Olha um Hitler
Há defensores convictos destas novas teses nacionalistas. Outros ainda não se terão apercebido da fragilidade delas
Não é todos os dias que alguém se compara com Hitler e se disponibiliza para matar ou mandar matar três milhões de pessoas. Mais raro ainda é que a pessoa em causa seja chefe de Estado e tenha os meios para cumprir com o que diz. Mas aconteceu na semana passada.
O presidente das Filipinas Rodrigo Duterte, já conhecido por ter chamado “filho da puta” a Obama e respondido a uma resolução do Parlamento Europeu com um “vão-se lixar”, fez na sexta-feira um discurso que incluiu o seguinte excerto: “Hitler massacrou três milhões de judeus” (nota minha: segundo a maioria dos historiadores, o número é o dobro); “nós temos três milhões de drogados e eu ficaria feliz em poder massacrá-los. Ao menos os alemães tiveram o Hitler e as Filipinas ter-me-iam a mim. As minhas vítimas seriam só criminosos para se poder acabar com o problema do meu país e salvar a próxima geração da perdição.”
Nada descreve tão bem a anestesia geral em que vivemos. Durante décadas, a hipotética ocorrência de um novo Hitler seria suficiente para alarmar meio mundo. Hoje, um homem que governa cem milhões de pessoas numa das regiões mais voláteis do mundo e que tem um conflito territorial no mar da China com pelo menos outros três países pode comparar-se a Hitler e a reação geral é como se víssemos um tipo de bigodinho esquisito na rua. Olha ali um Hitler. Extraordinário.
Duterte pediu depois desculpas à comunidade judaica literalmente com estas palavras: “Eu não fiz nada de mal mas eles não querem que se ofenda as vítimas do holocausto portanto peço desculpas à comunidade judaica”. Os filipinos que estão a ser vítimas de assassinatos sem julgamentos nem culpa formada e os dos prometidos massacres baseados em rumores e suspeitas não terão direito a estas delicadezas.
Mas nós não estamos só anestesiados. Estamos cegos. O nosso ponto cego é o de um entendimento da soberania que se reduz à soberania nacional e faz das nações compartimentos fechados onde cada um decide a sua lei. Sabemos bem que esta ideia tem vingado no solo fértil dos falhanços das Nações Unidas, da hipocrisia dos EUA na invasão do Iraque ou na demagogia que grassa contra qualquer organização internacional, da União Europeia às várias convenções e tribunais regionais de direitos humanos. A direita autoritária propunha esta visão enclausurada da soberania e uma parte da esquerda engoliu-a com anzol, isco e linha. Aquilo que um país decide fazer “democraticamente” está protegido por esta visão nacionalista da soberania, em tudo oposta à soberania que se funda na dignidade inviolável de cada ser humano.
Há defensores convictos destas novas teses nacionalistas. Outros ainda não se terão apercebido da fragilidade delas. O que justifica que um presidente de um país possa dizer o que disse Duterte, e fazê-lo, mas não um auto-proclamado chefe de família ou líder de uma seita, um partido ou um clube de futebol? Nada, a não ser a proteção de outros países.
Saudades de um tempo futuro em que se diga aos Dutertes deste mundo: os crimes contra a humanidade serão punidos e acabarão sempre em frente a um tribunal, seja em Haia, Nuremberga ou Manila. Para que até Duterte entenda a gravidade daquilo onde se está a meter.