Um casal antárctico
Num continente de todos e de ninguém, onde cabem os Estados Unidos e o México e ainda sobra espaço, há apenas duas pequenas povoações. Uma é do Chile, a outra da Argentina. Os dois países estão entre os sete que têm reivindicações territoriais na Antárctida. Tudo o resto se limita a bases científicas ou a bases militares de apoio à ciência
A casa de Nancy Fuentes e Nelson Muñoz distingue-se de todas as outras da Villa Las Estrellas. É a única de telhado azul-forte, em vez de laranja. Mas, tal como as outras 12 desta povoação chilena na Antárctida, de 47 habitantes, é um pré-fabricado branco de forma rectangular e tem um número bem visível num dos cantos.
A história deles e desta casa é muito mais do que a de um simples casal. Tem os seus quês, como todas as relações, só que se cruza com a solidão, a ciência, a política e os meandros das reivindicações de soberania, adormecidas mas não esquecidas, sobre a Antárctida.
Nancy e Nelson vivem na casa 5: para entrar, é preciso abrir duas portas, sem receios de intromissão, e bater na terceira - costume antárctico, explica ela, fi gura franzina que combina uns jeans com um casaco orgulhosamente enfeitado por emblemas oferecidos por quem veio ao fim do mundo, enquanto dá as boas-vindas de sorriso aberto. Caso contrário, avisa, o mais certo é os moradores nem darem pela presença das visitas.
Descalçadas as botas no hall entalado entre as duas últimas portas, onde há abóboras, tomates, casacos pendurados, entra-se directamente na sala. Tem sofás amarelos, estante com televisor, mesa de refeições, telefone fixo e kitchnet ao lado, equipada com os electrodomésticos de qualquer cozinha e restos do almoço ainda nos pratos. O casal vive aqui há dois anos, a caminho do terceiro.
Os caseiros da base
"Sou exploradora antárctica! Tenho uma grande colecção de fotografias. Sou feliz, sou feliz!", atira de chofre, aos pulinhos, com a alegria de uma criança. "Podemos rir-nos e ser felizes." O marido, que entretanto entra na sala, esboça um sorriso sereno dizendo: "Somos muito diferentes." Nancy, 49 anos, era instrutora de aeróbica e vivia em Punta Arenas, no Sul do Chile, com vista para o estreito de Magalhães, antes de se casar com Nelson e se mudar para a Ilha do Rei Jorge, no arquipélago das Shetland do Sul, junto ao topo da Península Antárctica, a orelha de terra que sai do grande continente. Nelson, 60 anos, também vivia em Punta Arenas, onde tinha uma empresa. "Fazia montagens de maquinaria em embarcações", conta assim que se senta num dos sofás.
Como se conheceram? "Dançando!", responde ela - e ri-se. Nelson viu um anúncio do Instituto Antárctico Chileno num jornal a pedir um mecânico e electricista para trabalhar na base de investigação Professor Julio Escudero, na Ilha do Rei Jorge. Veio duas vezes em 2009, por períodos de dois meses. "Encanta-me viver aqui.
Quando me fui embora, foi com nostalgia." Apareceu-lhe a oportunidade de repetir a experiência e, em Dezembro de 2009, chegou para uma estadia longa, invernadas incluídas.
"Sou um antárctico. Quem vive cá no Inverno é assim." Ao que acrescentam os dois ao mesmo tempo: "Isso é que se considera ser antárctico." Meses depois pediu-a em casamento, ela seguiu-o. "Pediu-me para casar por email. Eu estava a trabalhar e a minha chefe disse: 'Vais conhecer a Antárctida!'" Agora é Verão neste canto do mundo. Mesmo que não pareça, já que temos de andar vestidos como no Inverno rigoroso de Portugal, a temperatura é de zero ou um graus e o vento omnipresente chega a ser tão cortante que queima a pele.
Mas porque é Verão as outras casas da Villa Las Estrellas que surgem alinhadas em duas filas numa encosta que dá para a ampla Baía de Fildes estão praticamente desabitadas, a escola básica está fechada, todas as mulheres e crianças partiram para o Chile, como se algo tivesse precipitado a debandada. Foram de férias. Não há quase vivalma, só o som do vento. Pelas janelas da escola, espreitam-se salas vazias com estantes de livros, secretárias pequenas, o quadro branco.
"Muito tempo encerrado não é bom para a saúde mental. Tem de se sair, conhecer pessoas, comprar roupas, cremes. Quero cremes!", diz ela, que entretanto prepara chá-mate para as visitas. "Eu não tenho esses problemas", contrapõe ele.
"O Verão mata-me"
Ficaram poucos, e se há coisa de que Nancy Fuentes não gosta é do Verão antárctico. "O Verão mata-me. Não quero estar aqui no Verão. O Inverno é maravilhoso. Os icebergues sobem e descem no mar, é outro mundo. Vaise esquiar, sai-se na mota de neve. Quando cai neve e há 'vento branco', é lindíssimo. Encanta-me. Este tempo não, é triste. Horrível." Chuvisca, às vezes caem flocos de neve e, de um momento para o outro, o nevoeiro aparece e desaparece. Mas eles não podiam partir nesta altura do ano; é aquela em que têm mais trabalho, até Abril, pois é agora que os cientistas e todo o pessoal de apoio e manutenção mais vêm. Só então podem ir um mês de férias a Punta Arenas. Afinal, estão aqui por causa da base de investigação Julio Escudero, que apenas costuma estar aberta no Verão austral. Além de chilenos, a base acolhe cientistas de outros países (como foi agora o caso de uma equipa portuguesa que estuda as manchas de neve e o solo sempre congelado, com a questão das alterações climáticas em pano de fundo). É ainda ponto de passagem para quem espera transferência para bases de outros países na ilha.
Caseiros é o que, afinal, Nancy e Nelson são na base. Enquanto ele se dedica a reparações de mecânica e eléctricas, ela faz as limpezas. Quando chega o Inverno e todos na base, de cientistas a funcionários de logística e manutenção, se vão embora, eles permanecem. "Ninguém fica na estação, só eu", diz Nelson. Entre a casa deles na Villa Las Estrellas e a base de investigação, a distância é de algumas dezenas de metros, agora livres de neve, o que deixa ver o chão negro e as canalizações à superfície entre as casas. O cenário da vila ganha ainda mais contornos de abandono pelas tubagens grossas na rua - e se nos depararmos com um elefante-marinho perdido, a rojar aquele corpo todo aos solavancos e passar por cima dos canos, então parece mesmo uma paisagem do outro mundo.
A povoação foi inaugurada em 1984, quando chegaram as primeiras famílias: faz parte de uma base aérea, mesmo ao lado, que o Chile mantém na ilha desde 1980. Mas os primórdios da base aérea recuam a 1969, ano em que o Chile criou um centro de meteorologia. "O propósito do centro meteorológico era encontrar um local para uma pista de aterragem. Finalmente, em 1980, inaugurou-se a pista com a aterragem de um Hércules C-130", diz o comandante da base aérea, o coronel Alan Mejias.
Azuis como o céu
Além do Chile, aviões das forças aéreas da Argentina, do Uruguai ou Brasil, todos países com bases científicas na ilha, e da companhia de aviação DAP, de Punta Arenas, aterram nas pistas não pavimentadas do aeródromo.No ano da inauguração, nasceram as duas primeiras, e até agora únicas, crianças na vila: Juan Pablo Camacho e Gisella Ester Cortés, eles sim antárcticos de gema, já que o continente branco não tem nativos. Logo em 1980, a ideia era que a agora chamada Base Aérea Antárctica Presidente Eduardo Frei Montalva estivesse ligada a uma vila de colonos. "O propósito da vila era projectar o país no território", realça Alan Mejias.
Os oficiais que vêm por dois anos, Invernos incluídos, vivem nestas casas, as tais brancas e laranja, com as famílias. O casal de professores também. Perto da bandeira do Chile, a que o vento nunca dá descanso, uma placa cor de laranja não deixa dúvidas de quantos habitavam só na povoação antes do Verão: "Bem-vindos à Villa Las Estrellas, população: 47 habitantes." Eram 21 crianças e 26 adultos.
Mas Paulo Lago, 27 anos, só é carteiro por dois meses, em troca de uma bolsa que lhe permite recolher dados de campo, como biólogo marinho, para a tese de mestrado sobre o efeito da radiação ultravioleta em pequenos crustáceos ("no Inverno, os correios estão a cargo das pessoas da base aérea").
Quando não vai de bote apanhar os seus crustáceos na baía e não está a submetê-los a radiação ultravioleta no laboratório, pensa numa das suas paixões, o surf, ou passeia com um amigo que fez na ilha até às praias mais longínquas e selvagens do estreito de Drake. Vai contemplar uma rocha que os dois ambicionam escalar e então cruza-se com focas de Weddell, sozinhas e a dormir de barriga para cima na praia, num sono tão abandonado, e com haréns de elefantes-marinhos, de olhos doces mas dados a escaramuças rápidas. Amontoados a um canto, os elefantes-marinhos cheiram a pocilga, acreditem, e emitem ruídos que ora parece que fazem bolhas debaixo de água, ora parecem um cão a ladrar. "Este lugar é mais dinâmico. Tem mais ondas. É intenso."
A casa onde Nancy e Nelson vivem tem uma cor diferente das outras da vila pela simples razão de pertencer, não à Força Aérea chilena, mas à base científica Julio Escudero. "Somos azuis como o céu...", diz ela. Bastante mais recente, a actual base científica chilena, de paredes brancas e telhado azul, tal e qual o pré-fabricado deles, abriu em 1995, embora a investigação do país nesta zona tivesse começado 20 anos antes, com a instalação dos primeiros contentores.
Agora a "Base Prof. Julio Escudero, Instituto Antárctico Chileno", como se lê em letras garrafais na parede frontal, é um conjunto também de módulos pré-fabricados rectangulares, nem todos ligados entre si, o que obriga a vestir os agasalhos quando se circula entre eles. Assentam em estacas metálicas. Enquanto na parte de baixo ficam os depósitos de água, os geradores, a despensa, o lixo que será levado da ilha, arrecadações diversas, e é preciso baixar a cabeça quando se passa por este labirinto, na parte superior encontram-se os laboratórios dos cientistas, a sala de refeições - ou os quartos, cada um com dois beliches e casa de banho para homens e mulheres. Há Internet, muito lenta, e os telemóveis funcionam.
Que o diga a chefe da base, Edith Flores, que passa o dia a atender chamadas. Todos os recantos da base confluem para a sala de refeições, ponto de encontro, a horas bem delimitadas de pequeno-almoço, almoço e jantar, seja dos cientistas, seja dos homens das obras que este ano ampliam as instalações e unem os módulos. Não é esquecimento: não há lanche, embora se possa beber chá e café a qualquer hora, e o pequeno-almoço consista principalmente em pão com manteiga, compota e leite em pó.
13 meses sem sair da ilha
E quando a base está agitada por alojar muito mais gente dos que as cerca de 30 pessoas para que está preparada, há reuniões de trabalho na sala de refeições, há quem se aconchegue nos sofás, há quem veja um dos canais chilenos de televisão ou aprecie a vista pelas janelas: edifícios espalhados em frente à baía, a maior parte mais parecem contentores; tanques de combustível; navios da Argentina e do Chile; algum cruzeiro turístico que chegou; ou a praia de cascalho sempre com os patuscos pinguins. Ou as encostas da ilha que surgem entrecortadas pelas manchas brancas da neve e pela terra vulcânica. Toda a Península de Fildes se apresenta assim no Verão, mas o resto da ilha, que é quase toda, está coberta por um único glaciar.
Num repente, a base pode transfigurar-se, com a partida de quase todos os cientistas para outros destinos, restando a equipa de investigação portuguesa, alguns chilenos e a equipa de um realizador chileno que faz um documentário. E então reina um certo sossego.
Sossego não é bem a palavra quando há obras em curso. Vá de martelar, vá de cortar materiais, vá de abrir as janelas ao frio que vem de fora, e já ninguém fica por muito tempo em convívio na sala de refeições, colada à cozinha. Pelo menos deixou de ser preciso fazer fila para tirar os pratos já servidos pelos cozinheiros - lentilhas com salsichas; arroz de mexilhões; ou empanadas, pastéis de massa tenra com ovo cozido e azeitonas. Como sobremesa, costuma haver fruta enlatada, desde pêssegos a morangos e cerejas.
Perante este maior ou menor vaivém de gente, Nancy e Nelson são figuras invisíveis para muitos dos que passam pela base. É vêla aos pulos e abraços quando alguém lhe dá atenção e a interrompe nas limpezas, que noutras bases têm de ser feitas pelos cientistas, e lhe oferece um emblema para o casaco. Ou a alegria com que conta como costuma fazer sauna noutra base mesmo ao lado, separada apenas por um riacho, a da Rússia, onde está a sua amiga Marina Dorozhkina, paleogeóloga russa, há 13 meses sem sair da ilha. "A sauna encanta-me."
Só então reparamos na música de fundo que tem estado a sair do computador e a ecoar pela sala do casal chileno, em repetição automática. É a Antártica? Sim, é a Antártica, confirma ela. Os Hermanos Zabaleta, grupo chileno da década de 1980, cantam-na em estilo Festival Eurovisão da Canção: "Antártica, eres tú/hermosa dama de blanca palidez/te quedaste prendida en mi corazón." Por que gosta tanto desta canção? "Quando a ouves, sabes que te enamoraste do Inverno e não te queres ir embora." Tornou-se num hino para os chilenos que, tendo estado na Ilha do Rei Jorge em serviço, na Base Aérea Antárctica Presidente Eduardo Frei Montalva ou na Capitania do Porto da Baía de Fildes da Marinha do Chile, estão de partida. "Esta canção toca sempre nas despedidas." Põem-na nos altifalantes do aeródromo e, conta-se, emociona-os um pouco ("no continente ninguém a toca, aqui têm-na como canção da Antárctida; é muito bonita", acha o bancário).
Em meados de Janeiro, mais do que despedidas de longas estadias, o aeródromo foi palco de grandes movimentações. Vindas e idas, que cruzaram nitidamente a ciência com a política. O Hércules C-130 da Força Aérea do Chile já tinha trazido e depois levado o Presidente chileno, Sebastián Piñera, e com ele esteve o Presidente do Uruguai, José Mujica.
Em solo antárctico, Sebastián Piñera anunciou a criação de mais uma base chilena, a sétima, desta vez no interior do continente e não apenas em ilhas perto da Península Antárctica ou na sua costa: "O Chile tem uma pretensão territorial sobre a Antárctida. O que temos de fazer, como política de Estado, é fortalecer a nossa presença aqui. É por isso que estudamos a possibilidade de inaugurar uma nova base, que nos permita maior penetração no continente." Não é por acaso que a rádio da Força Aérea chilena na ilha, que passa o dia a emitir música tradicional do país, se chama Soberania.
Na Antárctida, faz-se ciência ou, acima de tudo, política? Minutos antes da partida do resto da comitiva presidencial que ainda tinha ficado, José Retamales, director do Instituto Antárctico Chileno, dependente do Ministério das Relações Exteriores, respondia: "Claro que a política é o motor." Na campanha deste ano, em várias bases e navios, o Chile envolveu 71 cientistas, que estudam desde os anticongelantes dos peixes antárcticos até às alterações climáticas, e investiu 1,3 milhões de euros. José Retamales completava depois: "Com a nova base, queremos saber mais da importância científica da Antárctida, para o futuro do Chile e da humanidade." Todos querem ter um pé na Ilha do Rei Jorge e a ciência é a porta de entrada, num continente rico em recursos naturais, como petróleo, gás natural e minério. Não é coincidência que, além do Chile, do Uruguai e da Rússia, construíram aqui bases a Argentina (foi a primeira, desde 1953), a China, Coreia do Sul, Peru, Polónia e o Brasil (que viu as instalações serem destruídas no final de Fevereiro, num incêndio que causou dois mortos). Antes de mais, porque a distância para abastecer as bases, de avião ou barco, é menor do que noutros locais do continente branco. A presença do aeródromo também é essencial nisso. Por essa razão, esta ponta da orelha que sai da Antárctida é dos principais pontos logísticos da Península Antárctica e um dos locais mais habitados de todo o continente branco, quase cosmopolita.
É pois em frente à Baía de Fildes que a agitação se concentra. A Villa Las Estrellas até pode estar quase deserta, o resto em frente à baía, onde só da parte do Chile se reúnem a base Julio Escudero, a base aérea e a capitania do porto, mais a base da Rússia, criada logo em 1968, fervilha porém de movimento. Há uma profusão de cores dos edifícios, entre o laranja, azul, branco, encarnado e cinza. Há embarcações junto à praia de cascalho, carrinhas e veículos pesados. E em vez de cães, gatos, ovelhas, cavalos ou outros animais domésticos, entretanto banidos por não serem naturais daqui, é fácil dar de caras com um pinguim que segue o seu caminho. Há duas igrejas, cada uma em sua colina, uma católica, sem padre, da Villa Las Estrellas, a outra ortodoxa, com padre, da base russa.
Sinos a rebate
Ainda antes do pequeno-almoço, Anatoli Pristupa, ajudante do padre, costuma tocar os sinos que ressoam pela baía lá em baixo, e logo Pavel Gelyastanov, o padre, reza com ele as orações da manhã. No interior dourado da pequena Igreja da Santíssima Trindade, perfumada pela madeira de pinheiro da Sibéria com que foi erigida em 2004 com donativos recolhidos por toda a Rússia, alcatifa às flores, botas amontoadas que se trocaram por chinelos, os dois russos, de barba e vestes compridas, cabelo apanhado, não têm qualquer fiel na assistência. Geralmente, rezam sozinhos. Ámen é quase só o que se percebe.
"Aqui estou mais perto de Deus. Talvez seja por não haver tanta gente", diria mais tarde o padre, 49 anos, que era director de uma escola infantil cristã em Moscovo antes de vir um ano para a base russa. Mal fala inglês e é com a ajuda de um tradutor improvisado, outro russo da base, que Pavel Gelyastanov conta que estudou física e meteorologia antes de ser padre e que tinha o sonho de vir à Antárctida desde criança.
A história desta igreja, o único edifício bonito da ilha, está exposta à entrada numas folhas de papel, em russo, inglês e espanhol. Presa ao chão por oito correntes, suporta ventos, naquele ermo, até 160 quilómetros por hora. "O objectivo principal era perpetuar a memória dos nossos compatriotas que há 50 anos mantêm a sua presença na Antárctida.
Além disso, há outro motivo: todos os colonizadores, ao fundarem um novo assentamento, começam com uma igreja da sua fé", lê-se. "Agora todos sabem que na Antárctida podem encontrar-se com Deus. Para alguns, este encontro com a Igreja pode ser o primeiro da sua vida, o que justifica por si só a presença dela neste lugar onde se ergueu e alegra a vista de todos os que chegam a estes confins extremos." Perto, subindo em direcção ao interior da ilha, fica o aeródromo - o local das primeiras, e inesquecíveis, impressões, assim que se aterra no Sul. Parece que chegámos a outro mundo. A Marte? À Lua? A visão assemelhase à de uma ilustração científica de futuras bases marcianas ou lunares, como na série Espaço 1999, com os módulos assentes em pés de metal. Solo escuro, pedras escuras, nada de vegetação visível, manchas de neve nas colinas, farilhões pontiagudos de contornos indefinidos ao longe, no estreito de Drake, e o ar fresco na cara.
Do outro lado de uma colina fica a Base Grande Muralha da China, um colosso entre as bases na ilha, com os edifícios de vários andares, veículos de neve, retroescavadoras de lagartas (em 1985, chegaram barcos com duas mil pessoas para a construir, que até jogaram à bola com os pinguins, o que causou um incidente nas reuniões do Tratado da Antárctida).
E do lado de lá da baía, a que se acede de bote no Verão mas que no Inverno pode congelar por completo, vislumbra-se a base da Coreia do Sul. Mais isolada, a do Uruguai está a 45 minutos a pé, 20 de moto-quatro, e antes de lá chegar passa-se por nove gigantescos tanques de combustível russos, apenas dois em uso, os outros, decrépitos, estão rodeados de ferro-velho. Construídos nas décadas de 1970 e 1980, oficialmente para abastecer a frota pesqueira e baleeira soviética, servem agora de armazém de bidões e sacos com substâncias que apodrecem. São fonte de contaminação e derrames de gasóleo, mas não a única, pois todas as outras bases têm casos de poluição.
Ciência ou política?
Muito longe, encontram-se as bases da Argentina, Polónia, Peru e a do Brasil, entretanto destruída. Se o Chile tem hegemonia na Ilha do Rei Jorge, pelos meios logísticos e pela presença, noutras paragens o predomínio é de outros países. O Reino Unido (o primeiro país a reivindicar território, em 1908) afirma-se politicamente na Antárctida através de uma ciência forte, tendo o principal centro de operações um pouco mais a sul, na Ilha de Adelaide, onde instalou a base de Rothera, com pista de aterragem. Os Estados Unidos, a Rússia, a França e o Japão construíram bases mesmo no interior do continente, como uma demonstração do seu poderio, tal como a China está a fazer agora. Há mais de cem em todo o continente, entre as que estão abertas o ano inteiro ou só no Verão, e enquanto umas têm a ciência como prioridade, outras nem tanto.
Também o Reino Unido e a Argentina reclamam territórios que, não tendo exactamente as mesmas fronteiras, se sobrepõem à área reivindicada pelo Chile. Mais quatro países, França, Noruega, Austrália e Nova Zelândia, reivindicam outras fatias do continente, cortando-a quase toda como um bolo. Como argumentos de fundamentação usaram-se as descobertas feitas, a ocupação do território, os direitos herdados, a afinidade geológica e a proximidade geográfica. Todas estas pretensões estão congeladas pelo Tratado da Antárctida, de 1959, que suspendeu ainda novas reivindicações. O continente branco só será usado para fins pacíficos e científicos, pelo que a presença de pessoal e de equipamentos militares é apresentada como destinando-se à investigação científica ou a outra finalidade pacífica. Entre encontros e desencontros, a relação da humanidade com a Antárctida até tem sido feliz desde que foi descoberta, por volta de 1820. A resolução definitiva dos problemas de soberania continua a pairar sobre o continente e resta saber até que ponto a luta pelos recursos naturais irá ensombrar esta relação depois de 2041, quando o Tratado da Antárctida for revisto.
A vida do casal chileno entrelaça-se assim com os caminhos da ciência e da política na Antárctida, quer se aperceba disso ou não. A base científica Julio Escudero ou a Villa Las Estrellas, a que ambos estão associados, são as manifestações da ciência e da política do seu país na ilha. O casamento civil de Nancy e Nelson - em Junho de 2010, à beira do Inverno, ao ar livre, vestidos com "roupas antárcticas" como ela descreve -, pelo comandante da base área chilena, foi visto como um acto de soberania pelo Chile. Há 22 anos que ninguém se casava na Villa Las Estrellas. "Este feito reveste-se de transcendência essencial, que contribuirá para estabelecer finalmente os direitos de soberania do Estado do Chile no território", noticiava então a Força Aérea do país.
Mas nesta competição pela primeira povoação na Antárctida, pelo primeiro bebé, pelo primeiro casamento, tudo faces da luta pela soberania, a Argentina antecipou-se. Criada em 1951 na Península Antárctica, a base Esperanza recebeu as primeiras famílias em 1978 e a escola começou a funcionar nessa altura. Em Janeiro desse ano, nascia o primeiro bebé da Antárctida, Emilio Marcos Palma, e no mês seguinte celebrava-se o primeiro casamento.
Sem fronteiras
Villa Las Estrellas e Esperanza mantêm-se como os únicos povoados na Antárctida. Ainda recostado no sofá da casa que pertence ao Instituto Antárctico Chileno, em plena vila da Força Aérea, Nelson Muñoz tem as ideias claras em relação à soberania que o seu país reclama sobre uma fatia da Antárctida. Nos mapas chilenos, do Sul do país até pode sair um triângulo invertido, que engloba a Península Antárctica e cujo vértice chega ao Pólo Sul: é o Território Antárctico Chileno. Julio Escudero (1903-1984), professor e jurista, foi o autor da lei que fixou os limites desse território em 1940.
"Algum dia vai ter de se resolver essa questão e cada país terá soberania sobre o território que pede. Pessoalmente, espero que nunca ocorra e que a Antárctida se mantenha tal como está: sem fronteiras." Porquê? "Vai perder o encanto, vai deixar de ser algo puro. Os países vão criar fronteiras, vão pôr arames." Não é preciso andar muitos metros para encontrar chilenos que partilham da opinião de Nelson Muñoz. Um deles é o realizador Emilio Pacull, 61 anos, radicado em França desde o golpe militar que depôs o presidente Salvador Allende, em 1973, e instaurou a ditadura no Chile. Em viagem pela Antárctida, a base Julio Escudero tem sido também a casa de Pacull, enquanto faz um documentário sobre o continente branco, Crónicas de Um Mundo Longínquo, narrado na primeira pessoa, para a famosa série francesa Thalassa, do canal France 3.
"Quando era pequeno, os professores mostravam-nos um mapa do Chile, representado por uma espécie de cone, que na parte mais fina alcançava o Pólo Sul. Era a 'projecção' de um território que devia pertencer ao Chile, embora não houvesse fronteiras ofi ciais. A ideia é sempre preparar os cidadãos desde pequenos a 'integrar a ideia' de que esse território 'nos pertence'", recorda Pacull (tão elogiado por outro chileno, o escritor Luis Sepúlveda, pelo documentário Héros Fragiles, também narrado na primeira pessoa, que começa com a morte do padrasto do realizador, conselheiro de Allende, no golpe militar de 1973).
"O meu desejo é que a Antárctida continue sem donos e destinada à conservação da natureza, à cooperação internacional, à investigação científica e à paz. Esta verdadeira 'utopia', que vimos com os nossos próprios olhos e que permitiu criar, pela primeira vez na história, um continente protegido, é algo excepcional e que devemos defender a todo o custo." Cesar Medina, o bancário, sentado à única secretária do banco que é um único contentor, partilha essa convicção: "O ideal seria que continuasse tudo assim, que não houvesse soberania. Se começamos com a questão da soberania, haverá muitos problemas. A Antárctida é tão bonita. A única coisa que isso vai criar é problemas entre os países." Da mesma opinião é o capitão-de-fragata Eduardo Rubilar, o comandante da capitania do porto, um casarão azul e branco contíguo à base Julio Escudero: "O Tratado da Antárctida continua a funcionar porque as principais potências [leia-se Estados Unidos e Rússia] não estão entre os sete países reclamantes. Desde que as potências não reclamem a dissolução, o Tratado da Antárctida continuará a funcionar.
Esperemos que nunca termine." Do que tanto gosta Eduardo Rubilar, chegado em Novembro de 2011 à capitania, com a missão de busca e resgate dos navios nestas águas, é do espírito de entreajuda. Chamalhe "espírito antárctico". "O que vivemos aqui não se vive noutro lado: a vontade de ajudar e cooperar entre distintos países e bases prima sobre os interesses nacionais ou pessoais. Isso, para mim, que estou a viver a minha segunda temporada na Antárctida, é maravilhoso, é o que me fez voltar e deixar outra vez a minha família por quase 13 meses. Cada dia que passa é um dia a menos cá e no final dói-te, porque nunca mais vais voltar", e emociona-se.
"Oxalá a Antárctida fosse um exemplo para o mundo de como se devem fazer as coisas, provavelmente haveria menos problemas. Hoje preciso que me emprestes uma grua, amanhã empresto-te papel higiénico. Aqui o papel higiénico é tão importante como uma grua. Quando alguém diz que não, é porque realmente não pode. Onde é que isso acontece?"
Mesmo não sabendo a língua do outro, há esforço de comunicação. "Uma das maravilhas é que a necessidade de partilhar supera as barreiras linguísticas. É surpreendente ver como as pessoas se entendem e se ajudam nos diferentes idiomas", diz Rubilar. "Falamos um idioma a que chamamos 'antárctico', que parece inglês mas não é, porque os tempos verbais e a gramática são diferentes. E às vezes nem antárctico se fala, basta um sul-coreano e um chileno falarem as suas línguas, moverem muito as mãos e conseguem entender-se." Para lá das reivindicações territoriais, este espírito manifesta-se no convívio entre as bases.
Há festa na base
E foi assim que, num final de tarde, Eduardo Rubilar, tal como delegações de outros países, acabou na base da China a celebrar o Ano Novo chinês, o ano do dragão no calendário lunar. Wang Dali, o chefe da Grande Muralha da China, dava as boas-vindas e convidava os recém-chegados a subir as escadas. A comida e as bebidas esperavam no ginásio, tecto alto, cestos de basquetebol na parede, convertido em salão de festa e baile, onde os convidados foram recebidos por danças de dragões. Sempre que alguém passa por baixo, o pássaro na gaiola presa no cesto de basquetebol canta mecanicamente.
Riram, brincaram, fotografaram-se, comeram, dançaram. "Vamos ficar o Inverno juntos!", dizia Wang Dali a Eduardo Rubilar. Houve espectáculos das delegações das bases: os chilenos apresentaram a dança nacional, a "cueca", em que o homem, de poncho, calças de montar e esporas, faz a corte à mulher, e ambos acenam com lenços brancos, sem se tocarem.
E todos falaram deste espírito. "O espírito antárctico que aqui existe, a união, a cooperação, é único", dizia o tenente-coronel Miguel Calvo, chefe da base científica do Uruguai. "Não há ideologias, não há religiões, não há raças." É no Inverno que o convívio é particularmente importante. "Viver aqui no Inverno é mais duro. Quando se vão embora os navios e os aviões deixam de vir tão seguidos, fica muito tempo disponível", diz o comandante da capitania. "O frio chega aos 24-28 graus abaixo de zero, com uma sensação térmica até 80 graus negativos. As tempestades às vezes obrigam a ficar em casa três ou quatro dias, o que gera stress. No Verão a luz é quase permanente, mas no Inverno há três ou quatro horas de sol. O corpo sente o peso da escuridão. Às vezes os ânimos ficam em baixo. Tem de haver actividades sociais entre as bases que permitam aguentar a vida no Inverno, sempre que as condições meteorológicas o permitem." Por isso, mesmo gostando muito do Inverno, a vida antárctica de Nelson e Nancy é tudo menos fácil. Além das noites longas e do frio intenso, a ilha torna-se mais isolada. "Muito frio", diz Nelson. "A pomba-antárctica, branca como a neve, é o único animalzinho que temos no Inverno. Desaparecem os pinguins, as focas, os elefantes-marinhos. Mas ela suporta temperaturas baixas e um vento tremendo. Impressiona-me." E depois dos três anos aqui? "De momento, temos mais um ano. Mesmo para nós vai ser difícil voltar cá, só se viermos em serviço", responde.
"A vida não é fácil, se não tivermos um espírito forte. Já basta estar longe dos filhos", diz Nancy, mãe de três adultos. Quando o pai dela morreu em 2010, não pôde ir ao funeral. "Em 2011, tivemos dois ou três meses em que não veio nenhum avião. Se o tempo está mau, os aviões não vêm. Se ficamos doentes, não podemos sair daqui. Não temos fruta, nada. Quero ter uns tomatinhos, uns pepinos! Quero ter uma horta, ter salsa, coentros." Para vencer a solidão, o isolamento que sente, a receita que Nancy Fuentes aplica também é o convívio. Joga bingo com algumas mulheres uma vez por semana, bordam, fazem renda. Com a amiga Marina Dorozhkina, em particular, a única mulher na base russa, partilha o gosto pela renda. Costuma visitá-la no seu quarto, um espaço pequeno, cama única, secretária com computador e livros empilhados no cadeirão. "Um ano aqui é suficiente, chega", diz a cientista russa, que, após 13 meses na ilha, ainda tem mais dois pela frente até se ir embora. Marina ainda pouco fala espanhol, Nancy pouco fala inglês - é com a ajuda do dicionário de russo-espanhol, deixado no cadeirão, que partilham cumplicidades.
Mas se a solidão aproximou Nancy e Marina, também afastou Nancy e Nelson. Poucos dias depois do chá-mate na casa deles, e de os deixarmos a despedirem-se à porta, ela partiu repentinamente da Antárctida. A pressão do isolamento acabou por vencer. "Poucas pessoas entendem o que é viver numa ilha." Pelo menos por ora, a história antárctica de Nancy e Nelson não tem um final feliz.
Três portugueses
A neve é toda igual, é branca e pouco mais há a dizer, certo? Errado. A equipa de Gonçalo Vieira esquadrinhou a neve, o gelo e a paisagem dominada pelo frio, tudo por causa dos efeitos do aquecimento global. Pedro Pina e Gonçalo Vieira trocam de lugar, um sai do buraco que tem estado a abrir no gelo, o outro escorrega lá para dentro. "Vais continuar a cavar?", interroga Carla Mora. "Quero ver o que se passa aqui em baixo", responde-lhe Gonçalo Vieira, quase só com a cabeça e os ombros de fora da abertura rectangular. É gelo maciço, por isso o interior da cova é azulada. Ao acumular-se, a compressão torna-o mais cristalino e surge essa tonalidade. "Isto, sim, é gelo cristalino", constata Gonçalo Vieira, geógrafo físico, sobre o que se passa no fundo do buraco, de onde tira entretanto dois blocos com a picareta.
"É espectacular!", diz Carla Mora, também geógrafa física, a observar agora os blocos por uma lupa. O que ela examina é gelo tão compactado que as bolhas de ar foram expulsas e só restou uma ou outra. "Escudero, Escudero", diz uma voz saída do rádio que os três portugueses levaram para o meio do nada, em caso de emergência.
Este nada é o Sul, a Antárctida. Ou melhor, a Península Antárctica. Depois do pequenoalmoço na base de investigação chilena Professor Julio Escudero, que recebeu durante três semanas os três portugueses na Ilha do Rei Jorge, arquipélago das Shetland do Sul, eles fizeram-se ao caminho de moto-quatro, pela estrada enlameada pelo degelo da neve no Verão austral, por vezes cortada por riachos.
Chegados a certo ponto, ao fim de um quarto de hora, as motas ficaram para trás, o caminho fez-se a pé. Subiram-se e desceram-se montes de rochas soltas em lascas, atravessaram-se grandes manchas de neve, teve-se cuidado para não cair, nem escorregar no gelo que derrete, e tentou-se não pisar musgos e líquenes, a única vegetação na terra já liberta de neve.
Lá em baixo, ao longe, sobressaíam os módulos encarnados da base científica do Uruguai, isolada e não muito longe da frente do glaciar Collins (que tapa grande parte da ilha), em permanente desabar no oceano, igualmente de um belo azul pela compactação do gelo.
O que será que anda a fazer Vanessa Rei, do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, a outra portuguesa na ilha, que veio estudar a cooperação científica e internacional na Antárctida e está alojada na base uruguaia? A paisagem é uma manta de retalhos, brancos da neve e negros do solo. O único ruído, que nunca pára, é o do vento - a que por vezes se sobrepõe o pio de um moleiro, aves acastanhadas que planam a poucos metros ou se deixam ficar na neve, quase sempre indiferentes aos seres humanos. Ou das gaivinas-do-árctico a esvoaçarem, esbranquiçadas, asas parecidas com as das andorinhas, que viajaram desde lá de cima até cá abaixo, ao Sul.
Buraco no gelo
Eis os três portugueses de volta do buraco no gelo. Tinham começado a cavá-lo uns dias antes, numa das 12 manchas de neve que seleccionaram no planalto da Meseta Norte, na Península de Fildes, a maior área mais livre de gelo na Ilha do Rei Jorge durante o Verão. Assim que chegaram à ilha, calcorrearam-na até escolherem os 12 neveiros, como chamam às manchas de neve, que se mantêm de ano para ano ou derretem mais tarde no Verão.
"Estamos a tentar chegar à neve permanente", explicava, quando se aproximaram do buraco, Gonçalo Vieira, do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, o chefe da equipa, pela quinta vez na Antárctida. "Ainda deve haver um bom metro de gelo. O ideal seria chegar ao solo, mas não vamos conseguir." Ao que Carla Mora, do mesmo centro, dizia: "É horrível, uma pessoa bate, bate e só sai um bocadinho." O início da aventura em torno do buraco está relatado no blogue do Programa Polar Português, coordenado por Gonçalo Vieira e que, na campanha entre Novembro de 2011 e Abril de 2012, envolve 20 cientistas em projectos distintos, desde os pinguins e a forma como as alterações climáticas afectam a sua dieta até à adaptação dos peixes antárcticos ao frio. "Resolvemos abrir um buraco que chegasse até à neve mais antiga.
Encontrámos gelo maciço, logo uns 40 centímetros abaixo da superfície. Passámos literalmente uma hora e meia a picar gelo e furámos até 70 a 80 centímetros. Sempre gelo maciço. Estamos curiosos com o que estará por baixo e em saber se iremos encontrar algum horizonte com sedimentos, ou apenas mais gelo maciço", relatou o geógrafo no Diário de Campanha deste projecto de investigação, o Snowchange. "Deixámos o buraco aberto e voltaremos para cavar. Estamos curiosos, mas quase não sinto os braços de tanto picar." Mas porquê este buraco no gelo? Esta manhã, a última vez que iam visitar os 12 neveiros - antes do regresso a Lisboa num voo alugado por Portugal e aberto a cientistas estrangeiros, a primeira contribuição logística do país numa campanha -, a dura tarefa iria continuar por conta de Pedro Pina, engenheiro de minas do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, munido de pá e picareta, enquanto Gonçalo Vieira e Carla Mora tinham outros planos.
Mais subidas e descidas pelas encostas de neve e rochas, e foi noutra mancha de neve que os dois geógrafos estacionaram. A pá de jardim e a espátula eram ferramentas essenciais: à vez, Gonçalo Vieira e Carla Mora rasparam a sujidade em cima da neve trazida pelo vento, pedacinhos de líquenes incluídos. "Estamos a tentar recolher os sedimentos. Somos varredores de neve", brincava ele.
E guardavam as partículas de sujidade acastanhada, misturada com flocos de neve, em sacos de plástico, como preciosidades. "Os neveiros agem como concentradores da matéria orgânica. Se não fosse a neve, este material espalhava-se de forma mais homogénea pela paisagem", explicava.
Mas porquê guardar a sujidade das manchas de neve? "Se tiverem muito frio, podem ir cavar com o Pedro", provocava o geógrafo. Com três pares de meias, em pleno Verão antárctico, os pés até não sentiam muito frio. Nem as pernas ou o tronco do corpo, com várias camadas de roupa, que nos faziam sentir como sanduíches.
Mas as mãos, o nariz e os lábios, apesar do passa-montanhas, sim. O céu, esse, era de chumbo. Tapado pela encosta do outro lado, Pedro Pina estava num momento de pausa. Sentado num degrau escavado à beira do buraco, almoçava os energéticos frutos secos e passas que dão na base Julio Escudero aos cientistas que vão trabalhar no campo. "Já não chego com os pés ao fundo", contou assim que viu gente. Pouco depois, os dois geógrafos aproximaram-se também com dez sacos de neve com sujidade e juntaram-se a Pedro Pina. Foi então que Gonçalo Vieira, que coordena o Grupo de Investigação em Ambientes Antárcticos e Alterações Climáticas, entrou no buraco para indagar o que se passava lá em baixo.
Inverno e Verão vê-se na neve
Retomemos o diálogo do início entre Gonçalo Vieira, 40 anos, e Carla Mora, 42, que são casados mas gostam de manter discrição quanto a isso, ele lá em baixo, ela cá em cima, sobre o gelo no fundo da cova. "Estruturalmente, é muito diferente. É possível que seja gelo glaciário que ficou e foi coberto de neve", diz o geógrafo, que afinal já não cava muito mais. Como diante de uma pauta de música ou um livro cujas folhas foram escritas ao longo das estações do ano, segue-se a descrição das paredes de gelo, com a ajuda de uma fita métrica. "A neve tem uma estratigrafia: consegue-se reconstituir a história do Inverno e do Verão", diz o geógrafo. "Dos zero aos 14 centímetros são grãos com cerca de dois milímetros e agregados de quatro milímetros a um centímetro." Carla Mora toma notas do tamanho dos cristais de neve num caderno de campo. "Depois há um nível de recongelação, que vai até aos 16 centímetros." Nota-se bem essa crosta de neve que derreteu e voltou a congelar: é mais dura e percorre a parede.
Mais abaixo: "É possível que seja uma recongelação do último Inverno. Vêem-se aqui os canais." Ao derreter, a água infiltrou-se verticalmente gelo adentro. "Carla, podes dizer que este horizonte tem canais até aos 61 centímetros. E aos 61 centímetros há gelo maciço." A leitura não acaba, e agora o geógrafo observa outro pedaço à lupa. "É gelo maciço, transparente, com vários níveis e bolhas de ar de dois a três milímetros. Queres ver, Carla? Está espectacular." Continua a leitura por aí abaixo, até se atingir o fundo, a 1,77 metros. "Este buraco é muito giro. Está espectacular. Carla, hás-de vir cá dentro, vale mesmo a pena, é incrível." Mas, afi nal, porquê tudo isto, desde recolher pozinhos por cima da neve até à viagem no buraco no gelo? Porque Gonçalo Vieira e o seu grupo de investigação querem perceber certos efeitos das alterações climáticas.
Há mais de uma década que o geógrafo investiga o solo congelado pelo menos durante dois anos, ou permafrost, no quadro do aquecimento global da Terra. A Península Antárctica é dos locais que estão a aquecer mais depressa: desde 1950, a temperatura média anual do ar subiu 2,5 graus. Por isso, o permafrost aproxima-se de uma situação crítica na região e, caso a temperatura atmosférica continue a subir, pode sofrer mudanças drásticas.
Até há uma década pouco se sabia sobre o solo congelado na Antárctida. Criou-se entretanto uma rede mundial de monitorização e os dados recolhidos pela equipa de Gonçalo Vieira em várias ilhas da Península Antárctica, por exemplo em perfurações onde tem deixado termómetros e outra instrumentação, contribuem para essa rede. Têm registado uma tendência de aquecimento, essencialmente no Verão, nos primeiros metros do solo, a camada que se funde e volta a ficar congelada no Inverno e abaixo da qual se encontra o permafrost.
"Estamos numa região muito sensível às alterações climáticas. Há algumas décadas tinha condições para o permafrost existir até ao nível do mar, mas actualmente não tem. Pensa-se que o limite do permafrost está a subir." Ora os neveiros desempenham um papel importante na distribuição do solo congelado.
Para compreender melhor essa distribuição e a paisagem influenciada pelo frio, a equipa de Gonçalo Vieira quer estudar em detalhe as manchas de neve, mesmo que tal signifique uma viagem a um buraco. "Por um lado, estudamos o estado das temperaturas do solo, mas também todos os factores que influenciam essas temperaturas. A neve é um dos factores essenciais. No Verão faz com que o solo permaneça mais frio", explica. "Estudamos a neve nesta ilha, para tentar perceber a sua distribuição espacial, as suas propriedades e, com isso, compreender melhor a distribuição espacial do permafrost." A ideia é melhorar a detecção da neve por satélites, distinguindo-a do que está no terreno à volta, e usar essas imagens no estudo de grandes áreas de permafrost. Mas para isso é preciso recolher dados no campo que permitam calibrar as imagens. "Precisamos de boas amostras no terreno para termos a certeza de que vemos neve nas imagens de satélite", diz Gonçalo Vieira. "Podem ser muito bonitas, mas às vezes são muito diferentes do que se passa no campo", acrescenta Carla Mora, que, além dos efeitos das alterações climáticas sobre o permafrost, se interessa pela detecção remota da neve. É aqui que entra também a área de trabalho de Pedro Pina, que se dedica ao processamento de imagens de satélite da superfície de planetas, principalmente de Marte. Nas imagens, interessa-lhe aperfeiçoar a distinção entre diferentes tipos de cobertura do solo terrestre, o que possibilitará caracterizar melhor a superfície de outros planetas e luas (a equipa ainda inclui o espanhol Julio Martín, da Universidade de Vigo, que ficou na base chilena, pois os planos para usar uma câmara que desenvolveu com várias bandas, numa leitura mais refinada do terreno, saíram furados).
Em saídas anteriores, os neveiros tinham sido alvo de outro tipo de atenções, tal como os terrenos à sua volta. Num dia de tempo mais antárctico, como dizia um deles, dedicaram-se a medir os contornos das manchas de neve, que serão comparados com o que aparece nas imagens de satélite. "Aquele é um dos nossos neveiros, não é?", perguntava Gonçalo Vieira. "É, é, lá em cima", confirmava-lhe Pedro Pina.
Munidos de GPS, Gonçalo Vieira e Pedro Pina andaram nas medições dos limites de cada neveiro, ora dando uns passos, ora parando para o registo, e assim sucessivamente, enquanto Carla Mora ia confirmar se o sensor de temperatura que tinha ficado enterrado em cada um continuava no sítio. "A neve pode ser mais húmida, a zero, um ou dois graus, ou ter menos água e estar a temperaturas negativas. Para nós, é mais importante que esteja húmida, porque consegue identificar-se nas imagens de radar dos satélites", explica a geógrafa.
Dessa vez o chumbo do céu chegou à terra. A paisagem que passava pelos óculos, indispensáveis como protecção da radiação ultravioleta, teimava em vir cravejada de gotículas. Ou se limpavam, ou nem se via bem onde se estava a pôr os pés. Noutras saídas, tiraram as coordenadas geográficas com o GPS do que encontraram fora da neve, ainda para calibrar as imagens de satélite: musgos, líquenes, rochas. Abriram buracos na terra e recolheram amostras, para estudar as partículas de solo e perceber a sua origem - tal como farão às partículas de sujidade que recolheram por cima da neve.
Com os dados da vegetação e das partículas de terra e sujidade, a equipa quer também confirmar uma hipótese: os neveiros são hotspots de biodiversidade, em particular de musgos e líquenes. Aprisionam sedimentos trazidos pelo vento e, ao derreterem, acumulam nutrientes no solo e fornecem água.
Nalguns dias, o tempo estava tão mau que Carla Mora chegou a desabafar no Diário da Campanha que também escrevia no blogue: "Trabalhar no campo hoje foi horrível. Estava muito vento, cerca de 60 a 70 quilómetros por hora, com muita chuva." Nada, no entanto, que o cenário lá em cima não acabe por compensar, pela tranquilidade que transmite mesmo com a ventania. Pela sensação de que se perdeu a noção do tempo. Pela visão, ao longe, das ondas do turbulento estreito de Drake, a passagem entre a Península Antárctica e a Terra do Fogo.
Mas agora, ainda de roda do buraco grande no gelo, as prioridades são outras. "Eh, pá, as camadas vêem-se muito bem. Vou sentar-me", diz lá de dentro Pedro Pina, que voltou a descer e está a fotografar as paredes. "E agora como vou sair? Não consigo levantar-me." Dão-lhe a mão - e começam a deitar pazadas de neve no buraco, que disfarçam os vestígios desta intromissão na paisagem. Cinco horas depois de estarmos ao vento, ao frio e parados na neve, agora sim, os pés estão enregelados.
Esta reportagem foi publicada na Revista 2 de 11 de Março de 2012 no âmbito do projecto PÚBLICO +