A partir de domingo, Europa fecha a rota do Egeu aos refugiados
UE sela com Turquia um acordo para responder a uma crise que abalou as suas fundações, mas que levanta dúvidas morais, legais e práticas. Merkel fala num " impulso irreversível" para solucionar drama.
Será este um primeiro passo para resolver a crise migratória que pôs a União Europeia à prova, um texto que não vai sair do papel ou, pior ainda, um acordo que um dia envergonhará os europeus? A resposta deve começar a desenhar-se nas próximas semanas — a Primavera está a chegar e as condições no mar tornam propícias as viagens —, mas num momento em que a falta de acordo era vista como desastrosa, os líderes reunidos em Bruxelas optaram por saudar o entendimento com a Turquia para fechar aquela que foi a grande via usada por mais de um milhão de refugiados para chegar no último ano à Europa.
A partir da meia-noite de domingo, “todos os novos migrantes irregulares que se deslocarem da Turquia para as ilhas gregas serão reenviados” para o país, lê-se no texto final da cimeira, que sublinha que esta é uma medida “temporária e extraordinária” destinada a pôr fim às arriscadas viagens no mar Egeu e a “destruir o modelo de negócios dos passadores” que, a troco de grandes quantias em dinheiro, organizam as travessias. Uma medida que se aplicará a todos os recém-chegados — sejam cidadãos de países considerados seguros, sejam sírios ou iraquianos em busca de asilo —, mas que não abrange as 46 mil pessoas que estão bloqueadas na Grécia, 12 mil das quais só nos campos de Idomeni, na fronteira com a Macedónia, entretanto fechada.
No essencial é mantido o pré-acordo negociado na cimeira do passado dia 7, que levou as Nações Unidas e as organizações de direitos humanos a equiparar estes reenvios às “expulsões colectivas e arbitrárias” proibidas pela lei internacional. Por iniciativa da Comissão Europeia, foram introduzidas alterações à proposta inicial, determinando que ninguém poderá ser mandado para trás sem antes ter sido ouvido e de o seu pedido de asilo ficar registado. Por seu lado, a Turquia compromete-se a dar protecção a todos os requerentes de asilo e a garantir que não serão reenviados para os países de origem — iniciativas que dependem de mexidas na legislação nacional, para que possa ser classificada como “país seguro”.
"Um por um"
Tal como tinha ficado previsto na reunião anterior, por cada sírio que a Turquia aceitar de volta, a UE promete acolher outro pelas vias legais, sendo dada prioridade aos refugiados que nunca tenham entrado de forma irregular na Europa (outro mecanismo destinado a desincentivar a travessia).
O princípio do “um por um”, sugerido por Ancara, alarmou os países mais reticentes em aceitar refugiados, o que levou Bruxelas a introduzir outra alteração em relação ao texto inicial. Pelo menos numa primeira fase, a UE aceitará apenas 72 mil pessoas, um número que equivale aos lugares já oferecidos pelos Estados-membros no âmbito do programa acordado no ano passado para redistribuir os refugiados que chegaram à Grécia e Itália e que tarda em sair do papel (menos de mil pessoas foram já encaminhadas para outros países).
Ainda o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, não tinha anunciado a aprovação “unânime” dos Vinte e Oito Estados-membros ao acordo com Ancara, já responsáveis turcos garantiam à Reuters que os primeiros refugiados a quem for recusada permanência em território europeu vão começar a chegar à Turquia no dia 4 de Abril, apenas duas semanas depois de fechada oficialmente a rota do Egeu. No mesmo dia, começarão a partir para a Europa refugiados que tenham sido seleccionados no âmbito do programa de recolocação.
Datas demasiado optimistas tendo em conta as muitas dúvidas que subsistem sobre a capacidade tanto da Grécia como da Turquia para cumprirem as etapas necessárias à concretização do plano — os Vinte e Oito prometeram ajudar Atenas, enviando meios e pessoal para as ilhas gregas onde será feito o processamento dos refugiados, mas o país está longe de ter capacidade para registar todos os que chegam e dar seguimento aos seus processos.
“Não tenho ilusões de que aquilo que acordámos hoje será seguido de novos reveses. Há vários desafios legais que precisam de ser ultrapassados”, admitiu a chanceler alemã, Angela Merkel, sob enorme pressão da opinião pública para inverter a sua política de acolhimento, depois de, em 2015, mais de um milhão de refugiados ter chegado ao país. “Mas creio que chegámos a um acordo que cria um impulso irreversível e era muito importante que conseguíssemos chegar todos a um entendimento hoje”, acrescentou a líder alemã, principal impulsionadora do entendimento com Ancara.
Igualmente entusiasta, o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, falou num “dia histórico” e num “acordo muito importante” que reconhece que a “Turquia e a UE enfrentam o mesmo destino, os mesmos desafios e o mesmo futuro”.
Em troca da cooperação, os Vinte e Oito comprometeram-se a desembolsar mais rapidamente os três mil milhões de euros que já tinham sido prometidos à Turquia — uma ajuda que deverá ser canalizada para melhorar as condições de vida dos mais de 2,5 milhões de refugiados sírios que o país acolheu nos últimos cinco anos, mas que tarda em chegar. Outros três mil milhões de euros serão disponibilizados até 2018, mediante projectos a apresentar pelo Governo turco.
Contrapartidas
À chegada à Bruxelas, Davutoglu insistia que, para a Turquia, a resolução desta crise, “não era algo para ser regateado, mas uma questão de valores humanitários, bem como de valores europeus — em Ancara, o Presidente Recep Tayyip Erdogan mostrava-se mais duro, recusando lições de quem apoia grupos terroristas (uma referências às milícias curdas sírias que combatem o Estado Islâmico) e “é incapaz de encontrar um local decente para acolher um punhado de refugiados”.
Mas o Governo turco sai de Bruxelas com a promessa escrita de aceleração das negociações de adesão à UE (ainda que apenas num dos cinco capítulos que exigia), apesar das reticências cipriotas. Mantém-se também a intenção de abolir os vistos para os cidadãos turcos que queiram entrar no espaço europeu, mas o texto sublinha que Ancara tem de, “o mais tardar até ao final de Junho”, cumprir os 72 critérios impostos pela UE.
Mas as dúvidas sobre o resultado do que foi acordado em Bruxelas não se limitam à legalidade ou à capacidade da UE para o pôr em prática. No momento em que a rota do Egeu se fecha, a pressão aumenta sobre outras: a Albânia recebeu a promessa de ajuda financeira se os refugiados actualmente na Grécia optarem por seguir caminho para Norte usando o seu território, e a Bulgária confirmou que está a reforçar a segurança nas suas fronteiras. Os líderes europeus estão também a olhar com preocupação para a Líbia, país sem lei onde, segundo a diplomacia da UE, os “traficantes actuam livremente” e há cerca de meio milhão de deslocados e refugiados que são candidatos a migrarem para a Europa.