O reino da Dinamarca está podre. O resto da Europa também
Uma Europa indiferente ao sofrimento não é o lugar da cultura mas o lugar da barbárie.
No fundo, sabemos há muito que é assim, mas tentámos - nós, os europeístas do coração e da cabeça, os que sempre nos sentimos herdeiros e cidadãos de uma Europa plural e sem fronteiras, os que sonhámos uma Europa humanista de justiça, de cultura e progresso - encontrar razões para acreditar numa alternativa, numa reviravolta, numa crise de consciência, num renascimento. Mas a crise das dívidas soberanas primeiro e a crise dos refugiados depois tornou tudo mais claro, mais brutal, mais simples, e apagou qualquer réstea que pudesse haver de esperança.
A União Europeia (podia dizer, como digo muitas vezes, “esta” União Europeia, mas não vale a pena continuar a alimentar a ilusão de que “esta” União Europeia se pode transformar em “outra” União Europeia, pela simples razão de que não existe nenhuma liderança política que assuma claramente e com coragem que defende uma agenda radicalmente diferente para a UE) não representa a Europa dos valores e dos direitos humanos que sonhámos, nem a Europa do bem-estar para todos que ambicionámos. Nem para nós, portugueses, nem para os gregos, nem para os milhões de desgraçados que a ela tentam aceder para fugir da guerra, das violações, da tortura, da fome, da miséria. E, se a União Europeia não serve nem as necessidades do espírito nem as do corpo, se em vez de se ser uma referência de humanidade e um contributo para a paz volta a ser, como foi durante o século XX, o exemplo da desumanidade, o facho da hipocrisia e da desigualdade, se volta a fechar os olhos aos crimes que se cometem à frente dos seus olhos, não merece sobreviver, não deve sobreviver.
Independentemente do número de bibliotecas, de universidades e de orquestras que possa possuir, uma Europa indiferente ao sofrimento não é o lugar da cultura mas o lugar da barbárie. Uma Europa egoísta e classista, uma Europa de castas e de privilégios não é a Europa das Luzes nem da democracia. É uma Europa de mercadores e de mercenários que deve ser recusada e combatida.
Uma União Europeia que, perante um gigantesco problema humanitário, causado por guerras que ela própria patrocinou por subserviência cega às forças mais reaccionárias dos Estados Unidos, sem saber bem no que se estava a meter ou apenas para que as suas empresas de armamento pudessem aumentar a facturação, decide fechar as portas da cidade e aumentar o volume da música para não ouvir os gritos do outro lado das muralhas é uma Europa que nos avilta.
Como classificar a decisão da Dinamarca de confiscar bens aos refugiados que perderam tudo menos a vida? Que palavras se podem usar para classificar esta infâmia? Como o permitiria a UE se tivesse uma réstia de dignidade? Como classificar a prática de uma empresa de segurança britânica de pintar de vermelho as portas das casas onde vivem refugiados? Ou as múltiplas medidas e declarações xenófobas de políticos europeus que não são apenas oriundos da extrema-direita?
A União Europeia, como sempre faz, começou por enterrar a cabeça na areia para ver se o problema desaparecia por magia. E, quando o problema se intensificou, não só foi absolutamente incapaz de definir uma estratégia continental para o resolver - que não poderia passar apenas pelo acolhimento dos que fogem mas deveria incluir também uma estratégia internacional para solucionar o problema na sua origem - como decidiu responsabilizar os países situados na fronteira europeia. A Grécia foi acusada de ser a causa do problema, de não controlar as suas fronteiras, de deixar entrar demasiados refugiados, de não ser a guardiã de Schengen que os tratados exigem.
A posição de Bruxelas em relação à Grécia é simples e clara: a Grécia deve evitar a entrada de mais refugiados usando todos os meios possíveis. Todos? Disparar sobre os refugiados, bombardear os seus barcos, afogar todas as crianças? Bruxelas não o diz com esta clareza mas os eufemismos da burocracia não deixam margem para dúvidas. Bruxelas quer uma solução final para o problema dos refugiados.
E nós, cidadãos desta União Europeia? O que dizemos? Vamos continuar a tolerar o totalitarismo e a desumanidade da União Europeia?
Foi intolerável olhar o corpo de Alan Kurdi, a criança curda afogada no ano passado numa praia da Turquia. A União Europeia também chorou, mas todos os dias é cumplice da morte de dezenas de crianças, mães e pais que procuram uma terra sem guerra. A União Europeia nem sequer tenta ou finge tentar encontrar uma solução. Espera apenas que nos habituemos, que o medo dos refugiados cresça, que acabemos por pedir que fechem todas as portas e afoguem todas as crianças. Acabaremos a aceitar isso? A pedir isso? Acabaremos como os habitantes de Weimar, essa capital da cultura e da civilização, que preferia ignorar o que se passava em Buchenwald? Estamos longe disso? Estamos cada vez mais perto. Hoje, vão morrer afogadas, sufocadas, soterradas, mortas a tiro, dezenas de crianças iguais a Alan Kurdi, que a União Europeia teria podido salvar.