O Deus do padre Halík
Halík busca consequências da sua tese para o enevoado futuro da Europa.
Esteve recentemente entre nós para lançar o seu novo livro o padre checo Tomáš Halík, professor na Universidade Charles, em Praga, que se tem revelado um dos teólogos contemporâneos mais originais. Ele fala para o mundo contemporâneo, dirigindo-se tanto a crentes como a não-crentes. Nasceu numa família não-crente, tendo-se convertido ao catolicismo com 18 anos por influência de leituras de G. K. Chesterton e Graham Greene (os dois também convertidos ao catolicismo). Foi ordenado padre clandestinamente, tendo pertencido à “Igreja subterrânea” do Leste e sido conselheiro de Václav Havel. Hoje é autor de livros de larga circulação internacional como Paciência com Deus, A Noite do Confessor, O meu Deus é um Deus ferido e, acabado de sair entre nós, Quero que Tu sejas! (todos eles nas Paulinas).
Tornei-me admirador do padre Halík através dos seus livros e foi com pena que não o pude ouvir ao vivo. Acho deliciosa, em particular, uma história n’A Noite do Confessor (2014) sobre ciência e religião. Um amigo do autor, que reunia três atributos – físico, católico e boa pessoa –, costumava ser convidado para retiros do clero para palestrar sobre os avanços da física contemporânea. E ele lá transmitia as últimas sobre o Universo: o Big Bang, a unificação das forças, o bosão de Higgs (impropriamente chamada “partícula de Deus”), etc. No final de um dessas encontros, os padres pediram-lhe que lhes desse, como “cientista crente”, uma prova científica, ainda que minúscula, da existência de Deus, para eles poderem usar nas suas homilias. O físico ficou muito consternado por não conseguir corresponder ao pedido. Quem estava equivocado, diz Halík, eram os seus colegas padres: eles nunca poderiam, numa conferência de um físico, mesmo católico e boa pessoa, aprender algo que pudesse melhorar a sua crença em Deus ou, por extensão, dos seus fiéis. Reitera esta ideia de um modo muito claro: “O pedido feito pelos sacerdotes de uma prova minúscula não indica apenas uma incompetência possivelmente desculpável, mas também, de forma mais deprimente, uma incompetência teológica bastante menos desculpável e, em particular, uma fé fraca e doentia.” Os padres eram afinal homens de pouca fé... De facto, a teoria do Big Bang não constitui uma prova científica da existência de Deus. A criação da ciência e a criação do Génesis são bastante diferentes. Quem pensa que são aparentadas está eivado do erro teológico dos inquisidores que condenaram Galileu. A existência de Deus não é uma questão do domínio da ciência. Halík cita Santo Agostinho: “Se compreendeis não é Deus”. E comenta: “Se consegues entender (e até ‘provar’!), podes ter a certeza absoluta que não é Deus”. Deus é, para o teólogo checo, um mistério, não uma resposta, mas sim uma pergunta difícil, que é como quem diz uma procura permanente.
Em Quero que Tu sejas!, de subtítulo Podemos acreditar no Deus do Amor?, Halík procura responder a um desafio que um jovem lhe colocou, ao perguntar-lhe quando iria escrever um livro sobre o amor, já que tinha escrito sobre a fé e a esperança. A resposta na altura foi que “não estava preparado para isso”. O padre Tolentino de Mendonça, num prefácio que abre o apetite para o livro, sublinha esta confissão de ignorância de um eminente teólogo a respeito de uma experiência que todos partilhamos (“do amor”, sublinha Tolentino ironicamente, “e não do bosão de Higgs”). O que é o amor? Não é fácil de definir. Poder-se-á dizer, parafraseando o filósofo de Hipona: “Se compreendeis não é amor”. Isso mesmo: Halík liga os conceitos de Deus e de amor, partindo da passagem de S. Marcos onde um escriba pergunta a Jesus qual é o maior mandamento. A resposta é bem conhecida: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” O título do novo livro de Halík vem de uma frase atribuída a Santo Agostinho: “Amo-Te: quero que Tu sejas!”. Segundo o teólogo checo pode aplicar-se esta frase tanto ao amor a Deus como ao amor a um ser humano. E as duas formas de amor não passariam de uma só, tão inextrincáveis elas são. Não é física, mas há aqui uma unificação.
O autor de Quero que Tu sejas! busca consequências da sua tese para o enevoado futuro da Europa. Vê a necessidade, na construção do futuro, de um diálogo entre o humanismo cristão e o humanismo secular. É mais do que uma coincidência que o filósofo Luc Ferry, ex-ministro da Educação francês e representante do humanismo secular, tenha vindo a defender a centralidade do amor no que ele chama “espiritualidade laica”. Escreveu em A Revolução do Amor (Temas e Debates, 2011): “É o amor que dá todo o sentido às nossas existências. É ele que nos obriga, nem que seja pelos nossos filhos, a não ceder ao pessimismo, a nos interessarmos, apesar de tudo, pelo futuro...”
Professor universitário (tcarlos@uc.pt)