O atavismo de Cameron e a audácia de Renzi

Renzi ajuda-nos a perspectivar o futuro enquanto Cameron parece cada vez mais prisioneiro no labirinto de um presente sem horizonte.

1. A singularidade da história e da cultura política britânicas reflecte-se na natureza da relação estabelecida entre o Reino Unido e o projecto europeu. Em 1957, este país optou livremente pela não participação no núcleo fundador do Mercado Comum. Quando, alguns anos mais tarde, em 1963, o Reino Unido mudou de posição e solicitou a adesão à Comunidade Económica Europeia, deparou-se com a hostilidade do general De Gaulle, o que voltou a acontecer em Novembro de 1967, com a invocação, mais ou menos explícita, do risco de descaracterização parcial do projecto europeu em benefício de uma exagerada aproximação ao modelo anglo-saxónico partilhado pelos norte-americanos. A adesão britânica só foi possível com um novo Presidente francês, George Pompidou. Em 1975, um governo trabalhista promoveu a realização de um referendo a fim de aquilatar a vontade dos cidadãos em relação à participação na Comunidade Europeia; dois terços dos eleitores manifestaram-se favoráveis a essa ideia. Antevia-se uma era marcada por um relacionamento mais pacífico e pela recomposição de um projecto até então muito assente no sucesso do diálogo franco-alemão.

Se é verdade que a presença britânica concorreu para o fortalecimento da Comunidade Europeia em termos políticos, ampliando substancialmente a sua capacidade de influência externa, não é menos certo que se foram sucedendo ao longo do tempo múltiplos episódios perturbadores da relação com os demais parceiros. Bem nos recordamos da célebre frase de Margaret Thatcher  ?  “I want my money back!”  ?  e do sucesso a esse respeito alcançado pela então primeira-ministra na Cimeira de Fontainebleau. Depois disso assistimos à recusa de participação na moeda única, no acordo de Schengen e em tudo o que significasse a consagração de direitos sociais ao nível europeu. Este padrão de comportamento é plenamente compreensível tendo em consideração a visão europeia que lhe está subjacente – a de uma mera zona de livre comércio. Nunca lhes agradou, por isso, qualquer modificação que implicasse um aumento de partilha de soberania e foram dos mais entusiastas na promoção do alargamento aos países do Norte, do Centro e do Leste da Europa.

Apesar da prevalência desta perspectiva, convivem quanto à questão europeia diversas posições no cenário político britânico, como é próprio de uma sociedade pluralista. Nos últimos anos assistimos ao crescimento eleitoral de propostas mais extremistas que advogam a saída da Grã-Bretanha da União Europeia. Essa linha de orientação adquiriu tal destaque e penetrou de tal forma em parte significativa do eleitorado que David Cameron se sentiu impelido a propor a realização de um referendo. O risco do "Brexit" entrou na ordem do dia e passou a marcar de forma impressiva o debate político europeu. No intuito de ajudar Cameron e favorecer desta forma uma vitória do "sim", os dirigentes dos demais países acordaram um conjunto de cedências após mais uma longa maratona negocial. O resultado final parece razoável mas há duas considerações que não podem deixar de ser feitas. É preciso salientar que, tendo os britânicos total legitimidade para decidir acerca do seu futuro no espaço europeu, não pode o destino da União Europeia ficar dependente dessa opção estritamente nacional. É necessário impedir o alastramento da ideia de que as relações intra-europeias se assemelham cada vez mais a uma partida de poker, na qual o recurso à dramatização chantagista acaba por se revelar vantajoso.

Um pressuposto indispensável ao bom funcionamento da União Europeia é o do acatamento universal do conjunto de regras comuns consensualmente determinado. Basta perpassar a suspeita de que os diferentes países não beneficiam do mesmo tratamento para se debilitar irreversivelmente um princípio igualitário que tem de ser, por natureza, intangível. As consequências desse tipo de falha comportamental são devastadoras, quer no plano da adesão da opinião pública, quer no domínio das atitudes políticas adoptadas pelos diferentes actores em presença. Como é óbvio, não há caldo de cultura mais favorável ao surgimento de extremismos antieuropeístas. Estes têm vindo, aliás, a progredir com algum beneplácito de quem tinha a obrigação de os combater. Quando, por oportunismo momentâneo, defensores inquestionáveis do projecto europeu acedem a participar na farsa da transmutação das instâncias comunitárias em inimigo externo, estão a contribuir indecorosamente para a erosão dos propósitos que reclamam prosseguir. Uma coisa é a adopção de uma atitude seriamente crítica face ao desenrolar dos acontecimentos no plano europeu, outra é a rendição mais ou menos consciente ao discurso e à linguagem de quem nunca deixou de abominar o espírito subjacente à chamada construção europeia. Infelizmente, sucedem-se por essa Europa fora actos e gestos deste jaez.

2. Ao mesmo tempo que em Londres se discute a saída, em Roma surgem sinais de sentido radicalmente diferente. O governo de Matteo Renzi publicitou esta semana um documento assaz interessante sobre o tema europeu. Renzi, que se tem vindo a impor pela capacidade de concretizar reformas num país fortemente condicionado por uma atávica cultura corporativista, parece dispor-se agora a enfrentar uma certa ortodoxia europeia. Fá-lo com ousadia, advogando o caminho arriscado do reforço do federalismo e preconizando uma política orçamental menos dogmaticamente fiel aos critérios oriundos do Tratado de Maastricht. Nesta conjugação de intenções reside o principal mérito de um texto que pode e deve constituir um ponto de partida para uma discussão a fazer nas instâncias europeias. Renzi tem-se revelado um governante heterodoxo, pouco preocupado em obedecer aos cânones doutrinários mais favorecidos no tempo presente. Entre outras coisas, levou a cabo uma reforma muito polémica da legislação laboral e modificou uma regulamentação económica até então excessivamente avessa à liberdade de iniciativa individual. Esta capacidade reformista confere-lhe especial autoridade na reivindicação de uma reorientação das prioridades europeias no sentido da valorização do crescimento económico e da viabilização da intervenção estatal em ordem à promoção da justiça social. É certo que beneficia de uma conjuntura política favorável, dado o estado de astenia que caracteriza a direita e a relativa irrelevância da extrema-esquerda. Só que para este cenário também contribuiu a forma como desde o primeiro instante da sua governação se empenhou na concretização de um verdadeiro projecto de modernização do seu país, não perdendo tempo com lamúrias e fanfarronices inconsequentes ou de cariz propagandístico. Renzi ajuda-nos a perspectivar o futuro enquanto Cameron parece cada vez mais prisioneiro no labirinto de um presente sem horizonte.

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