Os valores passaram a ser uma mercadoria?
1. Guillermo Cabrera Infante, o grande escritor dissidente cubano que viveu muitos anos em Londres, escreveu que a capital britânica reflectia o mundo inteiro. Bastava sentar-se numa esplanada de Leicester Square para vê-lo desfilar diante dos olhos. Sadiq Khan ganhou as eleições para mayor de Londres, justamente porque Londres é uma cidade global. A sua eleição não deixa de ser uma boa notícia por todas as razões e por mais uma: Khan venceu contra a campanha suja que lhe fez o seu opositor conservador, Zac Goldsimth, insinuando a toda a hora que ele era muçulmano, portanto… O Financial Times escrevia que Londres votou contra o populismo.
Se a sua eleição é boa para contrariar a crescente onda anti-imigrante que alimenta o Brexit, à falta de assunto melhor, pode não ter grande influência no resultado final do referendo. O eleitorado de Londres quer tudo menos a saída da União e o UKIP de Farage não consegue ultrapassar uns meros 4%. É o resto da Inglaterra que vota contra a Europa, contra os imigrantes e até contra Londres. As sondagens continuam sem dar uma vantagem clara a ninguém, mantendo o suspense sobre o destino do Reino Unido e, consequentemente, da Europa. Não deve haver hoje um tema que preocupe mais os governos europeus, mesmo com todas as crises que têm em mãos.
Dito isto, podemos passar às más notícias, que infelizmente não dão tréguas.
2. Na quinta-feira de manhã, não queria acreditar no que estava a ouvir na rádio. A Comissão Europeia tem uma nova proposta para aplicar multas de 250 mil euros por cada refugiado que um determinado país rejeite da quota que lhe foi atribuída. Bruxelas diz que é sobretudo para os países de Leste. A notícia não teve grande repercussão, revelando a indiferença que hoje grassa em muitos países da União perante a tragédia dos outros. Percebe-se o desespero de Jean-Claude Juncker, que não consegue fazer passar nenhuma das propostas da Comissão destinada a pôr em prática uma redistribuição mais equilibrada dos refugiados. Mas mercantilizar os valores europeus é um passo que nunca devia ser dado. Não aceitas o valor da solidariedade e da abertura aos outros nem o respeito pela dignidade de quem foge da guerra ou da miséria? Pagas multa. O Papa tinha razão: para onde foi a Europa humanista? Ontem, o presidente da Comissão voltou a exprimir o seu desespero de uma forma veemente. Se a Áustria bloquear a sua fronteira com a Itália no túnel de Brenner, será uma “catástrofe politica”. Apenas mais uma. Na primeira volta das eleições presidenciais austríacas o candidato (muito) mais votado foi Norbert Hofer, líder do partido de extrema-direita, remetendo os dois partidos do regime que partilham o poder desde 1945 para valores irrisórios. Qual é a sua campanha política? Igual a todas as outras da mesma família. Contra os imigrantes e os refugiados em geral, e os muçulmanos, em particular. A Áustria para os austríacos. Viena nem sequer tem sido dos piores exemplos e o seu governo anunciou que dará 37 mil concessões de asilo durante este ano, mesmo prometendo uma revisão da lei do asilo num sentido mais restritivo. A imprensa austríaca diz que Hofer é jovem (45 anos), tem uma cara simpática e fala suavemente. Os partidos nacionalistas e populistas mais influentes, da França à Itália, estão a eleger uma nova geração de líderes mais adequados à cultura democrática, reduzindo os anticorpos gerados por uma velha geração ainda ligada à matriz dos nacionalismos da primeira metade do século XX e à guerra, lembrando outras épocas que a Europa quer esquecer. O exemplo clássico é Jean-Marie Le Pen. Marine em França, Matteo Salvani na Liga Norte italiana, um jovem no Movimento Cinco Estrelas de Beppe Grillo muito mais apresentável do que o próprio.
3. Juncker desespera porque a Europa está de novo à beira de um fracasso de todo o tamanho na crise dos refugiados. O mais sério revés até pode não ser a recusa das quotas. A chanceler alemã assentou toda a sua estratégia para controlar a crise numa negociação com a Turquia, confiando em Recep Erdogan para aliviar a pressão recebendo os refugiados que chegam às ilhas gregas. Ofereceu-lhe dinheiro, o recomeço das negociações de adesão, isenção de visto para os turcos. Muita gente avisou que era um risco enorme e muito pouco compatível com a deriva cada vez mais autoritária do Presidente turco. Concretizaram-se as piores previsões. O novo “sultão” chantageia a Europa de todo o modo e feitio e ignora qualquer das suas recomendações. Prende jornalistas e encerra jornais, como o Zaman, cuja versão em língua inglesa era uma fonte inestimável de informação fidedigna. O resto da imprensa ou se submete ou fecha. Classifica os curdos como “terroristas”. A última má notícia foi confirmada na quinta-feira e deve ter tirado o sono à chanceler: o primeiro-ministro turco Ahmet Davutoglu, um académico que foi durante muito tempo o braço-direito do actual Presidente, acaba de ser sumariamente despedido. O líder turco não perde uma oportunidade para concentrar o poder nas suas mãos, quer presidencializar o regime e prosseguir a sua chantagem em relação à Europa, porque já percebeu quanto é fácil faze-la ajoelhar. Falta dizer que Davutoglu era a face mais moderada das negociações com a Europa e que criticou algumas das medidas repressivas de Erdogan contra jornalistas e académicos e defendeu uma negociação com os curdos em vez de bombardeamentos
Erdogan parece seguir o modelo da Rússia de Putin ou da China de Xi, com uma rara concentração de poderes nas mãos de um só líder. O problema é que, para isso acontecer, a corda nacionalista contra os inimigos externos é uma peça fundamental e a repressão é outra.
4. Mas não percamos a esperança. Na Inglaterra foi lançada uma campanha nas redes sociais a favor da permanência na União que é irresistível. Chama-se Hug a Brit (abraça um britânico), qualquer um que te passe à frente. É uma iniciativa de gente jovem para quem ser europeu e britânico não constitui problema. Li recentemente uma frase de Sadiq Khan que, só por si, resumia a ideia essencial da obra de Amartya Senn sobre as identidades, quando os atentados de 2005 puseram à prova o multiculturalismo britânico. A ideia do grande economista de Cambridge era simples: somos todos muitas coisas ao mesmo tempo e isso não é uma fraqueza, pode ser uma enorme força. Numa entrevista à Atlantic, o novo mayor recusou-se a ver a sua identidade em termos binários. “Sou londrino, europeu, britânico, inglês, a minha fé é islâmica, de origem asiática, de herança paquistanesa, pai, marido”, disse ao New York Times. Senn não diria melhor.