Obama dixit, ou a nação indispensável e a impotência europeia
O sentimento de excepcionalismo e de missão, enraizado na elite dirigente norte-americana, dá-lhes autoconfiança e também arrogância. O que é bom para os EUA é bom para a Europa, é bom para o mundo.
1. Os EUA são a “nação indispensável”. Num impulso de autoconfiança, ou de arrogância, Madeleine Albright, a antiga responsável da política externa durante a Presidência Clinton — umas das muitas figuras políticas de origem europeia que fugiram da tragédia da II Guerra Mundial —, popularizou essa ideia. Ecoa um sentimento de excepcionalismo bastante enraizado na elite dirigente e na população originária do Velho Mundo, que afluiu à América do Norte, desde os primórdios das colónias fundadas no século XVII. Tal como outros povos no mundo, os EUA estão imbuídos de um zelo missionário espelhado na doutrina do destino manifesto (manifest destiny). A ideia de uma missão divina a cumprir — a criação de um Novo Mundo, em rejeição do Velho Mundo europeu —, foi muito conveniente para justificar a expansão territorial das treze colónias britânicas, que se declararam independentes em 1776. Este misto muito peculiar de ideais e de interesses foi bem captado por Eduardo Lourenço: “A América é uma tão inextricável mistura de realismo e de idealismo que se é sempre injusto quando se reflecte sobre a sua actuação no mundo” (Ver A Europa Desencantada, Gradiva, 3.ª ed. 2011 p. 218).
2. Para a maioria dos europeus do século XVIII provavelmente a independência dos EUA foi um episódio menor. Mera sequela colonial da guerra dos Sete Anos e da confrontação entre a França e a Grã-Bretanha na Europa. Já os colonos independentistas, viam-se, a si próprios, desde o início, imbuídos de uma elevada missão: construir um Novo Mundo política e moralmente superior, em rejeição da Velha Europa corrupta e dominada pela realpolitik. No clássico trabalho sobre os EUA do século XIX, escrito por Alexis de Tocqueville nos anos 1830 (A Democracia na América, trad. port, Principia, 2001, p. 277), a política externa dos EUA era retratada como isolacionista e sem paixões: “Não se imiscuindo nos assuntos da Europa, a União não tem, por assim dizer, nenhuns interesses externos a discutir, pois não possui ainda nenhuns vizinhos poderoso no mesmo continente. Arredada, tanto pela sua situação como pela sua própria vontade, das paixões do Velho Mundo, não tem de se precaver em relação a elas nem de lhes facultar a sua adesão. Quanto às paixões do Novo Mundo, o futuro ainda as esconde.” Não muito tempo depois de fazer este comentário sobre a invisibilidade das paixões do Novo Mundo — o impulso imperial da jovem república —, que Tocqueville não descortinou, tornou-se bem perceptível.
3. O México — hoje país de proveniência da maioria da população hispânica dos EUA —, entrou em rota de colisão com a expansão norte-americana para Oeste e para Sul. Na segunda metade dos anos 1840 deu-se uma confrontação militar. Como resultado dessa guerra perdeu os territórios do actual Sudoeste dos EUA, do Texas até à Califórnia. Ironicamente, hoje cada vez mais habitados por população hispânica devido às migrações. Por isso, Donald Trump agita o espectro da invasão hispânica / mexicana. Retoma, de forma populista e num discurso agressivo, as teses de Samuel P. Huntington (ver Who Are We?: The Challenges to America's National Identity, Simon & Schuster, 2004.) Voltando ao século XIX, o ano de 1898 marcou novo confronto militar, agora com uma potência europeia em declínio — a Espanha. A vitória dos EUA na guerra hispano-americana permitiu o domínio sobre Cuba e Porto-Rico na América Central, e sobre as Filipinas e ilhas Guam na Ásia-Pacífico. A crescente ambição de poder — que Raymond Aron qualificou, mais tarde, em 1973, como característica de uma república imperial —, foi celebrada na imprensa da época. A revista McClure’s evocou o acontecimento com um poema do escritor britânico Rudyard Kipling, The White Man's Burden / O Fardo do Homem Branco (Kipling foi prémio Nobel de Literatura em 1907). O subtítulo era The United States and the Philippine Islands.
4. Até à II Guerra Mundial, apesar da retórica que rejeitava as ideias e valores corruptos da Europa, a grande maioria da população — exceptuada a indígena e a oriunda de África devido ao tráfico de escravos —, era de origem europeia. As ligações existentes entre os EUA e o Velho Continente, em termos de correntes migratórias, foram uma constante, pelo menos até aos anos 1940. Na altura da I e II Guerras Mundiais, uma parte muito significativa da elite cultural e científica europeia foi para os EUA, com grandes vantagens para estes. A partir dos anos 1950 / 1960, a emigração originária do Velho Continente deu lugar a importantes fluxos migratórios com origem na América Latina e Ásia. Esta profunda mutação das correntes migratórias alterou o melting pot norte-americano, hoje transformado em multiculturalismo. Tornou, também, a sociedade mais complexa, ao nível cultural e político. Tal facto reveste-se de importância sociológica e de implicações políticas. Hoje, por exemplo, a minoria mais substancial já não são os afro-americanos mas as populações hispânicas. Quanto à tradicional componente dos White Anglo-Saxon Protestant (WASP) — derivada da emigração europeia, especialmente da oriunda da Europa do Norte protestante —, tornou-se uma minoria e perdeu influência. Donald Trump joga com o ressentimento WASP / conservador. Por razões culturais e políticas a Europa interessa cada vez menos aos norte-americanos. As suas raízes estão agora noutras partes do mundo. Os seus interesses também, especialmente na Ásia-Pacífico.
5. Na Europa em construção o processo segue o caminho inverso. As eleições para o Parlamento Europeu, a escolha do Presidente da Comissão, as reuniões do Conselho, tudo isso são assuntos enfadonhos, sem emoção, quase irrelevantes para o cidadão comum. Eleições para Presidente dos EUA, isso, sim, interessa, nem que sejam as primárias. É aí que está o poder. Pena não poderem votar. Quanto maior a sensação de impotência, maior o entusiasmo pelos EUA, em particular pelo seu Presidente em fim de mandato. A crise da dívida grega ameaça a Zona Euro? Obama disse que urgia resolvê-la e evitar a saída da Grécia. A possível saída do Reino Unido da União Europeia ameaça o futuro da União? Obama disse que os britânicos deviam permanecer, senão iriam para o fim da fila. O Acordo de Parceria Transatlântica está parado? Obama disse que era importante concluí-lo para reforçar as democracias liberais e enfrentar a China. Que fazer na crise dos refugiados que afecta a Europa? Obama disse que Angela Merkel estava do lado certo da história. Discursos do 25 de Abril? O grande discurso foi proferido por Obama em Hanôver.
6. O sentimento de excepcionalismo e de missão, enraizado na elite dirigente norte-americana, dá-lhes autoconfiança e também arrogância. O que é bom para os EUA é bom para a Europa, é bom para o mundo. Quanto aos europeus, não têm qualquer utopia mobilizadora, nem sentido de missão. Ninguém sabe qual a finalidade última da construção europeia, menos ainda está disposto a sacrificar-se por uma União Europeia tecnocrática, que não gera emoção identificadora. Obama dixit é a panaceia para curar a frustração e sentimento de impotência de que sofrem os europeus. Pura ilusão. Os EUA não são apenas a retórica sedutora e inconsequente, o soft power e o cosmopolitismo liberal de Obama ou Hillary Clinton, pouco interessado na Europa. Donald Trump é a outra componente, agressiva e nacionalista, da mesma “nação indispensável”. Em finais de 2016 veremos se o fascínio que encobre a impotência europeia não irá dar lugar a raiva.
Investigador