O tecto do mundo caiu e agora tenta levantar-se do chão
Há um ano, o Nepal foi abalado por um violento sismo que fez quase nove mil mortos e desalojou aldeias inteiras. A resposta do Governo foi lenta e polémica. Quem tem um abrigo tenta transformá-lo em casa, mas há milhões ainda a precisar de ajuda humanitária.
Sabina vai aquecendo uma panela num fogareiro a carvão enquanto o marido, Narbadhur, sentado na soleira da porta de casa, embala pacientemente o filho recém-nascido. Para dois jovens — ele de 28 anos, ela com 19 —, um filho é sempre uma mudança para a qual ninguém está totalmente preparado. Mas não foi esta a única grande transformação na vida do casal. Os dois estão à porta da sua nova casa, numa comunidade que não existia há um ano. Naya Basti, que em nepalês significa precisamente “nova povoação”, é um conjunto de abrigos temporários construídos de raiz para realojar mais de cem pessoas que perderam as casas nos dois sismos que abalaram o Nepal — a 25 de Abril e a 12 de Maio de 2015 — e que fizeram cerca de nove mil mortos.
Só agora, um ano depois, algumas das populações mais isoladas começam a receber as primeiras ajudas, na forma de abrigos temporários, instalações sanitárias ou novos sistemas de distribuição de água. Em poucos meses, o país teve também de lidar com profundas transformações políticas, com a aprovação de uma muito contestada Constituição e um confronto velado com a Índia. Em todas as mentes paira o medo de que um novo desastre possa voltar a ocorrer.
“É preciso vivê-lo para perceber quanta confiança perdemos durante esses dois meses em que fomos atingidos por dois grandes sismos”, diz ao PÚBLICO Akhilesh Upadhyay, o editor do jornal de língua inglesa Kathmandu Post. “A forma como olhámos para os nossos edifícios, a forma como olhámos para nós próprios como seres humanos... senti-me tão desamparado.”
Ao sismo de 25 de Abril, de 7,8 na escala de Richter, seguiram-se centenas de réplicas e um segundo grande abalo, de 7.3, a 12 de Maio. O Nepal é um dos países mais vulneráveis a catástrofes naturais. À actividade sísmica juntam-se as cheias no período das monções e os deslizamentos de terras, que matam cerca de mil pessoas todos os anos. Mas nem mesmo os nepaleses estavam cientes da capacidade destruidora de um sismo deste género — o pior dos últimos 80 anos.
Ao todo, morreram 8702 pessoas e 22303 ficaram feridas. Segundo o Governo nepalês, mais de 600 mil casas foram totalmente destruídas e 290 mil colapsaram parcialmente. Numa população total de 28 milhões, cerca de oito milhões ficaram de imediato em necessidade de assistência humanitária. Desde então, o país recebeu cerca de 3,6 mil milhões de euros em ajuda internacional, dos quais 140 milhões vieram da Comissão Europeia, para satisfazer as carências mais urgentes e para apoiar a reconstrução.
Porém, um ano depois, grande parte deste trabalho permanece por cumprir. Segundo a delegação da União Europeia no país, há ainda 3,5 milhões de pessoas a precisar de ajuda humanitária. E entre as famílias que já receberam algum tipo de ajuda, esta aparece sobretudo sob a forma de abrigos temporários, e não casas para uma vida.
A resposta do Governo tem sido lenta e marcada por polémicas. A Autoridade Nacional para a Reconstrução (ANR) só foi constituída em Janeiro, depois de vários atrasos na nomeação dos seus membros devido a rivalidades pessoais. E apenas este mês será iniciado o processo de reconstrução das casas das populações desalojadas, anunciou em Janeiro o chefe da ANR. Nos primeiros meses após o terramoto, o Governo foi encarado mais como um entrave do que como um impulsionador da reconstrução. “O Governo tem tentado de forma irracional controlar o trabalho das ONG e de outros grupos da sociedade civil”, denunciava em Março um editorial do Kathmandu Post.
A desconfiança do Governo nepalês em relação às organizações de ajuda humanitária deve-se a duas razões, diz o editor do mesmo jornal. “Por um lado, é uma forma de esconder a própria incompetência: os responsáveis governamentais não querem ter alguém ao lado a fazer um trabalho melhor. Por outro, muitas organizações não governamentais são vistas como preferindo trabalhar em áreas acessíveis e não em áreas mais difíceis e remotas”, explica Upadhyay.
Em Setembro, foi finalmente aprovada a Constituição do país, pondo fim a um processo de sete anos, iniciado na sequência da guerra civil contra grupos rebeldes maoístas que, ao longo de uma década, fez dez mil mortos. Mas o diploma foi recebido com desagrado pelas minorias do sul do Nepal, que se consideram sub-representadas no novo arranjo político. Os confrontos que se seguiram fizeram 45 mortos e o Nepal viu a sua fronteira com a Índia bloqueada durante quatro meses. O Governo indiano nunca reconheceu oficialmente o fecho da fronteira, mas vários analistas notam que Nova Deli terá usado os protestos da minoria Madhesi — com fortes ligações à Índia — como arma de pressão sobre o Nepal. Privado do seu maior parceiro comercial, o pequeno país sofreu com a carência de combustível. A chefe da delegação da União Europeia (UE) em Katmandu, Rinsje Teerink, estima que o bloqueio terá tido um impacto económico três vezes superior ao sismo. “Era algo de que este país não precisava”, observa.
A diplomata falava poucos dias depois de uma visita do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, a Bruxelas, marcada por uma comunicação conjunta UE-Índia em que a Constituição nepalesa foi criticada. “A Índia é um parceiro estratégico na região e ninguém, em Washington ou em Bruxelas, quer arriscar essas relações por causa do Nepal. É triste, mas é a realidade”, lamentou Teerink.
Aldeias de zinco
O som das buzinas no meio do trânsito caótico das ruas empoeiradas de Katmandu contrasta com a calma que invade as montanhas no distrito de Sindhupalchok, a nordeste da capital. Esta região foi a mais afectada pelos sismos do ano passado. Só aqui morreram 3438 pessoas e mais de 65 mil casas foram afectadas. Entre o verde das árvores e das plantações de batatas, saltam à vista os telhados de zinco cinzento e as lonas distribuídas pelas ONG internacionais. UNICEF, Christian Aid, Save the Children, Cruz Vermelha, Oxfam. Cada telhado corresponde a um dos abrigos temporários construídos pelas populações locais com o apoio das organizações. Têm um prazo de validade que varia entre os cinco e os sete anos. Não são casas.
Naya Basti, onde encontramos o jovem casal, é um desses aglomerados de abrigos de zinco. Os seus habitantes são provenientes de várias aldeias diferentes e estão divididos por 52 casas, espalhadas por vários sulcos de terra. Sabina e Narbadhur sabem que a casa e o local onde estão são provisórios. As regras são claras: os abrigos servem apenas enquanto as famílias não construírem uma nova casa, seguindo os regulamentos de segurança. A indemnização de 200 mil rúpias (cerca de 1800 euros) que o Governo prometeu entregar a cada família desalojada está condicionada pelo cumprimento de vários critérios, que visam assegurar que a nova casa segue os códigos de segurança. Cada fase da construção é monitorizada por delegações governamentais e só depois é desbloqueada a tranche respectiva da ajuda. Para uma população maioritariamente rural, pouco educada e privada de transportes e meios de comunicação, parece improvável que as apertadas condições impostas pelo Governo — que incluem, por exemplo, a abertura de uma conta bancária — possam ser asseguradas.
Apesar de saber tudo isto, o jovem casal tem esperança em manter-se onde está. “Não temos um terreno estável para construir uma nova casa, portanto estamos a tentar arranjar forma de nos mantermos aqui porque já fizemos algum investimento, cerca de duas ou três mil rúpias [16 ou 25 euros]. Queremos mesmo ficar cá”, diz o marido.
Um pouco mais abaixo, encontramos um jovem de cabelo comprido e bigode incipiente. Apresenta-se como o carpinteiro de Naya Basti e mostra um orgulho inabalável por ter construído muitos dos abrigos que nos rodeiam. Afinal, não é todos os dias que podemos ajudar a edificar uma aldeia. Posta Raj, de 27 anos, faz parte de um dos programas de formação operados pelas ONG no Nepal e financiados pela Direcção-Geral para a Ajuda Humanitária e Protecção Civil da Comissão Europeia (ECHO). O objectivo é fornecer vários níveis de aprendizagem a pessoas com e sem experiência anterior de carpintaria para os consciencializar a adoptar práticas de construção segura.
Em Badare, uma pequena aldeia de 60 habitantes no mesmo distrito, Rudra Bisunke, de 42 anos, faz parte de uma equipa de carpinteiros que já construiu meia centena de abrigos. Depois de dois meses de treino, Rudra está contente com as técnicas que aprendeu e dá o exemplo das vigas em forma de cruz, que suportam melhor as paredes e o telhado em caso de um abalo sísmico. Por cada casa que a sua equipa constrói, ganha entre 15 e 20 mil rúpias nepalesas (125 a 166 euros), o que lhe permite ter um rendimento acima da média na sua aldeia. “A terra não é muito fértil, e os rendimentos das pessoas não são muito elevados por causa disso. Comparando com a agricultura, eu tenho um bom salário”, admite.
Uma carreira na carpintaria pode ser vista como uma boa alternativa profissional para muitos jovens nepaleses, cujo destino mais óbvio é a emigração. Apesar de ser um fenómeno antigo, nos últimos anos, a emigração tem crescido de forma acelerada. Entre 2008 e 2014, foram emitidas pelo Governo mais de dois milhões de autorizações de trabalho no exterior, segundo dados de um relatório da Organização Internacional para as Migrações. Tradicionalmente, a Índia era o destino preferencial, mas na última década são a Malásia e as monarquias petrolíferas do golfo Pérsico, com destaque para a Arábia Saudita e Qatar, que mais atraem os nepaleses. As portas das casas testemunham o crescente fluxo migratório. Quando os filhos ou o homem da casa estão fora durante muito tempo, é costume fixarem-se fotografias deles nas portas para dar sorte. Estima-se que as remessas de dinheiro enviadas pelos emigrantes correspondam a quase 30% do PIB do Nepal.
Nabraj Tolange, 27 anos, regressou a Badare da Arábia Saudita há cerca de um ano, depois de dois a trabalhar na construção. “O trabalho era muito duro, era muito calor. Tinha de trabalhar dez horas por dia. Não tinha qualquer seguro, só um que eu próprio fiz”, conta, justificando o seu regresso. No local onde esteve, havia 80 compatriotas e quase todos acabaram por voltar ao Nepal. Gosta da vida na aldeia, mas está de olhos postos em nova saída. O destino agora é o Dubai, onde ouviu dizer que as condições de trabalho são menos más. “A minha casa foi totalmente destruída e para a reconstruir preciso de ganhar mais dinheiro. Quero construir uma casa e se sobrar algum quero ter um negócio de carpintaria próprio”, diz.
Os carpinteiros falam após uma reunião do comité da aldeia, que juntou cerca de 60 pessoas. Na manhã em que o PÚBLICO os encontrou, alguns membros da organização Christian Aid acabavam de fornecer formação básica de higiene pessoal — crucial para evitar a propagação de doenças entre a comunidade. Sabita Rokka, 35 anos, fala enquanto os seus dois filhos jogam à apanhada num pequeno pátio da aldeia, com vista para o que resta da “derrocada Jure” — que em 2014 matou mais de 150 pessoas. Na manhã em que a terra tremeu, Sabita, que é cristã, estava com eles na igreja. “Não sabia o que se passava, fiquei muito assustada e comecei a chorar. Pensei o que seria de nós a partir daí”, recorda. Está agora a viver num dos abrigos temporários, com o qual diz estar “muito contente”, apesar de lamentar não ter dinheiro para uma casa permanente. Continua à espera do subsídio prometido pelo Governo, do qual apenas recebeu uma pequena parte. “Não tenho a certeza de que o resto chegue. Se calhar o Governo não tem dinheiro suficiente”, diz-nos, enquanto lança um sorriso.
Ajuda que não chega
Há uma descrença generalizada quanto à ajuda prometida pelo Governo. E mesmo que as 200 mil rúpias cheguem na totalidade, a opinião é unânime de que é um valor muito aquém do necessário para a construção de uma casa segura. Akhilesh Upadhyay, do Kathmandu Post, acredita que os abrigos temporários irão acabar por se tornar casas permanentes. E alerta para outro tipo de situações. “Falei com pessoas que me diziam: ‘Eu sei que não construí uma casa segura, mas estou cansado de estar à espera há um ano inteiro, as monções estão a chegar e preciso de um tecto’.”
É o caso de Phatalal Shrestha, 36 anos, que decidiu reconstruir a sua própria casa em Tamche, uma aldeia de uma centena de pessoas a 2200 metros de altitude. Este criador de gado sabe que, desta forma, a sua família fica excluída da lista de beneficiários do Governo, mas isso não o preocupa. “Se alguém disser que consegue construir uma casa com 200 mil rúpias, é uma piada. Para conseguir acabar a casa, é preciso investir mais do dobro, do seu próprio dinheiro”, explica Phatalal.
Nas suas viagens pela região, diz que viu como se constroem casas resilientes e assegura que a sua é resistente. Participou recentemente num projecto para pequenos empresários do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) e, desde então, tem sido bastante crítico dos subsídios prometidos pelo Governo para a reconstrução de casas. “Se, em vez disso, o dinheiro fosse dado para as pessoas terem algum tipo de treino, ou se pudessem investir o dinheiro na agricultura ou num negócio, seria bastante melhor. Hoje estamos totalmente dependentes da Índia para tudo. Se quisermos leite, temos de importar da Índia.”
Em Tamche, como em muitas aldeias de Sindhupalchok, praticamente todos vivem da agricultura e da pecuária. São poucas as casas que não têm búfalos ou cabras e a povoação é rodeada por plantações de batatas, que aproveitam cada sulco de terra plana. Aqui, tudo é mais lento. As distâncias e as tarefas medem-se em horas. Há uma pequena escola primária — foi parcialmente destruída e as aulas passaram para um barracão —, mas o liceu mais próximo fica a três horas a pé. Não há qualquer ligação rodoviária, apenas um trilho pedestre em terra batida que foi alargado depois do sismo, para os jipes das ONG poderem passar.
Mas ao longo dos anos o isolamento foi sendo combatido. Quase todas as casas têm luz e televisão, apesar de alguns apagões recorrentes. Um dos grandes desenvolvimentos foi a construção, em 2013, de um sistema de distribuição de água canalizada, que veio evitar as caminhadas de hora e meia a pé pela montanha apenas para ir buscar água. Mas durante o último ano Tamche foi obrigada a recuar ao passado. O sismo danificou o equipamento e só em Março é que foi restabelecido, depois do apoio de uma ONG.
À espera do próximo
O abalo de 25 de Abril foi um choque, mas não foi propriamente uma surpresa. O Nepal está numa das regiões com maior actividade sísmica do planeta. Os Himalaias são o produto da subducção contínua (quando uma placa se afunda por baixo de outra) da placa tectónica Indiana sob a Euroasiática, que convergem a um ritmo anual de cinco centímetros.
Na verdade, a expectativa era de que o sismo tivesse sido ainda mais catastrófico. Pelo menos a fazer crer no plano de contingência elaborado pelo gabinete da UE em Katmandu, que previu um cenário em que morriam cem mil pessoas e em que instalações básicas como o aeroporto iriam colapsar. “Para nossa admiração, o aeroporto manteve-se e a maioria dos aeroportos e dos edifícios de betão ainda se mantinha operacional”, diz a chefe da delegação.
Uma das poucas instituições que estavam precavidas era o Hospital Universitário Tribuvhan. Os edifícios, construídos nos anos de 1970 com o apoio do Governo japonês, têm por si só uma estrutura mais segura perante abalos sísmicos. Mas há pequenas coisas que foram sendo feitas nos últimos anos que se vieram a revelar cruciais — um reforço na fixação de uma ventoinha, por exemplo, pode evitar mortes.
Naquela manhã de Abril, recorda o professor Pradeep Vaidya, “sabíamos que o hospital estava seguro e, portanto, ninguém entrou em pânico”. Depois do abalo, começaram a chegar ao hospital os primeiros feridos. A imprensa internacional tentava conseguir imagens “desastrosas”, “mas não conseguiu”, garante o médico-cirurgião. O hospital universitário tem uma capacidade de 568 camas, mas só naquele sábado atendeu duas mil pessoas — Vaidya assegura que as instalações poderiam expandir em caso de emergência até cinco mil. “Estamos ainda à espera do próximo grande desastre.”
Poucos duvidam de que uma nova catástrofe está iminente. Cada réplica — que ainda hoje continuam a ser sentidas — é temida como se fosse esse grande abalo que se anuncia.
“O fatalismo está muito entranhado na psique dos nepaleses”, diz o editor do Kathmandu Post. “Muitas pessoas de outras gerações passaram por desastres e não puderam fazer nada quanto a isso.” Mas Akhilesh Upadhyay não esquece alguns pequenos desenvolvimentos positivos, sobretudo no que toca à prevenção. “Algumas pessoas têm trocado mais informação, nas cidades há quem tenha apps com alertas de sismos”, explica.
Porém, um ano depois do terramoto que marcou uma nova geração de nepaleses, há uma pergunta que o jornalista repete durante a conversa, como se fosse a dúvida que atravessa toda a sociedade. “Estaremos hoje mais bem preparados do que há um ano? Não sei. Honestamente, não foi um grande ano.”
O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia