, e de Ricardo Salgado, do BES, são mencionados pela imprensa como estando por detrás do recuo do Governo.

Meses depois, o economista recebe um telefonema intrigante. Ricardo Salgado convida-o para ir jantar ao BES. O banqueiro é um homem influente. E diz-lhe: "Sei que foi convidado e desconvidado para ir para a CGD, mas quero esclarecê-lo de que quem está por detrás da anulação não sou eu." Quem se cruza, então, com António Borges lembra que o vê indignado. Que fazer? Se cala, esconde. Se fala, não deve. Mais tarde ou mais cedo, o episódio chegaria ao Palácio de Belém. Ao ser informado, o ex-Presidente da República Jorge Sampaio mostra-se perplexo.

2005
Borges está agora mais disponível do que nunca para se envolver com o PSD. No clã social-democrata há quem pondere a sua candidatura à liderança. João Talone telefona-lhe de Paris: "Por que não anuncias a vontade de abdicar da tua carreira internacional, para não haver conflito de interesses, e te candidatas a líder? Ele não o fez e foi uma pena, pois tinha sido um líder fantástico." O economista, todavia, não quer, para já, ser candidato. Mas está disposto a fazer uma incursão pelo Congresso Nacional do PSD marcado para 2 Abril de 2005 em Pombal, que será disputado entre Marques Mendes e Luís Filipe Menezes. O economista não esconde a preferência: "Entre Filipe Menezes e Marques Mendes, voto Mendes."

Borges prepara uma moção de estratégia com um objectivo: "Restaurar integridade à política, ao Governo e ao Estado." Um dos promotores iniciais relata à Revista 2: "O documento era excelente, mas estranhei que do texto inicial não constassem duas palavras: trabalhador e sindicatos." Após discussão, os dois termos são incluídos na moção que tem Balsemão como primeiro signatário e é assinada por cem subscritores, entre eles José Pedro Aguiar Branco, Rui Rio, Leonor Beleza, Alexandre Relvas, Valente de Oliveira. E, assim, a 2 de Abril desse ano, o Expresso noticia: "Balsemão apadrinha moção de Borges."

À comissão organizadora do congresso chegam mais de 30 propostas de estratégia global. Mas é a de António Borges que promete agitar os congressistas. Um delegado à reunião ainda se lembra da intervenção. "Quando foi discursar, parecia um líder político norte-americano, óptimo ar, bom aspecto e muitíssimo bem preparado, era mesmo o melhor de todos os que ali estavam." Remata: "Fez um discurso excelente, sobre a sociedade portuguesa, a economia, a ética, mas faltou-lhe a componente emocional e não gerou adesão. A assistência não procurava um líder cientifica e intelectualmente brilhante, esperava por alguém com uma ideia de força, com empatia com a multidão." E, sem o apoio das concelhias, não se ganham congressos.

Na política, é preciso ter jogo de cintura, ter piada, falar de coisas triviais. Borges pode ser acusado de muita coisa, mas "não é um demagogo". "A mensagem de independência e de autonomia não cola com o cidadão comum", defende o médico José Roquette, para quem "Borges é demasiado frontal, o que não é bem aceite na vida partidária, mas é coerente. Não é tão intuitivo quanto o Marcelo [Rebelo de Sousa], é mais distante, mas está sempre disponível". Álvaro Barreto salienta: "Ele não é um político. Não se pode faltar à verdade, mas, muitas vezes, não se deve dizer a verdade toda. Mas a sua maneira de ser não lhe retira qualidade. Concordo com 100% do que diz."

2006
Depois do congresso de Pombal, e ainda na qualidade de vice-presidente da Goldman Sachs, o economista protagoniza uma oposição vigorosa ao Governo socialista. "A situação económica do país é desastrosa e tenho sérias dúvidas sobre a competência de alguns membros do Governo. Os encargos com as PPP e o excesso de dívida do país vão rebentar em 2013, 2014." Manuel Pinho, ministro da Economia de José Sócrates, apressa-se a reagir. Depois de ter deixado o banco de investimento, Borges confirmou o que já se sabia: "O Manuel Pinho exigiu-me um pedido de desculpas público, caso contrário nunca mais haveria trabalho para a Goldman em Portugal. Um dia chamou-me ao ministério, para me dizer que cancelara todos os contratos." Confrontado com o relato, Manuel Pinho respondeu: "Honestamente, não me lembro de ter falado com Borges."

Começa também aqui uma maratona de oposição a Luís Filipe Menezes que vai culminar, no ano seguinte, numa pareceria com Manuela Ferreira Leite pela disputa da liderança do PSD.

2007
Fevereiro. Borges está em campanha. No jantar da Liga de Amigos da Casa Museu João Soares [pai de Mário Soares], em Leiria, o economista faz declarações que a imprensa reproduz: "Todos gostamos de boas estradas, comboios rápidos, belíssimos aeroportos, mas não é isso que vai resolver os problemas das empresas, da concorrência, da manutenção dos postos de trabalho." Dá o exemplo da Irlanda como o país europeu "com mais crescimento económico e que praticamente não tem auto-estradas, tem um aeroporto que é uma vergonha e não tem um único comboio rápido". Em Inglaterra, onde então vive, "os aeroportos da área de Londres são uma coisa sinistra, mas não constroem novos, quando muito limitam-se a ampliá-los".

Numa tarde, no final da Primavera, está de partida para Portalegre onde vai, com José Roquette, participar numa sessão de apoio a Marques Mendes que se candidata a líder do PSD, concorrendo contra Luís Filipe Menezes. A meio do trajecto têm um acidente. Chove, a viatura derrapa. "A alguma distância viajavam Manuela Ferreira Leite e Marques Guedes , que nos deram boleia", recorda o cirurgião cardiotorácico. Horas depois dão palpites sobre quem será o líder vencedor. "Estavam os três convencidos de que quem ia ganhar era o Marques Mendes." Roquette contraria-os: "Nem pensem nisso. Tenho pena, Marques Mendes é muito estimável, mas quem vai ganhar é o Menezes." A 23 de Setembro, Menezes bateu Mendes comm 54% dos votos. "O meu amigo Borges é um ser humano excepcional, não duvide. E com todas as suas características, de persuasão e de argumentação notáveis, muito amigo da família e dos amigos, que estão sempre em primeiro lugar, quando é preciso racionalizar em relação à política perde-se por causa do coração." Diogo Lucena discorda: "Ele é muito racional e quando se envolve em temas políticos é cerebral, muito independente na maneira de estar. Como não está ligado às opiniões dominantes, paga um preço. Não procura o combate pelo combate, mas marcar posições."

Mira Amaral, presidente do BIC Portugal, observa: "Ele tem um comportamento demasiado british e o ecossistema português não o aceita." Nota que "Borges tem passado pela política portuguesa como um príncipe, mas isto não vende bem no retalho". "Pelo contrário, no private banking [banca de negócios] é óptimo." O banqueiro ironiza: "Eu, apesar de também não vender bem no retalho, sou melhor do que ele. Já no private banking, o Borges dá-me dez a zero."

A crise hipotecária espalhou-se pelo planeta. Os primeiros sinais estavam ao virar da esquina. O BNP Paribas suspende o pagamento dos resgates de três fundos, tidos, até aí, de risco diminuto. Na Grã-Bretanha, regista-se uma corrida aos depósitos do Northern Rock. Nos EUA, o American Home Mortgage pediu moratória de pagamentos.

2008
O economista continua muito ligado ao universo académico. O ex-primeiro-ministro italiano Mario Monti (do clube de Bilderberg e presidente europeu da Comissão Trilateral), também consultor da Goldman Sachs, convida Borges para integrar a Universidade Bocconi, onde é reitor. E pede-lhe que lidere o conselho consultivo internacional, onde Borges se mantém. É, aliás, do português que partem os convites aos presidentes dos grupos Zurich, Roland Berger, Coca-Cola, Banca Intesa, Enel, Eni, Fiat, Siemens ou BNP Paribas, para colaborarem com a universidade de Milão.

Nos países anglo-saxónicos, o Estado regulador vacila. Os mercados não se auto-regularam, há banqueiros que não funcionam com ética, embarcam em fantasias. A crise financeira mostra-se implacável para bancos que entraram em cowboiadas. Em Março, o Bear Stearns, o quinto maior banco de investimento dos EUA, conhecido por intermediar operações de alto risco (subprime e hedge funds), entra em colapso. Dois meses depois, em Maio, Luís Filipe Menezes não resiste à frente do PSD. Borges coloca todo o seu empenho na eleição de Manuela Ferreira Leite para liderar o partido. Assim, depois de uma sucessão de episódios mal resolvidos na esfera política, o economista vai, finalmente, participar activamente numa campanha eleitoral nacional ao lado da ex-ministra das Finanças. Em Setembro, o Lehman Brothers é declarado um zombie. O Financial Times divulgará, mais tarde, que a crise financeira obrigou a Goldman Sachs a reportar perdas líquidas de mais de 4,5 mil milhões de euros com os seus investimentos, abrindo vários processos judiciais movidos por clientes e obrigando o grupo a recompor-se. Enquanto presidente do Instituto Europeu de Corporate Governance (ECGI) e da associação internacional Hedge Fund Standar, Borges é chamado a Washington, pela Administração Bush, para participar na discussão do pacote de medidas e soluções de combate à crise do sistema financeiro americano.

Na Assembleia da República, em Outubro, José Sócrates ironiza para notar que Borges, em tempos, defendeu que "o subprime é uma das grandes invenções do sistema financeiro". O economista mostra-se chocado pela citação "fora do contexto" e pelo "tom ligeiro das acusações mal fundamentadas". Ao PÚBLICO explicou: "O subprime foi na realidade uma inovação muitíssimo importante no sistema financeiro, já existe há muitíssimos anos e sempre funcionou muito bem para permitir o acesso à habitação que de outra forma não teríamos. Os bancos avançavam com o crédito porque tinham a garantia real do valor da casa; enquanto o valor das casas estiver estável, os bancos não correm risco, pois estão relativamente protegidos. Nos EUA, verificou-se o desaparecimento da garantia, quando o preço das casas começou a cair rapidamente." E continua a considerar o subprime uma boa ideia? "Continuo, dentro de condições normais de mercado." Na mesma entrevista, e pouco antes de deixar a Goldman, António Borges concretiza: "O capitalismo tem sempre um desafio ético, que, se não for assegurado, se torna num sistema selvagem, que ninguém deseja. Como é baseado no interesse de cada um dos participantes, na interacção desses interesses, todos temos uma tentação natural a agir de acordo com os nossos interesses directos, em prejuízo dos restantes." Já se sabe que o mercado é a sua praia. E sem vacilar defende: "Não existe alternativa à economia de mercado. Estamos [em 2008] a viver alguns limites, que sempre existiram, o que impõe aos responsáveis maior prudência na forma como olham para as empresas." (PÚBLICO, Outubro de 2008)

2009
Em Setembro, os eleitores votam para um novo governo. No Largo do Rato, em Lisboa, detecta-se no país um sentimento anti-socrático e entre os estrategos do PS o nervosismo é visível. A convicção de Borges, expressa, aliás, naqueles dias, em múltiplas declarações públicas, de que os socialistas não têm condições para se manter no poder, é o seu carburante na batalha eleitoral. Mas não chega. José Sócrates ganha a reeleição.

2010
No Verão, a ameaça de falência da Grécia abre um novo capítulo no equilíbrio europeu. Irlanda, Portugal e Espanha estão na mira das agências de rating. No contexto da crise mundial, o FMI ganha novas responsabilidades em termos de fiscalização (antecipação dos problemas) e estabilização financeira dos Estados. António Borges é sondado pelo presidente do FMI, Dominique Strauss-Kahn (D.S.K.), para ser seu número dois em Washington. Trocam impressões. Aceita. Por essa altura, os amigos detectam no economista uma fadiga extrema. Entre o contacto realizado por D.S.K. e o anúncio da sua nomeação para o FMI, a doença declara-se. A sentença do médico não deixa dúvidas sobre o que o espera. Borges coloca o lugar à disposição do francês, que lhe responde: "Trate-se, depois venha trabalhar." Borges sabe que tem pela frente o seu Vietname. Tomou uma decisão. Evitar falar da doença à família, aos amigos. Tem cumprido. "É corajoso, enfrenta os obstáculos. É uma lição, um exemplo de como devemos enfrentar a doença, mas só uma pessoa com as suas características é capaz de fazer o impossível", confessa o sócio e amigo José Roquette.

Em Outubro, D.S.K. anuncia: "O economista António Borges assume as funções de director do Departamento Europeu do FMI, abrangendo a Rússia, a Ucrânia e a Turquia", uma escolha que resulta da "combinação notável de experiência do sector público, privado e académica". Os PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha) ficavam sob a vigilância do português.

Em Portugal vivem-se, agora, tempos alucinantes. Os juros da dívida pública sobem aos 7%, as agências de rating metralham a República, mas José Sócrates resiste. Pouco depois da nomeação do social-democrata para o FMI, D.S.K. é surpreendido por uma chamada com origem de São Bento. O primeiro-ministro "exige-lhe" que não deixe o seu director-geral para a Europa assumir responsabilidades sobre Portugal. Na sequência, Borges opta pela discrição, mas permanece activo, o que explica os múltiplos contactos que mantém nos bastidores entre Lisboa e Bruxelas. Marcelo Rebelo de Sousa (PÚBLICO, 1 de Abril de 2012) confirmaria as movimentações "dos círculos europeus e do FMI, em Outubro de 2010, véspera da aprovação do OE de Estado para 2011".

2011
Em Março, o chumbo do PEC IV precipita uma chuva de downgrades das agências de rating sobre a economia portuguesa. Em São Bento, é o inferno. A 6 de Abril, Portugal solicita a ajuda dos parceiros europeus mas não... a do FMI. José Sócrates envia cartas formais ao BCE e à UE, e para Washington dirige cópia das missivas. Strauss-Khan reage via Embaixada de Portugal: "O Governo português terá de solicitar formalmente a intervenção do FMI." Tinham passado nove dias desde que Portugal se ajoelhou. O ex-ministro das Finanças de Sócrates, Teixeira dos Santos, está em Washington, onde almoça com Borges. O primeiro encontro desde há muitos anos. Antes reúne-se com D.S.K. para abordar os termos da intervenção. Nesse mesmo dia, o FMI apresenta o Boletim da Primavera. É, portanto, um dos meetings mais aguardados da temporada. António Borges tem os holofotes virados para ele. E esclarece que, embora se tivesse distanciado do "processo por ser português", está em condições de garantir que o apoio do fundo visa ajudar Portugal. E diz: "As agências de rating têm o seu papel. Se os mercados fossem absolutamente perfeitos, o Fundo Monetário Internacional não existia." Em Junho, os portugueses são de novo chamados a pronunciar-se. A disputa nas sondagens está cerrada, mas, desta vez, o eleitorado inclina-se para Passos Coelho.

Nas semanas que se seguiram à entrada da troika, os banqueiros portugueses começaram a exprimir dúvidas sobre aspectos concretos do memorando relacionados com o sector. De Washington, o número 2 do FMI intervém através de um artigo de opinião: os accionistas, sem fundos para injectar nos bancos, ou deixam "o Estado entrar", ou vendem as suas acções. O debate "é totalmente inútil", pois é irrelevante que "os banqueiros portugueses, como os franceses e outros" insistam "que não é preciso mais capital para assegurarem um nível de actividade normal". Terão de o fazer. "O que conta é a opinião dos mercados", conclui.

Em Novembro, após sucessivos escândalos de assédio sexual, D.S.K. deixa de ter condições para continuar no FMI. (Dentro de um ano, em Julho, António Borges confiava, numa entrevista ao PÚBLICO, que o francês "tinha um péssimo track record na matéria e já muitas vezes tinha sido acusado de comportamentos menos aceitáveis", mas "em França poupam-se os políticos" e D.S.K. "foi vivendo dentro deste sentimento de impunidade". Borges interrogou-se: "Como é que aquilo aconteceu? Não sei. É um acontecimento completamente irracional. Um homem que seria indiscutivelmente o próximo Presidente da França e deixar-se apanhar numa situação daquelas é inexplicável." O português não poupa, ainda assim, elogios a D.S.K., o homem que relançou o FMI, dando-lhe "capacidade de intervenção, credibilidade", na reacção à crise de 2008/2009, facto que "gerou muita oposição dentro do FMI, nomeadamente, entre emergentes e anglo-saxónicos".

Em Itália, os jornais dão conta de tensões dentro do FMI, marcadas pela escolha de Christine Lagarde para braço direito do "falcão" norte-americano David Lipton, ex-conselheiro de Barack Obama, colaborador de Bill Clinton e ligado ao Citigroup. "Um radical" na defesa dos interesses dos EUA e defensor da reestruturação das dívidas dos países intervencionados, medida que Borges recusa.)

2012
Em Fevereiro há privatizações em curso, negociações no quadro internacional. O primeiro-ministro tem a seu lado Carlos Moedas e Vítor Gaspar. É deles que parte a sugestão do convite a António Borges para colaborar com o Governo. O economista explicou ao PÚBLICO (em Julho de 2012) por que aceitou trabalhar com Passos Coelho depois de lhe ter feito tantas críticas (em 2010): "A matéria é um pouco penosa para mim, devo dizer, com toda a verdade. (...) Hoje em dia, sou levado a dizer que muitas das críticas que fiz não se revelaram correctas e estou surpreendido com a qualidade com que tem vindo a governar."

Mas ao ser convocado por Passos Coelho para apoiar a estratégia do executivo, Borges ficou escalado para fazer a defesa das matérias impopulares. Para o advogado António Lobo Xavier (indicado por Passos para presidir à comissão de reforma do IRC) o economista está "numa missão", mas também "tem gosto em estar ligado ao processo reformista de quebra do statu quo que o Governo está a liderar". Reconhece, em todo o caso, "que, como consultor do Governo, fica numa situação ambígua, meio político, meio técnico, o que não o ajuda". "É muito livre e não é possível ser-se livre de espírito e depois ter uma função política que obriga à discrição e à contenção." Já Belmiro de Azevedo observa que o economista "quando está a vender consultoria não é tão determinado como na política". Para Diogo Lucena, "Borges não é de fácil integração numa sociedade, como a portuguesa, onde quem não procura consensos é sentido como incómodo". E Álvaro Barreto reconhece que "há verdades que chocam".

Em Setembro do ano passado, em Vila Moura, Borges abre o peito às balas. Não tem nada a perder, não tem nada a ganhar. Após o episódio RTP (admite que está em estudo a alienação a privados de 49% da RTP, logo desmentido pelo Governo), dias depois do "chumbo" da taxa social única, perante cerca de 300 empresários, lança críticas: "Os empresários que se apresentaram contra a medida [TSU] são completamente ignorantes, não passariam do primeiro ano do meu curso na faculdade, isso não tenham dúvidas." A acidez do comentário gera reacções violentas por parte da opinião pública que alastram na blogosfera.

Quase três décadas depois, Nogueira Leite, na qualidade de vice-presidente da CGD, e Borges, enquanto consultor de Passos Coelho, envolve-se num quiproquó a propósito da venda da posição detida pelo banco público, de 9,8% da Cimpor, à brasileira InterCement. Borges quer o negócio resolvido rapidamente. O desentendimento fica expresso em várias discussões que geram "mau ambiente" entre Nogueira Leite e a equipa das Finanças. Um amigo explica: "Borges é o oposto de um banqueiro de investimento típico, que é imaginativo, virado para a transacção e não se interessa pela parte da estratégia. Ele identifica o problema e quer resolvê-lo rapidamente, o que gera tensões."

Vão partir de Borges novas afirmações que voltam a incendiar as redes sociais. "Diminuir os salários não é uma política, é uma urgência, embora seja necessário subi-los quando a situação estabilizar", solução também defendida por Belmiro de Azevedo. Mais tarde, o economista veio garantir que estava a falar em nome próprio.

"Ele disse isso? Bom, talvez. Mas qualquer posição que toma pode ter a certeza que a assume com conhecimento de Passos Coelho, de Moedas ou Gaspar", assegura um dirigente do PSD que opta por não dar o nome. "O Borges acredita genuinamente nas soluções que estão em cima da mesa. Se me pergunta a minha opinião, já é outra coisa, pois este grupo tem feito muitas revisões de metas...."

Mas os críticos temem as consequências das medidas que tem vindo a defender na economia real que sofre agora as vicissitudes dos mercados. A recessão prevista para 2013 é de 2,3%, um agravamento face às previsões iniciais do Governo, que estimam que a economia recuasse apenas 1%. E o desemprego continua a disparar com a perspectiva de que atinja os 19%. Será possível reverter cenário tão desolador? A oposição garante que não e chama a atenção para os dados recentes publicados sobre a economia nacional, que soam como o reconhecimento de que a estratégia de austeridade do Governo não resultou. Os adeptos do Governo defendem que o cenário português "muito negativo" é próprio do ajustamento.

2013
Em Janeiro, na abertura do encontro da Pastoral Social, o conselheiro do Governo pronuncia-se do seguinte modo: "Não há efectivamente uma distribuição equitativa das consequências e muitas vezes há mesmo muita, muita impunidade." Declarações que não apagam a imagem de especialista liberal.

O ex-governador do BdP Jacinto Nunes conta um episódio. "Há muitos anos assisti a uma conferência em que o Borges era orador e fiz-lhe uma pergunta a propósito da teoria do equilíbrio geral. Ele achou a questão estranha e ficou a olhar para mim. Não respondeu. Não por não saber, pois não há dúvida de que é muito sabedor e bem preparado, mas por estar agarrado àquelas teorias." Para os neoliberais, "o mercado regula-se por si e o equilíbrio acaba por se restabelecer. O Keynes [John Maynard] dizia que sim, mas que podia demorar muitos anos e até lá estamos todos mortos. Mas os mercados nem sempre são éticos. Há aquele jogo entre governos e grandes grupos que falseia a concorrência".

Um ex-aluno no Insead a viver nos EUA concorda: "Como o discurso dele está centrado nos mercados, há a ilusão de que está desconectado com o cidadão comum, mas não está. Não toma as posições porque lhe dão jeito."

O ex-assistente Luís Gravito não hesita: "Para mim, [Borges] é um exemplo de como devemos conduzir a nossa vida: diz-se sempre o que se tem de dizer, não o que convém. O que mais me ensinou, enquanto professor, nem foi nas áreas técnicas e profissionais, foi na parte humana."

Dos seus 63 anos, António Borges passou mais de 40 a dar aulas, cerca de 17 em Fontainebleau, acumulando com a carreira docente em Portugal. Em Londres, viveu dez anos, mais um em Washington. Mas foi nos últimos meses, em plena batalha contra a doença e quando poucos o esperavam, que se envolveu inteiramente com o país. O amigo e professor Diogo Lucena remata: "A ideia de que "quero imenso ir para Portugal, mas não posso concretizar essa decisão." acompanha desde sempre António Borges."

Apesar do quadro da doença difícil (um cancro no pâncreas) que enfrentou, o economista escolheu estar de pé. Enquanto administrador não executivo do grupo Jerónimo Martins, esteve em Março na Colômbia a acompanhar o arranque dos negócios do grupo Soares dos Santos naquele país da América Latina. Todos os meses viajava de avião para Londres para falar com investidores, foi o que aconteceu antes de Portugal ter voltado aos mercados, no início de Fevereiro. Há umas semanas partiu para Singapura, onde o Insead mantém a funcionar o pólo criado pelo economista quando era reitor da escola de negócios de Fontainebleau.

De regresso do Oriente, manteve as reuniões agendadas no início da semana passada. Foi ao baptizado de um neto, antes de ser internado na quinta-feira, no Hospital da Cruz Vermelha. Quem com ele se cruzou nos últimos dias não pôde deixar de notar a extrema magreza, as feições desfiguradas, o olhar opaco. Prenúncios de que o fim, agora, ia mesmo chegar. Mas a cabeça funcionava em pleno e continuava a responder aos emails que lhe enviavam. E repetia que acreditava que Portugal ia dar a volta brevemente. Só o tempo mostrará se tinha razão.

Nota: Esta é uma versão actualizada do texto publicado em Março deste ano, na revista 2
 
 
 
 
 
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar