“Estão a dever-me as horas extraordinárias dos últimos 20 anos”
Os professores voltaram à rua. Nesta tarde de sábado, foram milhares os que desceram a principal avenida de Lisboa para pedir “justiça” e “dignidade”. Fomos falar com cinco deles.
A audiência somos nós. Saltamos a pequena cerca do jardim para conversar com uma das colegas da Escola Secundária José Régio, Vila do Conde, mas Maria Clara acaba a responder pelo grupo. É a primeira dos cinco professores com quem falámos nesta tarde de sábado que nos dará as palavras-âncora da manifestação: justiça e dignidade. Maria Clara e as colegas fizeram mais de 300 quilómetros para as gritar em conjunto.
“Os professores são empurrados para esta situação por um Governo que não manifesta o mais pequeno interesse pela dignidade dos docentes, dos profissionais de educação e, de certa maneira, pelas famílias e pelos próprios alunos”, diz Amílcar Coelho. “Uma organização como esta, de ensino, que revela um desprezo pelos seus profissionais, nunca vai a lado nenhum.”
Encontramos este professor de Filosofia, de 60 anos, quando já quase não sobra gente nos Restauradores. Bebe uma Coca-Cola e olha os carros, sozinho. “Vivemos numa sociedade do desprezo”, continua. “Este Governo não tem consciência do que está em causa e atira os professores para uma situação destas. Eu também tenho filhos e netos, e não gostaria que os meus filhos quando fossem fazer exame tivessem de se confrontar com uma situação destas.”
Amílcar veio de Alcobaça. É o responsável pela estrutura da UGT no distrito de Leiria e o que mais repete ao longo da conversa é a palavra “diálogo”. É por isso que lembra que a greve desta segunda-feira, em dia de exame nacional de Português, é o resultado do “autismo” do Executivo. “O Governo optou por uma política de quero, posso e mando, de ruptura”, e “não manifesta o mais pequeno respeito” pelos professores.
“Gostaria de viver num país em que houvesse diálogo, em que nos escutássemos uns aos outros, e que construíssemos as coisas em conjunto, mas hoje há posições totalmente estribadas, totalmente radicalizadas”, lamenta. Menos de uma hora antes, a poucos metros daquele mesmo sítio, Laura de Jesus Braz concordava: “Parece que ninguém nos quer ouvir.”
Laura tem 58 anos, lecciona há 25 – mas trabalha há muito mais. “Trabalhei primeiro numa empresa pública e depois no ensino. Neste momento estou com 44 anos de trabalho e, nas condições que se afiguram, terei de trabalhar 50 e tal, o que acho uma completa injustiça. Este sistema não prevê estas situações. O problema é que daqui a muito pouco tempo não estarei nas devidas condições para conseguir suportar tudo o que está a acontecer.”
A greve de segunda-feira abrange todos os professores, mas para Laura é especial: é professora de Português e sabe que o impacto no exame “não vai ser bom, com certeza que não”. No entanto, não embarca na tese de que “os professores estão a fazer dos alunos reféns”. As consequências desta “derradeira hipótese”, a paralisação, também vão atingir os professores. “Todos os anos sou convocada para ver exames de Língua Portuguesa e obviamente que, se todos os alunos, uma vez que as avaliações não foram feitas, vão ser submetidos ao exame, mesmo os que vão estar reprovados, em vez de ter 30 exames para ver, se calhar vou ter 70. No mesmo tempo. Sinto que também vou sofrer as consequências.”
“É uma falsa questão os professores prejudicarem os alunos. O exame acabará por ser feito”, defende João Silva e atira a batata quente para os gabinetes ministeriais: “A comissão arbitral tinha sugerido dia 20 como data alternativa, mas o MEC [Ministério da Educação e Ciência] afirmou veementemente que não. Não me apercebi de eles terem dado uma justificação. Significa que talvez fosse um finca-pé.”
João é de Coimbra e lecciona na Anadia. É professor de História, contratado. Aos 32 anos, já passou por dez escolas, “mais coisa menos coisa”, e as novas medidas que o Governo tem para o ensino não lhe dão as melhores perspectivas. “A contracção dos lugares provocará o aumento dos horários zero. Quem estiver com horário zero terá preferência a ocupar os lugares que apareçam, portanto as necessidades residuais transitórias que são normalmente ocupadas por contratados vão desaparecer. Os números do desemprego aumentam não só pelos professores do quadro que acabarão por não ter lugar, mas também pelos contratados – que não são tecnicamente professores, são candidatos a professores”, antecipa.
A mobilidade especial, que prevê a desvinculação de quem ficar 12 meses sem colocação, é uma das três medidas que trouxeram estes professores à rua. A outra é a mobilidade interna, que aumenta o número de quilómetros de distância a que os docentes podem ser colocados do seu local de residência. Maria Clara brinca, num tom que parece de quem está dizer uma impossibilidade: “Se calhar, agora de velha é que vou ficar longe…”
Mas é a questão do aumento do horário de trabalho, de 35 para 40 horas semanais, que tem gerado, sobretudo no sector privado, incompreensão pelas reivindicações dos professores, que pretendem manter a carga horária tal como está. “Toda a gente fala na questão das 40 horas do ponto de vista errado”, argumenta João Silva. “O que este e o anterior governos têm feito é atirar o osso da desigualdade entre o sector privado e o sector público, e esse osso é muito apreciado pelo cão danado da inveja social”, diz.
“O que estão a fazer é nivelar por baixo. Em vez de diminuir de 40 para 35 no sector privado – nos países mais civilizados, a tendência é chegar às 35 horas –, aumentam para 40 no sector público. Podíamos considerar que o público é que estava bem, porque é o público que dá o exemplo para a legislação laboral”, continua o professor de História, frisando que, “no caso dos professores, não faz muito sentido, porque já trabalham mais de 35 horas por semana”.
“Faço 45 a 50 horas, até em Agosto. Às vezes, 60. Qualquer dia, levo para lá a cama”, irrita-se Maria Clara. “Estão a dever-me as horas extraordinárias dos últimos 20 anos”. No mesmo jardim, mais abaixo, Carlos Silva, 50 anos, vive a mesma realidade em Ourém: “As 40 horas já eu trabalho. Mais!” Então, o que muda? “A diferença é que nos vão tirar mais algumas horas que temos de redução, que é o caso das direcções de turma. Vão pôr-nos na escola mais tempo, muitas vezes a fazer trabalho quase de contínuo”, explica o professor de Físico-Química.
João Silva lembra que “a preparação de testes, de aulas, coisas tão simples como ler livros” fazem parte do trabalho dos professores. “Aposto que há professores que não lêem livros há anos, porque não podem mesmo; podem ler nas férias. Ora, um elemento como a leitura é uma coisa básica para uma profissão intelectual.” Amílcar Coelho diz que se passou de “um tempo em que os professores ensinavam, preparavam as suas aulas, faziam trabalhos que tinham a ver com o conhecimento e até com a sabedoria, e que as escolas eram lugares de aprendizagem e excelência, para as escolas de hoje, organizadas como grandes depósitos”.
“Para quem está na escola há muitos anos, como eu, sente que a escola se está a degradar e que o futuro está, por isso mesmo, hipotecado”, afirma, por seu lado, Laura de Jesus Braz, cravo de papel ao peito. “Não podemos ser um país de gente analfabeta, que tenha diplomas que não correspondem a nada. Os jovens que estão a emigrar são muito bons, com alta qualificação. É uma traição ao futuro do nosso país. Tenho muita dificuldade em entender isso.”
Sugerindo que é precisamente devido à emigração muito qualificada que se tem vindo a verificar em Portugal que o Governo está a cortar na Educação, Maria Clara Brito ironiza: “Estamos a enriquecer os outros países. Não queremos isso. Não queremos que gastem mais dinheiro ao Governo…”
“Um sistema de ensino minimamente sólido é a única maneira que temos de concorrer com os outros países”, sublinha João Silva. “Portugal tinha vindo a obter bons resultados. Mas com mais alunos por turma, menos professores por escola, mais horas de contacto com os alunos, menos tempo para trabalhar, não vai ser possível fazer um trabalho honesto. Não é o tipo de profissão que se possa proletarizar.”
“Precisávamos de mais paz social, de mais responsabilidade, de mais espírito crítico e de acreditar mais em nós próprios, no sentido de recuperarmos a esperança e de olharmos uns para os outros não como uma ameaça mas como uma oportunidade”, deseja Amílcar Coelho. “Temos de fazer mais e melhor. O Governo devia fazer a sua parte e não está a fazê-la.”
“Espero que os nossos governantes ganhem equilíbrio, sensatez, juízo. Como pessoa mais velha, gostava que os nossos governantes ganhassem algum juízo”, atira o professor de Filosofia. Carlos Silva concretiza: “O Ministério deveria ter alguma flexibilidade e ceder em alguns pontos. Se a mobilidade não vai afectar quase ninguém, como diz o ministro Crato, por que é que ele é teimoso?” Conclui Amílcar Coelho: “Estes políticos são fruto de uma escola talvez um pouco facilitadora e não entendem que temos de nos organizar para trabalhar mais. Mas que para isso temos de dignificar, que respeitar o outro. E este Ministério é ele próprio um factor de conflitualidade.”