Ravi Shankar, "obviamente, era um génio"
Reacções dos músicos à morte do mestre indiano
“Era um homem tão grande”, diz Gabriel Gomes ao PÚBLICO, acabando de saber da “perda enorme” do “padrinho da música indiana” – como descreveu Anup Jalota, cantor clássico indiano, citado pela imprensa internacional. E essa mistura de que fala o músico português chegou mesmo “às novas gerações tecno, com os seus samples e misturas”. E ao rap. O rapper El-P escreveu esta quarta-feira, num tweet: “R.I.P. Ravi Shankar. Samplei-te. Eras bom.”
Shankar, eternamente associado ao membro dos Beatles George Harrison e às participações nos lendários festivais dos anos 1960 de Monterrey e de Woodstock, deixa um legado em que são indissociáveis a sua mestria enquanto instrumentista e o seu papel de divulgador da música clássica indiana e da polemicamente baptizada world music. "Acima de tudo, foi um criativo e um divulgador", diz ao PÚBLICO Paulo Sousa, ex-guitarrista dos Essa Entente e sitarista português. Paulo Sousa, que se emocionou na manhã desta quarta-feira ao saber da morte de Shankar, "um músico cheio de glória", retirou dos discos de Ravi Shankar "as [suas] primeiras imagens da Índia". "Teve uma influência vital na minha carreira como sitarista porque foi graças a ele que o Ocidente teve conhecimento da música clássica indiana e foi através da sua música que comecei a interessar-me pelo sitar."
"Obviamente, era um génio e teve a ‘sorte’ de ter aparecido no momento certo”, contextualiza o jornalista musical António Pires, que há muito se debruça sobre as músicas do mundo, citando o trabalho de Shankar com Brian Jones, com os Beatles, com o jazz. Paulo Sousa, que viu Ravi Shankar em concerto no Royal Albert Hall de Londres em 2005, acrescenta à lista a "criatividade e a genialidade" de Shankar no seu trabalho com o compositor Philip Glass ou com o maestro Zubin Mehta, ou "a influência no jazz com John Coltrane. Mas é, para Pires, sobretudo o “divulgador da música indiana, das ragas, como solista. Foi o grande responsável da abertura dos ouvidos ocidentais, da América do Norte e da Europa, e da música ocidental a outras sonoridades, às chamadas músicas do mundo”.
Rão Kyao, que se cruzou com Shankar num festival na Índia no início da década de 1980, não hesita em descrever a influência do trabalho do sitarista na sua obra. “É o meu mito, sou um grande fã.” Recorda a passagem de Shankar nesse concerto com a apresentação de “grandes composições”, “um dos primeiros contactos com essa música que tanto me apaixona”, tal como recorda um concerto recente com a filha, Anoushka Shankar, “em que estava em grande forma”. Cita as colaborações, sempre elas, com intérpretes da clássica indiana, duetos e estudos, e o “muito que fez para divulgar a música indiana nos EUA e na Europa”. E que “nunca foi nesse estilo world music”, e di-lo no sentido pejorativo, “que é misturar frango com ananás, chantilly com sal por cima. Tem que haver uma consonância de base na conjugação de diferentes estilos de música, feita com cuidado e parcimónia”.
O seu principal feito é, “em doses iguais”, sublinha Rão Kyao, ter sido “um grande instrumentista do sitar, um chefe de fila, um estilo musical que deixa uma marca”. Mas também ter sido “um divulgador” – “tinha a fama e o caroço”, referindo-se à substância das suas qualidades como intérprete. “Conseguiu trazer a música indiana com a dignidade que ela merece, com a tradução da sua filosofia e influência dessa filosofia da própria música, no cantar, na aproximação [que a clássica indiana] faz com a própria voz”.
Gabriel Gomes, hoje mais ligado aos universos da electrónica e da música de dança e que foi acompanhado pela música de Shankar nos seus momentos de inspiração na altura da criação, acredita que o legado do músico “pode servir até para criar novos conceitos de música” no futuro, “que, além de poder ser samplada e 'mixada', pode ser base para novas criações”. O trabalho (e a internacionalização) de Shankar nos anos 1960/70 e no movimento hippie passou também, recorda, pelo “apoio a músicos de várias correntes” e mais recentemente, no trance, no techno, foi compreendido pelos músicos desses terrenos dançáveis. “Ele sempre pareceu querer tirar o sitar dos solos sagrados da Índia e levá-la para outros” terrenos.
A sua transversalidade nota-se nas reacções que começaram a ser enviadas por tweets e coligidas mundo fora. Um dos primeiros a reagir foi Giles Martin, filho do produtor de quase todos os álbuns dos Beatles, George Martin, que o descreveu como um homem “belo, secular, caloroso e com talento”. “Aposto que George [Harrison, falecido em 2001] está feliz por vê-lo outra vez.” Peter Fonda, o icónico actor de Easy Rider, privou com Shankar várias vezes e frisa que “a sua interpretação do sitar ficará connosco para sempre”. O realizador indiano Shekhar Kapur recordou a “espantosa força criativa” que foi Shankar, que “nos mostrou qual é o verdadeiro poder suave da Índia. Não os negócios, mas a arte”.
O guitarrista Peter Frampton considerou-o “um grande músico”, a canadiana K.D. Lang agradeceu-lhe “por ser um embaixador musical”, o guru espiritual Sri Sri Ravi Shankar elogiou o facto de Shankar ter levado “a música clássica a novas altitudes” e o músico indie Patrick Wolf referiu-se à partilha da música de Shankar com a sitarista e cantora Bishi Bhattacharya como a “banda sonora dos nossos dias oníricos”.
Já Tim Burgess, vocalista dos Charlatans, lembrou no Twitter “o 'fazedor' de um som belo” e o indo-britânico Nitin Sawhney descreveu-o como a sua maior inspiração de infância”, “honrado por tê-lo conhecido e por trabalhar com Anoushka [a filha de Ravi Shankar], que continuará o seu legado”.
Notícia actualizada às 15h34, com declarações do sitarista Paulo Sousa