Um livro no banco dos réus: triste espectáculo do MPLA
Ancorado na intolerância e no fanatismo, o Partido sempre perseguiu o hábito de desqualificar todos quanto pensam de forma diferente
Hoje em dia o MPLA como antigo movimento de rebelião que se alçou em armas contra a “intrusão intolerável” do colonizador para defender os direitos pátrios dos angolanos pouco se distingue do inimigo colonialista que combateu. Com iguais tiques de arrogância e poder ergueu uma fronteira cerrada à sua volta e obstina-se em ser o único porta-voz da linguagem do independentismo e em se atribuir a si a prerrogativa de posse de todo o conhecimento da história da luta armada de libertação nacional. Pela ameaça e pela repressão fixou a preeminência dos seus direitos ao arrepio dos direitos dos outros. Um espectáculo lamentável que Albert Camus definiria como espectáculo da “sem-razão” ou do absurdo.
Ancorado na intolerância e no fanatismo, o Partido sempre perseguiu o hábito de desqualificar todos quanto pensam de forma diferente; uma espécie de esconjuro contra o “diabo da ilustração, enquanto “entidade maligna” que simboliza o perigo de “separar, confundir e espalhar o caos nos espíritos”. Este traço no MPLA é tanto mais evidente quando se fala da figura política de Agostinho Neto. Se um estudioso se aventura a devassar os enigmas ocultos da história desta organização e traz à luz a dimensão verossímil daquela personagem com o seu rosto de déspota cruel, logo os “sacerdotes” do Partido atiçam um furacão de impropérios e atribuem ao “herege” o labéu de sicofanta e demente. Exemplo paradigmático é o livro por mim publicado recentemente, Agostinho Neto, o Perfil de um Ditador. A História do MPLA em Carne Viva.
As palavras do Bureau Político a propósito deste livro são acrimoniosas e chegam a extrapolar os limites da decência; ferem todos os códigos de civilidade política e até de convivência humana. Nada disto, porém, é invulgar ou surpreendente, se se passar em revista a multiplicidade de gestos no MPLA pelos quais os diversos “Outros” foram sempre desfeiteados e tratados como entidades perversas que se impunha excluir das políticas identitárias nacionais. A tradição de levar os contestatários internos do Partido ao pelourinho da infâmia, da mesma forma que os críticos externos, é antiga na organização. Jamais se tolerou a independência intelectual ou o exercício do pensamento autónomo e plural. Na lógica unidimensional do Partido dominante qualquer tentativa de dessacralizar os dogmas e os mistérios da história oficial é tida por crime de lesa-Estado; torpedeia-se o estudioso de blasfémia e acusam-no de promover “campanhas de difamação contra o MPLA” em conluio com poderes externos.
No meu caso concreto, imputou-se-me o “delito” de incorrer em crenças alheias à pátria angolana e de ser um saudosista do colonialismo. Mas não bastasse este alarde agressivo de chauvinismo e autoritarismo, ainda se tentou amortalhar a obra com a etiqueta abjecta de “insulto ao povo angolano”, como se o MPLA fosse o detentor da arca mágica da vida ou tivesse a representatividade exclusiva de falar em nome da totalidade de milhões de homens e mulheres que compõem a realidade histórica e social de Angola. Se dúvidas houvesse, tal facto vem provar exuberantemente que no MPLA escasseiam (cada vez mais) pessoas virtuosas e no seu lugar pululam filisteus, sem nenhuma dignidade institucional, que olham para o resto do mundo com absoluto desdém. A cultura amedronta-os, sobretudo o trabalho dos estudiosos independentes. Ler a declaração do Bureau Político é como ouvir as palavras de Joseph Goebbels, alto hierarca nazi, que dizia muito cheio de si: “Quando ouço falar em cultura, saco logo do meu revólver”. Este ponto é muito sério e diante dele é lícito afirmar, na esteira de Walter Benjamim, que todo “o ideal é perigoso quando se confunde com o real”.
No imaginário dos militantes do MPLA os dogmas e as catequeses da História têm uma tal força que a realidade pouco vale no confronto com a “verdade” absoluta do Partido. Falar de Agostinho Neto em oposição à ortodoxia oficial, é para os censores desta organização algo que se confunde com a difamação e a injúria. Digamos que se trata de uma ignorância sem paralelo alimentada pela vã soberba de sacralizar todos os actos de Neto, como se o antigo presidente do MPLA, pelo seu estatuto de “líder heróico” e “pai da pátria”, não pudesse ser questionado e nenhum dos seus actos menos exemplares revelados. Ao abrigo desta deificação, sustenta-se todo um catecismo de ideias e um ritual de exaltação e adulação frente aos quais as vozes discordantes são insultadas e lançadas nas fogueiras da abjecção. O equivalente às excomunhões e aos decretos papais que votavam os heterodoxos e os cismáticos ao banimento e à destruição espiritual por considerá-los portadores das marcas de Lucífer.
No MPLA temem-se as ideias originais. Os guardiões do tempo zelam para que as portas do passado se mantenham fechadas e apenas se aceita como única reconstrução do passado libertador a representação do “guerrilheiro refulgente”, nobre, virtuoso e impoluto a pelejar contra as hordas bárbaras coloniais sob a direcção grandiosa e sábia de Agostinho Neto.
Com este sentimento ufanoso e romântico da realidade, os altos escalões directivos do MPLA são incapazes de encontrar o “registo da fala” para descrever o passado autêntico da luta armada com os seus incontáveis detalhes incómodos. Habilmente se socorrem de fluxos retóricos e de narrativas fantásticas para ocultar os mistérios da sua história. Recusam-se, em suma, a reconhecer que a guerrilha não empunhou as armas tão-somente para proteger e libertar, mas também para destruir. Mataram-se camponeses e nesse banho de sangue envolveram-se todas as facções beligerantes. Matou o MPLA, matou a UNITA, matou a FNLA e matou o exército português. Muitos maquisards se converteram em verdugos ao deixarem de purgar as suas feridas no combate libertador, os seus rancores foram canalizados para o corpo sofrido das populações rurais. Isto só foi possível mercê da abominável indiferença dos altos responsáveis políticos e militares; ou mercê daquilo a que Camus chama de “nihilismo absoluto” que aceita a “legitimação do assassinato lógico”. Ou melhor, o assassinato justificado pela luta em si. Os males estavam lá, todavia nem Agostinho Neto nem a sua equipa se esforçaram por eliminá-los. Daniel Chipenda (a quem Neto quis fuzilar), pelo contrário, não se cansou de advertir para a necessidade de se pouparem as populações e a não se violarem sexualmente as mulheres. Os abusos propagaram-se iguais a uma doença cancerígena incontrolável. Foi sem dúvida uma estrada sulcada por episódios arrepiantes. Como diz Luís de Meneses, 3.º conde da Ericeira, na Historia de Portugal Restaurado “as histórias verdadeiras não se inventam, contam-se; deve dizer-se o que foi, não o que desejamos que seja”. Trata-se de um “espelho brutal” diante do qual o MPLA se deve rever sem tibiezas e sem concessões a teorias vitimológicas.
Outra trágica consequência foi a ferocidade com que se voltaram as armas contra os críticos e os dissidentes, além do veneno do ódio que gotejou no meio dos militantes. Não raras vezes se chegou ao absurdo de se dirimirem a tiro ou por enforcamento pendências pessoais e étnicas num longo processo de guerras sujas intestinas, cujos horrores e crueldades requerem ser devidamente estudados um dia.
Em resumo, o Partido-MPLA coloca-se acima das leis, do país e dos cidadãos e imiscui-se em esferas de actividade que não lhe dizem respeito. Os políticos devem ocupar-se da política e deixar aos historiadores, literatos e a outros profissionais de humanidades o exercício do seu mister. Como observa Jesús Silva-Herzog Márquez, ensaísta mexicano, “todo o despotismo aspira a ser um regimento de palavras”.
Ora o discurso da mais alta instância do MPLA é também um regimento de palavras, só que de palavras burlescas e sobranceiras, próprias de quem detém a vara do mando há muito tempo e abusa dela em demonstrações políticas de desprezo e descortesia. Fui condenado em praça pública de modo injusto e tirânico sem que os meus juízes tivessem, ao menos, o cuidado de ler o meu livro com escrúpulo e espírito hermenêutico segundo a história. Ao invés, numa exibição de proselitismo exacerbado, tiraram conclusões apressadas a partir de fragmentos saídos na comunicação social. Esqueceram-se esses “juízes” partidários que as leis fundamentais da República são civis e o Bureau Político ou qualquer outro órgão superior de direcção, incluindo o mais alto representante do aparelho de Estado, se subordinam a tais instrumentos jurídicos. O Partido não impera sobre as leis, tal como imperavam os reis nos sistemas monárquicos absolutos. De acordo com o princípio constitucional da dignidade, as leis prescrevem que todo o cidadão é credor do respeito incondicional à sua dignidade e que este princípio é concretizado no direito à identidade, mas acima de tudo no direito ao bom nome. Ao usar de termos iníquos, o Bureau Político arbitrariamente calcou todos os pressupostos e consequências que dão substância a esta matéria jurídica.
Historiador angolano