É mesmo a isto que chamamos democracia?
O golpe foi “uma oferenda de Deus” diz Erdogan. Haverá agora mais poderes presidenciais e menos poderes para as elites laicas, incluindo o sistema judicial.
Um golpe de estado militar na Turquia. Um golpe falhado e esmagado, graças à oposição popular e a um iPhone com FaceTime. Mas, durante umas horas, a expectativa em todo o mundo, com prudentes declarações dos poderes políticos mundiais, que exprimem a sua “preocupação” e a absoluta necessidade de manter a “estabilidade” política na Turquia e que se abstêm de declarações de apoio a qualquer dos lados. Durante umas horas, o medo de que este golpe se possa transformar no início da explosão daquele barril de pólvora que faz de rolha entre a Europa e a Ásia, que tem a cabeça na Europa mas que tem fronteiras com a Síria, o Iraque e o Irão, ali ao pé do território ocupado pelo Daesh, que tem uma guerra civil e uma guerra extra-fronteiras em curso e que tem um dos maiores exércitos do mundo, que quer entrar na União Europeia e está na NATO mas cujo estado teoricamente laico está em vias de islamização. Durante umas horas, a expectativa e a dúvida perante este golpe levado a cabo por militares, um sector tradicionalmente autoritário e habituado durante séculos a exercer o seu poder, por vezes em ditadura absoluta, mas que há um século é uma força opositora do islamismo. Durante umas horas, a ténue esperança de que este golpe de estado (cujos autores anunciam que querem “restaurar a ordem constitucional, os direitos humanos, as liberdades e o primado da lei”) possa restabelecer a abalada democracia e o estado de direito laico, de forma semelhante ao que aconteceu no 25 de Abril em Portugal.
Mas estas dúvidas duram apenas umas horas, porque o regime depressa abafa a rebelião, captura os revoltosos e passa à ofensiva, prendendo 6.000 militares e 1500 civis, suspendendo ou detendo 2750 juízes e procuradores. O golpe foi “uma oferenda de Deus” diz o próprio presidente Recep Tayyip Erdogan, que aponta as alterações que quer pôr em prática na sua “nova Turquia”: mais poderes presidenciais e menos poderes para as elites laicas, incluindo o sistema judicial.
Após o desfecho, os poderes instalados congratulam-se pelo “regresso à normalidade constitucional e democrática” e recordam que a Turquia é uma democracia constitucional e que nem a UE nem os EUA nem ninguém pode, em nome da estabilidade, do direito e da democracia, aceitar uma mudança de regime pela força. O argumento tem força.
Mas será isto uma democracia? Este país que expulsa os jornalistas estrangeiros independentes e lança na cadeia os turcos que se atrevem a escrever sobre a corrupção do governo? Que pede anos de cadeia por “insulto ao presidente” para os que criticam a sua política? Que reprime pela força protestos e prende peticionários? Que quer restaurar a pena de morte para condenar os autores deste golpe? Este país que é o número 151 (entre 180) do ranking da liberdade de imprensa?
Será que a existência de partidos e de eleições (por limitada que seja a liberdade de acção de certos partidos e grupos sociais e por duvidoso que seja o funcionamento das eleições) chegam para classificar um país como uma democracia e para tornar todas as suas acções aceitáveis?
As perguntas não têm sentido apenas para os países muçulmanos ou para os povos de tez morena.
Vivemos numa democracia quando toda a nossa vida pública é condicionada por tratados europeus que não aprovámos em eleições e cujo teor e consequências não discutimos? Vivemos sob o primado da lei quando pertencemos a uma organização onde as regras (e as sanções) não são iguais para todos?
Vivemos numa democracia e num estado de direito quando podemos ser envolvidos numa guerra de consequência devastadoras através de mentiras e manipulações, como agora se prova (pela enésima vez) no relatório Chilcot? Podemos dizer que vivemos numa democracia quando um governo, eleito sem mandato para tal e sem que nada o justifique a não ser a ganância de determinados interesses particulares, nos envolve numa guerra? Podemos dizer que vivemos numa democracia quando, mesmo depois de apurados os factos, é impossível responsabilizar os políticos que usurparam direitos que não tinham, invocando factos que não existiam, causando milhões de vítimas entre mortos, feridos e refugiados?
A democracia é a capacidade de eleger parlamentos, governos e presidentes e a capacidade de os demitir e substituir, mas é algo ainda mais importante: a capacidade de escolher as políticas, de escolher não aqueles a quem vamos obedecer, mas a forma como vamos viver. Não apenas os governantes, mas a vida pública. É por isso que elegemos partidos na base de programas eleitorais. Uma democracia que elege ditadores não é uma democracia. As formalidades são essenciais à democracia mas precisamos de respeitar todas as formalidades: os direitos humanos, o primado da lei, as regras institucionais, os compromissos assumidos, a transparência.
Quando chamamos “democracia” a algo como o regime que vigora na Turquia, na Rússia, na Venezuela ou em Angola - ou na UE - estamos a aviltar o conceito de democracia e a justificar todos os ataques que os inimigos da democracia lhe queiram lançar.