Por um dia, não houve refugiados a chegar às ilhas gregas do Egeu
ONU repudia "detenções arbitrárias" dos que chegaram desde que acordo UE-Turquia entrou em vigor. França alerta para as 800 mil pessoas que esperam na Líbia para partir para a Europa. Nas cerimónias de Quinta-feira Santa, Papa lavou os pés a refugiados.
O Papa Francisco ajoelhou-se para lavar e beijar os pés a onze refugiados, revolucionando um ano mais um dos ritos da Semana Santa, mas a Europa a quem ele pede compaixão e acolhimento parece esquecida das crianças que morreram afogadas no mar ou das que gelam ao frio da noite nos campos de Idomeni e já só espera que o polémico acordo com a Turquia seja suficiente para estancar a maré humana. Quarta-feira, pela primeira vez em muitos meses não chegou um único refugiado às ilhas do Egeu, mas nos centros para onde foram levados os últimos a dar à costa – de onde ninguém pode agora sair – o mal-estar cresce de dia para dia.
Nas praias habituadas ao corrupio das embarcações, carregadas de gente com o medo ainda fresco nos olhos, estranha-se a acalmia dos últimos dias, ao ponto do órgão de coordenação da polícia migratória grega (SOMP), que todas as manhãs faz o balanço de chegadas das 24h anteriores, não ter explicações para a súbita paragem. Desde domingo, dia em que entrou em vigor o acordo celebrado entre a União Europeia e o Governo de Ancara, o fluxo foi diminuindo – 1662 chegadas no domingo, 600 na segunda-feira e apenas 260 na terça. As autoridades turcas anunciaram também ter interceptado vários barcos, mas a AFP admitia que ninguém tivesse tentado a travessia somente por causa dos ventos muito fortes registados no Egeu.
Mas as ilhas, sobretudo Lesbos, desde 2015 a principal porta de entrada na Grécia, continuam cheias de gente, agora apenas mais desesperada.
“Eles não nos deixam partir”, queixou-se Abdul Rauf Salip, através das grades do centro de registo (hotspot, na gíria da União Europeia) de Moria, onde nesta quinta-feira activistas e funcionários de organizações não-governamentais se manifestaram contra o acordo europeu, que prevê a devolução à Turquia de todas as pessoas que entrem na Grécia de forma irregular, incluindo refugiados sírios e iraquianos. “Parem as deportações”, “Liberdade”, gritaram os cerca de 200 manifestantes, impedidos de se aproximarem do centro por um cordão policial, enquanto do outro lado da vedação um número idêntico de imigrantes e refugiados respondiam também com gritos de “Liberdade”, conta um jornalista da AFP.
Para contornar as dúvidas legais, a UE decidiu que as expulsões só podem acontecer depois de todos serem registados e terem tido oportunidade de pedir asilo, mas dos 1600 polícias prometidos pela UE para ajudar Atenas na tarefa, menos de 400 estão já a caminho. Mas a Grécia está sob grande pressão para pôr o acordo em marcha – sobre ela pesa a ameaça de expulsão do espaço Schengen – e depois de ter retirado das ilhas milhares de pessoas que chegaram antes de sábado, passou a encaminhar todos os recém-chegados para os hotspots.
A mudança de política foi denunciada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) que, num gesto seguido pelos Médicos Sem Fronteiras (MSF) e outras duas ONG, suspendeu a colaboração com as autoridades gregas na gestão daqueles centros.
Críticas retomadas nesta quinta-feira pelo alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad Al Hussein, que repudiou a “detenção arbitrária de refugiados e migrantes” e apontou o dedo à contradição em que assenta o acordo celebrado na semana passada em Bruxelas. “A intenção de devolver [à Turquia] refugiados e migrantes contrasta com a garantia de que haverá avaliações individuais. Para poder considerar estas garantias como autênticas, as avaliações teriam de ter em conta a possibilidade de as pessoas não virem, de facto, a ser devolvidas. Sem isso, estas medidas continuam a ser classificadas como expulsões colectivas”.
Novas rotas
Mas enquanto uns olham para as ilhas gregas na tentativa de perceber se o acordo sairá realmente do papel – ninguém sabe como vão ser feitas as devoluções, ou se começarão a 4 de Abril, como foi anunciado –, outros centram já atenções em possíveis alternativas para quem vê o Egeu tornar-se caminho proibido.
O ministro da Defesa francês, Jean-Yves Le Drian, admitiu à rádio France 1 que cerca de 800 mil migrantes esperam na Líbia por uma oportunidade para partir para a Europa e que a UE deve agir rapidamente para evitar a abertura de uma nova rota que, além de tudo o mais, poderia servir aos jihadistas do Estado Islâmico para obterem dinheiro com o tráfico de seres humanos. Mais a Leste, a Bulgária está a construir a contra-relógio uma vedação de arame farpado que até Junho deverá ocupar metade dos mais de 250 quilómetros da sua fronteira com a Turquia, apesar de a Organização Internacional para as Migrações (OIM) alegar que “ainda não há sinais” de que as redes de contrabando estão a trocar o Egeu pelos Balcãs de Leste.
De sobreaviso está também a Espanha, desta vez para a possibilidade de os refugiados optarem por Marrocos como última escala na viagem para a Europa, através do estreito de Gibraltar ou dos enclaves de Ceuta e Melilla. No país estão registados três mil sírios, mas Karl Kopp, activista de uma ONG alemã que apoia com refugiados, disse à rádio Deutsche Welle que a Europa adoptou já medidas muito restritivas para travar a imigração ilegal naquela região, pelo que só “os refugiados com mais dinheiro, os que podem pagar subornos” conseguiriam passar por ali.
Polónia recusa refugiados
Em Castelnuovo di Porto, num centro de refugiados a norte de Roma, o Papa voltou a condenar os atentados de Bruxelas — “um gesto de guerra” por trás do qual se escondem “fabricantes e traficantes de armas”. “Somos todos irmãos, filhos do mesmo Deus, todos desejamos viver em paz, integrados”, afirmou, depois de ter lavado os pés a refugiados de cristãos, muçulmanos e hindus.
Mas a mensagem teima em não passar na Europa, onde a crise dos refugiados serve de combustível à xenofobia e aos discursos populistas. Quarta-feira, já depois de conhecida a identidade de três dos quatro bombistas de Bruxelas – todos com nacionalidade belga –, a primeira-ministra polaca anunciou que o seu país não vai acolher os sete mil refugiados que lhe cabiam ao abrigo do plano europeu de redistribuição.
“Depois do que aconteceu em Bruxelas, não é possível dizer que estamos de acordo em aceitar seja que número for”, afirmou Beata Szydlo, voltando a acusar a chanceler alemã, Angela Merkel, de “ter convidado os migrantes para a Europa”. “Essa atitude descuidada levou aos problemas que temos hoje”. Já nesta quinta-feira, o seu Governo do Partido Direito e Justiça (PiS) anunciou que vai aprovar uma nova lei antiterrorista para permitir a detenção prolongada de pessoas suspeitas de terrorismo e a “expulsão imediata de estrangeiros indesejáveis”.