O fim da história para Claude Lanzmann
Com Le Dernier des Injustes, um dos filmes mais aguardados em Cannes, o realizador do Shoah regressa aos campos nazis e ao debate sobre o papel que os judeus tiveram no seu próprio extermínio. Fora de competição.
Dentro de Theresienstadt desenrolou-se uma “história louca”, a que o cineasta Claude Lanzmann, 87 anos, regressa com Le Dernier des Injustes, um “documentário magistral” que faz a capa da edição deste sábado do diário francês Libération, na véspera da sua apresentação no Festival de Cannes. Com o documentário de mais de três horas e meia o cineasta regressa a uma personagem que filmara em 1975 para o seu monumento de nove horas chamado Shoah: Benjamin Murmelstein, Grande Rabino de Viena durante a ocupação, que Adolf Eichmann, o chefe da logística de extermínio, nomeou em 1944 para liderar o Conselho Judeu do campo e executar os seus planos. Tudo numa invenção perversa do regime que obrigava os responsáveis de um gueto a executarem as ordens alemãs e, concretamente, a fazerem a lista dos deportados para o extermínio.
Muitos foram mortos nos campos, houve os que se suicidaram e os que, como Murmesltein, foram acusados no final da Guerra de colaboração, de terem negociado com o Diabo – antigos prisioneiros de Theresienstadt apontaram o dedo ao rabino. Julgado em 1946, considerado inocente, Murmesltein retirou-se para Roma, onde Lanzmann o entrevistou. Esse material, que não ficou na versão final de Shoah e foi entregue ao Museu do Holocausto em Washington, é a base de Le Dernier des Injustes (era a designação que Murmesltein dava a si próprio).
“Estive muito consciente das contradições selvagens em que se encontravam estas pessoas que não se tinham voluntariado para este trabalho, que tinham sido escolhidas pelos alemães que, quando não encontravam gente suficiente, as apanhavam na rua”, diz Lanzmann na longa entrevista ao jornal francês, que anuncia na capa “Lanzmann – um filme testamento”. “Quis mostrar que estes supostos colaboradores judeus não eram colaboradores. Eles nunca quiseram matar judeus, não partilhavam a ideologia dos nazis, eram uns infelizes sem esperança.”
Com Claude Lanzmann – e, tal como ele, contra o que escreveu a filósofa Hannah Arendt sobre a responsabilidade e colaboração dos judeus na sua própria morte – está Annete Wieviorka, especialista na história dos judeus no século XX. Diz ela no dossier do Libération: “A grande perversidade do nazismo foi confiar a administração de uma população aos que estavam destinados a ser assassinados.”
Le Dernier des Injustesé, concorda Lanzmann, uma forma de encerrar a sua história com o Holocausto, depois de Shoah, Sobibor, 14 Octobre 1943 (já um filme contra a ideia da passividade dos judeus perante a máquina de extermínio) ou Le Rapport Karski.
O dispositivo do novo documentário que o realizador leva a Cannes inclui a entrevista a Benjamin Murmelstein, feita em 1975, e imagens do cineasta hoje, nos lugares que já fizeram parte da sua odisseia, como Theresienstadt, cidade checa a uma hora de Praga. Para o Libération, o filme termina com um gesto simbólico de reabilitação: Lanzmann, ainda em 1975, nas ruas de Roma com Murmesltein, um abraço de afecto. É o fim da sua história.