O princípio da incerteza
Os populistas Putin, Erdogan, Maduro, Le Pen deixaram de ser uma colecção de personagens bizarros.
O Presidente-eleito dos Estados Unidos é Donald Trump. Mais uma vez, as sondagens e as previsões dos analistas estavam erradas : nem umas, nem os outros querem reconhecer que os padrões tradicionais de racionalidade nas escolhas eleitorais foram alterados pela viragem populista.
De certa maneira, a vaga de democratização, que marcou o fim da Guerra Fria, está a dar lugar a uma contra-vaga reaccionária, onde a clivagem entre as democracias pluralistas e as forças autoritárias é substituida por uma polarização entre as correntes populistas e o consenso internacionalista liberal. Depois da eleição presidencial norte-americana, os populistas – Putin, Erdogan, Maduro, Le Pen – deixaram de ser uma colecção de personagens bizarros e tornaram-se um pólo da politica internacional.
O triunfo de Trump é, nas suas palavras, um “Brexit plus”. As motivações dos eleitores norte-americanos e britânicos têm a mesma origem no declínio das classes médias e na resistência às mudanças que transformaram a sociedade industrial e puseram à prova a homogeneidade das comunidades nacionais: os novos déclassés – os deplorables, na frase fatal de Hillary Clinton – partilham com os seus antecessores a nostalgia de um passado perdido e a mesma tendência para escolher os demagogos.
Mais importante, as duas votações confirmam que as potências anglo-saxónicas, que há cem anos inventaram a ordem liberal multilateral, desistiram ambas de ser potências ordenadoras: à saída anunciada da Grã-Bretanha da União Europeia, soma-se a nova distância dos Estados Unidos perante a NATO, que Trump declarou “obsoleta”. Os dois pilares da comunidade transatlântica estão postos em causa. Nem a União Europeia, nem a NATO vão desaparecer amanhã, mas o seu destino fica comprometido quando construtores da ordem liberal decidiram ser os desconstrutores da comunidade ocidental.
Os cépticos dizem que a eleição presidencial não pode fazer tanta diferença. Com efeito, o Presidente dos Estados Unidos não é um tirano, mas tem um poder decisivo nas politicas externas, de defesa e de segurança. Nesse sentido, é imprudente não levar a sério as posições de Trump que visam alterar as prioridades internacionais dos Estados Unidos.
Desde logo, o Presidente-eleito defende que a globalização é um “mau negócio” para os Estados Unidos e que os quadros de regulação multilateral das relações económicas internacionais beneficiam excessivamente os seus concorrentes. Nesse contexto, quer pôr em causa os acordos da NAFTA com o Canadá e o México e a Parceria Trans-Pacifico e levantar barreiras alfandegárias contra a China. A lógica proteccionista de Trump pode abrir caminho para uma tendência de regionalização como alternativa à globalização: a China, ou mesmo a União Europeia, podem reforçar essa tendência que inverte o padrão de integração à escala internacional.
Por outro lado, Trump quer transformar o retraimento estratégico do Presidente Barack Obama numa deriva isolacionista e rejeita tanto as alianças tradicionais em que assenta a estratégia internacional norte-americana, como as intervenções externas, as quais, na sua opinião, servem apenas para criar novos inimigos. Os Estados Unidos devem substituir o primado da politica externa pelo primado da política interna e libertar-se das suas responsabilidades como o principal potência internacional.
Por último, a crítica das alianças tradicionais tem como consequência directa pôr em causa a credibilidade das garantias de defesa norte-americanas: o próprio Trump insiste em sublinhar a sua distância em relação aos aliados quando defende que o Japão e a Coreia do Sul devem passar a ser potências nucleares e assegurar autonomamente a sua própria segurança. (Trump não refere o caso da Alemanha, decerto para não incomodar o Presidente Putin). Mais uma vez, o Presidente-eleito está preparado para pôr em causa um dos princípios da política externa norte-americana que visa limitar os perigos da proliferação das armas nucleares.
Os simplificadores, invocando o santo nome do realismo, vão explicar que nada, ou quase nada, vai mudar: os interesses nacionais dos Estados são permanentes e prevalecem contra a espuma democrática. Porém, correm o risco de desconhecer a mudança no espírito do tempo: a Guerra Fria terminou sob o signo da tese hegeliana sobre o fim da história, mas o pós-Guerra Fria está a chegar ao fim sob o signo de uma segunda tese hegeliana, que nos ensina que a lição da história é que ninguém aprende as lições da história.
Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)