"Quando os médicos não passam de idiotas…"

 
 

O autor sublinha que, mais do que o facto de os médicos darem conselhos que depois a Ciência viria a desmentir, o que seria uma ocorrência normal numa ciência não-exacta como a Medicina, era fazerem-no muitas vezes com a segurança de quem baseia o que dizia em fundamentos científicos indiscutíveis... quando, muitas vezes, nada sequer tinha sido investigado sobre o assunto.
 
Vale a pena abordar a questão da chamada “medicina baseada na evidência”, desenvolvida nos países nórdicos e anglo-saxónicos nos anos 1980, a qual trouxe um enorme contributo para a saúde das pessoas, distinguindo muitas vezes as práticas eficazes de outras imprestáveis ou até contraproducentes. Esta perspectiva ajudou, também, a relativizar os efeitos de alguns tratamentos ou o relacionamento causa/efeito que por vezes se fazia e faz apressadamente.
 
O que mais inquieta é pensar que, actualmente, em pleno século XXI, ainda há conceitos errados que são estimulados, praticados e impostos, por exemplo aos pais de crianças pequenas, como não aconselhar a dar passeios antes do mês de idade, dizer para deitar o recém-nascido de lado ou não dar banho antes da queda do cordão umbilical. Ou, no limite do absurdo, exigir ferver a água e esterilizar biberões a quem vive em locais com água plenamente potável – aliás, até antes disso proibir o uso de água da torneira! Ainda assusta mais pensar que muitos destes erros são afirmados com arrogância e com o apoio ou a complacência das autoridades que deveriam supervisionar as boas práticas nos locais onde se prestam cuidados de saúde.
 
Ficam aqui alguns exemplos de “asneiras médicas generalizadas”: Ignaz Semmelweis, obstetra austríaco que viveu no século XIX, recomendou aos profissionais lavarem as mãos entre tocarem em dois doentes ou em produtos biológicos, para evitar infecções, depois de constatar que muitas mulheres que tinham tido bebés morriam depois de os estudantes de Medicina virem de outra aula, na sala de autópsias, e as observarem sem lavarem as mãos. Foi ridicularizado pelos seus colegas médicos, expulso do serviço onde trabalhava e internado num asilo. Hoje o seu nome está em vários hospitais e unidades de saúde, mas a ele não lhe serviu muito ter toda a razão, perante a arrogância e estupidez dos seus pares.
 
Nos anos 20 do último século, a propaganda aos leites em pó dizia que as mães “não eram vacas, de onde não tinham de alimentar os bebés”. Com a tecnologia avançada, as mães poderiam deixar de fazer essa coisa primitiva que era amamentar. Resultado: milhões de mães deixaram de amamentar e milhares e milhares de crianças, sobretudo em países e aldeias menos desenvolvidos, morreram por gastroenterites, desidratações e outros problemas, tanto mais agravados quanto os produtos comerciais eram, ao contrário de hoje, altamente desequilibrados, e a água não tinha condições potáveis mínimas na maioria dos locais.
 
Nos anos 30 afirmava-se: “Pode fumar à vontade durante a gravidez, especialmente se forem cigarros da marca Camel” (porquê? Ninguém sabe). Os médicos não sabiam, nem queriam saber – mas achavam que as suas clientes ficariam contentes e se sentiriam mais libertas, fumando como os homens – a gravidez deixava de ser uma “prisão” (como se alguma vez fosse). Se as substâncias do tabaco eram ou não tóxicas, se a vasoconstrição das artérias da placenta fazia ou não mal ao bebé, era irrelevante. Aliás, muitas sociedades científicas pagavam a edição das suas revistas cedendo páginas e páginas a anunciantes de tabaco.
 
Nos anos 40, a máquina de fluoroscopia permitia visualizar os ossos do pé da criancinha, e, sendo barata, existia em muitas sapatarias, especialmente nos Estados Unidos. Alguns médicos recomendavam, os pais adoravam, e o cancro agradecia a dose suplementar de 50 rems por minuto...
 
Para os vómitos e outras situações da gravidez, a talidomida era excelente: provocou o nascimento de mais de dez mil bebés sem braços ou pernas. Foi em Lisboa, no X Congresso Internacional de Pediatria, em 1962, que o problema foi formalmente debatido e reconhecido.
 
Mais tarde, nos anos 70, colocar mercúrio na boca de crianças de pouca idade, dentro das amálgamas dentárias, era muito eficaz do ponto de vista da medicina dentária. Só que o mercúrio era tóxico para os nervos, levando ao autismo, infertilidade, perturbações do desenvolvimento e outras doenças. Infelizmente, esta prática ainda existe. Foi nesta altura, também, que se arrancavam as amígdalas a quase todas as crianças que se constipassem com frequência ou, nos casos em que um menino tinha apendicite, os irmãos também tinham os seus apêndices removidos… Com anestesia geral, vá lá, ao contrário de tirar os adenóides, também à família inteira, mas que era a sangue-frio, com a criança amarrada, aos gritos, os pais aterrados e o sangue a jorrar. Muitas famílias sofreram e muitos médicos enriqueceram... Mas, é a tal coisa, passava-se no tempo em que os pais de crianças internadas só podiam ver os filhos uma hora por dia, e através de um vidro, não fossem passar infecções (só a partir de 1980 é que, por pressão da Secção de Pediatria Social da Sociedade Portuguesa de Pediatria, os pais começaram a poder acompanhar as crianças nas enfermarias, a princípio com grande resistência de alguns profissionais perante a presença "daquela gente”)... E ainda agora muitos profissionais continuam a não lavar as mãos e a considerar, no fundo, Ignaz Semelweiss como um idiota incapaz (este facto foi ainda recentemente observado num estudo realizado no nosso Departamento de Saúde Pública na Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa).
 
Os anos 80, entre outras coisas, ficarão na história pelo uso e abuso de antibióticos na infância: a pedido de muitos pais e a mando de muitos médicos. Otites, ranhos, adenoidites, febres baixas de dois dias – o que é que o rigor clínico interessava? O antibiótico “curava” tudo (apesar de só matar bactérias e nada mais...). E continuam a ser frequentemente ignorados os dados do Instituto Dr. Ricardo Jorge sobre a evolução da resistência das bactérias mais comuns aos antibióticos, levando a uma sobreutilização, nas amigdalites, do “milagroso” antibiótico de “uma toma durante três dias”... Quando cerca de metade das bactérias das amigdalites são resistentes a ele. 
 
E se os meninos não querem tomar remédios, o que fazer? Enchê-los (aos medicamentos) de açúcar. “A spoonfull of sugar makes the medicine go down” – não é apenas uma canção da Mary Poppins! Tomarão tudo. E quando se diz tudo, é mesmo por vezes tudo: o frasco inteiro. Mas vendia bem… E surgiram as intoxicações medicamentosas, muitas delas fatais, até com o vulgar paracetamol.
 
A passagem do milénio ficará marcada pela subida extraordinárias das cesarianas. A atingir, em Portugal, nas instituições privadas, números-recorde: mais de dois terços do total de partos. Pouco interessa se tem maior risco, a conveniência das parturientes é grande e custa mais caro do que um parto normal (o que valem as palavras, se por normal entendermos “mais frequente”? Então a cesariana será, qualquer dia, realmente, o parto normal...). E quantos obstetras mencionam às mulheres que tiveram cesariana que não devem conduzir automóveis durante quatro a seis semanas, pelo risco de deiscência da sutura muscular?
 
E, para concluir esta série de exemplos, volto a mencionar o caso de, apesar de as orientações técnicas da Direcção-Geral da Saúde dizerem, “preto no branco”, desde 1990, que as crianças devem ser deitadas de costas (fomos o segundo país a ter estas orientações), em 2010 mais de quatro quintos dos pais das maternidades da Grande Lisboa eram aconselhados, na altura da alta, a deitá-los de lado. Se os pais seguissem estas indicações, morreriam por causa delas mais de dez crianças no primeiro ano de vida, por ano, em Portugal. 
 
Muitos exemplos se poderiam dar. Não quer isto dizer que todos os médicos sejam assim. Mais: estou em crer que só uma minoria faz das más práticas a sua prática. Contudo, estando em causa uma coisa tão importante como a Saúde, é o suficiente para subverter muita coisa e ignorar o assunto é ser cúmplice do perpetuar de práticas erradas que podem causar a morte de pessoas. 
 
É essencial, pois, que os utentes se tornem mais sabedores e conhecedores, que interroguem e se interroguem. Não é ter “cultura de Internet”, em que quando se coloca a palavra “febre” no motor de busca do Google aparecem, em 0,19 segundos, 13.200.000 resultados (em inglês seria ainda mais!), mas ser lúcido, rigoroso, exigente e procurar a sabedoria, não embarcando no que mais convém apenas… porque mais convém.
 
A diferença entre Deus e os médicos não pode residir apenas no facto de Deus não ser médico...

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