Exposição em Lisboa redescobre Carlos Relvas

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Nesta fotografia Carlos Relvas imprime um tom informal, fugindo aos cânones da época Carlos Relvas

"É uma imagem muito rara, em que se vê uma relação cúmplice, até sensual, com o fotógrafo. O leque, em primeiro plano, está focado e a figura vai-se desfocando. É uma imagem de um requinte extraordinário", diz José Pessoa, que com Vitória Mesquita, ambos da Divisão de Documentação Fotográfica do Instituto Português de Museus, é comissário da exposição.

Intitulada "Carlos Relvas e a Casa da Fotografia", é o resultado de um trabalho que começou em 1988, quando a Câmara Municipal da Golegã pediu ajuda para tratar o espólio do fotógrafo guardado no estúdio do Ribatejo. Cerca de 10 mil negativos em vidro e quase 2000 provas de autor em papel tiveram que ser transportados para Lisboa em 1996, depois de assinado um protocolo com a câmara, porque era impossível tratar o espólio no local.

"É maravilhoso que Relvas esteja a ser redescoberto. As fotos são muito boas para a época, ele fez coisas que mais ninguém fez", disse ao PÚBLICO Mark Haworth-Booth, conservador de fotografia do Victoria & Albert Museum, em Londres, um dos três especialistas consultados pelos comissários e que apresentam textos no catálogo. Aí, Haworth-Booth escreve que Relvas "criou algumas das mais notáveis fotografias do século XIX". São várias: as séries de auto-retratos, entre os quais aquele em que se fez retratar como "fotógrafo nascente", as de animais domésticos e as de paisagem, como a da Serra da Estrela acima das nuvens.

Todos os especialistas se entusiasmaram com as 20 fotografias que Relvas tirou durante a construção do estúdio na Golegã, havendo já pedidos para a itinerância deste núcleo da exposição no estrangeiro. Um deles é de um dos autores do catálogo, Michael Gray, conservador do Museu Talbot, em Inglaterra: "Esta série constitui o único exemplo conhecido de um fotógrafo que registou, passo a passo, a construção de um estúdio fotográfico e a instalação dos seus acessórios."

Único para a história da fotografia

Sobre o estúdio propriamente dito, cuja classificação como património mundial os comissários defendem, Haworth-Booth diz que "não há nada de semelhante no mundo" que tenha sobrevivido até hoje. "Há uma câmara escura de uma aristocrata irlandesa, Lady Mary Ross, mas é muito mais modesta quando comparada com a casa de Carlos Relvas. É muito especial, penso que é única."


Para a história da fotografia, Haworth-Booth explica-nos que o estúdio da Golegã, começado a construir em 1872, é importante para mostrar o idealismo que havia na fotografia no século XIX: "Mostra a ambição da fotografia em ser arte. E porque é que isso é importante? Porque se perdeu. As pessoas que hoje descobrem a fotografia pensam que isso só está a acontecer agora. É bom que haja uma casa que o mostre e que isso não faça só parte da história."

No museu, a exposição começa com as fotografias da construção da casa, enquadradas por uma reprodução gigante do exterior, já terminado. De cada lado da imagem, com vários metros de altura, estão dois bustos de inventores da fotografia, Nièpce e Daguerre, que vieram da Golegã, onde chegaram no século XIX encomendados de Paris por Relvas. "Foram feitos em 1853 pelo filho do próprio Nièpce e serviram de modelo para as imagens que estão na fachada do estúdio. A casa é um monumento à fotografia."

Há uma sala do lado direito das escadas, que funciona como uma espécie de prólogo da exposição, justificando a presença de um fotógrafo no Museu de Arte Antiga. "É um regresso a casa, porque ele fez parte da comissão da Exposição de Arte Ornamental, que foi aqui em 1882 e que, de certa maneira, deu origem a este museu. São algumas das 512 fotografias que Relvas fez para o catálogo. Ele esteve dois meses a fotografar as peças no jardim e este foi o primeiro catálogo fotográfico moderno de um museu."

A exposição, comenta José Luís Porfírio, director do museu, teve 100 mil visitantes. "Hoje corresponderia a um milhão. Lisboa na altura tinha 300 mil habitantes, veio gente de todo o lado." Foi no palácio das Janelas Verdes, alugado de propósito para o efeito, que se utilizou pela primeira vez luz eléctrica numa exposição, porque esta abria às quintas-feiras à noite, com uma ligação telefónica ao Teatro S. Carlos para os visitantes poderem ouvir ópera. O sucesso, explica Porfírio, levou à criação do Museu Nacional de Belas Artes e Arqueologia.

Nascimento de um fotógrafo

A segunda sala da exposição de Relvas é dedicada aos auto-retratos do fotógrafo, Carlos Augusto de Mascarenhas Relvas e Campos, que nasceu em 1838 - a fotografia foi inventada um ano depois - e morreu em 1894, depois de um acidente de cavalo. É filho de abastados proprietários rurais e casou-se aos 15 anos com a filha dos ricos condes de Podendes. Foi feito fidalgo da Casa Real no ano seguinte ao casamento. Aos 19 anos, Relvas já tinha três filhos, ao lado dos quais se retratou, juntamente com a mulher Margarida.


A sua intensa actividade fotográfica terá começado em 1862: "Ele auto-representou-se de várias maneiras, mas ele era tudo isso. É uma exegese da sua própria personalidade. Há o Relvas campino, Relvas jogador de pau, homem de sociedade, jóquei, cavaleiro tauromático, pastor." Tinha três grandes paixões, escreve o historiador de fotografia francês André Rouillé no catálogo: "Cavalos, touradas e fotografia". Rouillé diz também que Relvas é um grande narcisista.

Uma das fotografias preferidas de Pessoa é a que Haworth-Booth considera representar o nascimento do fotógrafo. "Esta imagem de auto-representação é considerada absolutamente fantástica. Ele é muito novo e mandou vir de toda a Europa este material e fotografa-se em cima de uma coluna clássica com o material aos pés. Trouxemos cá os maiores especialistas mundiais para olhar para as fotografias e a reacção deles até a nós nos deixou emocionados." Outra das preferidas, a de Relvas de tronco nu que ilustra a capa do catálogo, é para o comissário uma expressão da sua coragem em termos artísticos: "É uma espécie de Relvas desnudado. Teve a coragem de se expor a si próprio. O Relvas tem sido um fantasma na fotografia portuguesa. Teve um sucesso internacional no seu tempo que é necessário explicar. É preciso mergulhar no seu espólio. O que foi visto até agora foi um cisco."

Negativo é uma partitura

A exposição utiliza o formato que Relvas mandava para as exposições internacionais, onde ganhou vários prémios. No museu, mostram-se cerca de 150 provas de autor, um número nunca visto antes. As outras imagens, a maioria, são impressões actuais cor sépia. "O negativo de um fotógrafo é uma partitura de música. É só preciso saber interpretá-la", comenta José Pessoa, acrescentando que hoje não querer reproduzir os negativos é um preconceito que "já não faz sentido nenhum".


As provas positivas que vemos na exposição revelam, algumas vezes, uma aproximação à paisagem inédita, citando os autores do catálogo o seu interesse por caminhos que vão para lado nenhum. Mostram também animais de quinta frequentemente fotografados como homens. Grandes plano de bois, carneiros e cavalos retratados com as técnicas de estúdio, as mesmas que Relvas utilizou para fotografar reis e mendigos, crianças pobres ou mulheres elegantes.

Os autores do catálogo dizem que é preciso investigar mais Relvas. "Há muito trabalho a fazer. Dez mil negativos do século XIX é uma grande colecção a nível europeu. Parte substancial dos negativos têm que passar para outro suporte", diz o comissário. Michael Gray escreve: "A importância e o valor do legado de Carlos Relvas para Portugal, a Europa e o resto do mundo está para lá de toda a medida e não pode ser desvalorizada ou descuidada." Ele, a quem os fabricantes mandavam material para testar, e que dizia que não passava "de um humilde artista e fotógrafo de aldeia".

Carlos Relvas e a Casa da Fotografia

LISBOA Museu Nacional de Arte Antiga. R. das Janelas Verdes. Tel.: 213212800. De 4ª a dom., das 10h às 13 e das 14h às 18h; 3ª, das 14h às 18h. Até 26 de Outubro. Entradas a 3 euros.


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