Silhueta juvenil, instalada na androginia, Michael Cimino, de 73 anos, sobreviveu a uma viagem de vaporetto para o Lido, ele que odeia barcos. O que é isso para quem sobreviveu a Heaven's Gate (As Portas do Céu, 1980)? "Lost for words", disse, e começou por isso a divagar. A lembrar-se de um há muito, muito tempo, quando numa anterior edição do festival se declarou a uma rapariga ("estava ali", apontou para a sala). "Será que ela se casou?", perguntou, inventando uma miragem e assim fazendo com que inventássemos a memória de Kris Kristofferson, no seu iate, no final de Heaven's Gate, a chorar pela miragem de Isabelle Huppert.
E depois: "Não tem graça ser famoso pelas piores razões: torna-se uma ocupação esquisita", disse, antes de o director do festival, Alberto Barbera, lhe entregar, ontem, o Prémio Persol 2012, que reconhece "uma das mais intensas e originais vozes do cinema americano".
A seguir, a apresentação da versão original desse Nascimento de Uma Nação niilista, dessa visão da América como terra fundada na violência, na xenofobia e no extermínio social, nesse mergulho numa paisagem que cobra tragédia às figuras que nela se aventuram – 219 minutos restaurados pela Criterion.
Unqualified disaster"Esquisito" foi o que Cimino se tornou nos últimos 30 anos, quando, no trauma do desastre comercial e crítico desse filme – o unqualified disaster que sentenciou Vincent Canby, do New York Times, foi agarrado por toda a gente, mesmo por quem não vira o filme –, definhou como cineasta até desaparecer de vista.
Em 2001, a Vanity Fair convenceu-o a mostrar-se, o álibi era a promoção de um livro, e o retrato que fazia era o de um Howard Hughes destes tempos, com plásticas que tinham tornado irreconhecível aquele que era antes um dos corpos densos e rechonchudos do grupo dos italo-americanos dos movie brats.
Mas estas não são as "piores razões". Essas são as que decorrem de Heaven's Gate: a fama de "megalomania", a calm, determined, relentless pursuit of the perfect, alguém descreveu, com que realizou, fazendo o orçamento passar de 12 para 40 milhões de dólares, e com que destruiu uma companhia, a United Artists, quando as bilheteiras não reagiram; ainda, o ter sido responsável por esse desastre exemplar, já que – simbolizando aquilo que, segundo alguns, era a bizarria dos tempos, os anos 70, Hollywood à mercê dos "autores" – Cimino ajudou a ditar com o fracasso o fim de uma era, o fim dos sonhos da geração dos movie brats.
A História é irónica: a United Artists tinha sido formada por Chaplin, Mary Pickford, Griffith e Fairbanks para proteger o trabalho dos artistas e os espectadores do machine made entertainment. Que, nos anos 80, quando os empresários passaram a ditar o conceito dos filmes, se oficializou como regresso à ordem. Mas, como disse Francis Coppola, as corporações tomaram conta dos estúdios e da loucura que ia no asilo, mas com isso desapareceram as visões pessoais – e nem por isso os orçamentos baixaram.
Na plateia, na sessão de ontem, estava Joann Carrelli, a produtora que esteve com Cimino durante o embate com a United Artists, quando o realizador, depois do sucesso e dos óscares de O Caçador, passou de bestial a besta. Foi ela que começou por ser sua agente, era ele realizador de publicidade em Nova Iorque. Foi ela que, nos últimos 32 anos, se bateu por tornar visível a versão original de Heaven's Gate, aquela que, depois do unqualified disaster, esteve em exibição apenas uma semana em Nova Iorque.
Cimino foi obrigado a montar uma versão mais curta que apenas tornou o filme incompreensível, agudizando os problemas de coabitação entre o monumental e as vibrações íntimas – o what one loves about life are the things that fade, como Cimino quis promover o filme, o sopro trágico do trio Averill (Kristofferson)/Ella (Huppert)/ Nathan (Cristopher Walken)...
Foi Carelli que convenceu, primeiro Cimino, que se recusava a revisitar essa fase da sua vida, depois a MGM, que se tornara detentora dos direitos com a absorção da United Artists, a libertar o filme para o restauro. Um filme que nunca tinha sido visto, então: tapado pelo perfil de "acontecimento", inacessível, impossibilitado de, nas coisas belíssimas que tem e nas suas dificuldades, ser visto como aquilo que é: um filme.
Bem-vindo, mr Kasinski mas não tivemos já Jerzi Kosinski?Um homem "banal" descobre-se subitamente célebre, a sua cara derrama-se pelo YouTube, os pedidos de autógrafos na rua não o largam, ele diz não à celebridade e desenha um angustiado ponto de interrogação no espelho. Porquê eu?
Diz não à celebridade, e passa, por isso, a ser mais requisitado pelos talk shows. Talvez ele seja um profeta destes tempos – os canais televisivos é que sabem mais: ele faz subir as audiências quando solta o grito de revolta de homem "banal".
E depois, tal como começou, sem explicação, tudo acaba: no YouTube, os homens banais deitam abaixo Martin Kasinski. Que, como se vê, começou como o Chance/Peter Sellers do Being There de Hal Ashby (1979), o jardineiro simplório cujas máximas são tomadas como alegorias, e puxa pelo grito de revolta de todos os anónimos do mundo como o Peter Finch de Network (Sidney Lumet, 1976) – só que agora as pessoas não gritam nas varandas, filmam-se a gritar e põem isso no YouTube. Isto para dizer que Superstar, de Xavier Giannoli (a concurso), com o seu "herói" interpretado por Kad Merad, não faz mais do que redistribuir. E por isso sabe a remake não assumido (embora o filme tenha sido escrito a partir de um romance de Serge Joncour). Encontramos versões simplistas – menos personagens e mais bonecos a quem o argumentista colocou na boca aquilo que vai servir para os "representar"... – da devoradora ingenuidade da personagem do filme de Ashby (adaptado do romance do polaco-americano Jerzi Kosinski, 1933-1991, chamou-se em Portugal Bem-Vindo Mr. Chance) ou do calculismo corporativo que gelava no premonitório filme de Lumet. Que no seu tempo foi entendido como ficção científica - porque parecia escandaloso o anúncio da realidade de hoje. Ironia das ironias: são esses filmes dos anos 70 que nos dizem o fundamental sobre nós, sobre o culto do estrelato e sobre o show da realidade, já que Superstar apenas replica o culto da superficialidade.
A abrir o concurso desta 69.ª edição, o russo Betrayal, de Kirill Serebrennikov. Que começa como se fosse um retrato psicológico e social da "traição" – um homem e uma mulher descobrem que os respectivos cônjuges são amantes –, depois inflecte para uma dimensão onírica, fantasmática, como se lhe interessasse a obsessão em abstracto e, afinal, depois conclui perante o espectador que não é nada disso, que afinal é um filme sobre a manipulação, em que as mulheres são os dínamos fatais e os homens as vítimas. Esta progressão, até se revelar - e até revelar a sua misoginia –, não tem o efeito de um golpe de teatro; vai, antes, enfraquecendo com suspeita esta ambição do cinema como máquina de monstros. Suspeita-se que Kirill Serebrennikov queria ser Brian de Palma.
E por falar em femmes fatales, eis Marina Abramovic... Performer desconfiada do teatro, território onde, diz, é tudo a fingir, onde actores e público estão protegidos um do outro, pediu a Bob Wilson que encenasse a sua vida. Ele também encenou a sua morte. Bob Wilson's Life and Death of Marina Abramovic, de Giada Colagrade (secção Giornate degli Autori), é um documentário de bolso sobre esse encontro, que foi também o encontro com o actor Willem Dafoe ou com o transgender singer Antony Hegarty, em que a vida de Abramovic, a infância na Jugoslávia de Tito, onde os pais eram figuras proeminentes do Partido Comunista, a violenta relação com a mãe e as suas violentas relações afectivas são destiladas pela luz do encenador texano. Espreita-se o espectáculo de uma mulher que delegou nos homens a possibilidade de a contarem, uma drama queen que aceitou o hieratismo do palco, e a recusa de Wilson da psicologia para fazer a sua catarse - as suas fraquezas como motor da sua arte.