A “conspiração de estúpidos” que ameaça a União Europeia
O multiculturalismo pode ser tão ilusório como a globalização. Na prática, surgem mais vezes sociedades fragmentadas, por razões de bem-estar material e diferenças culturais profundas.
1. A União Europeia pode ter perdido o Reino Unido no referendo de 23/06. Uma “conspiração de estúpidos” votou pelo “Brexit”. Para além de Londres, só a Escócia e a Irlanda do Norte foram esclarecidas, racionais e europeístas. Londres perdeu a Inglaterra. As massas inglesas não seguiram as recomendações da elite política, económica e cultural que as governa. Ignoraram os avisos sobre a anarquia política, económica e financeira que se seguiria. Foram emotivas e irracionais. Londres é a cidade mais rica da União Europeia. Um absurdo por em causa essa riqueza e bem-estar. O problema é que Londres já não é a sua cidade. Nem a riqueza, nem a cultura são as suas. Nas estatísticas do Eurostat brilha no topo, com um valor cinco vezes superior à média europeia, muito acima do resto de Inglaterra. É notável. Mas é uma riqueza ilusória. Apenas de alguns. Ligada aos meios financeiros, essencialmente, mas também a inúmeros serviços desligados da economia real. Parte dos seus detentores nem sequer são britânicos, nem tão pouco europeus. Para muitos ingleses, Londres tornou-se estranha. Os símbolos da sua identidade estão lá, podem encontrar-se nos monumentos e museus, nas ruas e praças. Mas não é uma identidade vivida pela maioria dos que a habitam. A língua, cada vez menos, é o seu inglês. Não é o inglês das classes cultas e elitista, que menospreza o inglês popular, a causa do seu incómodo. Essa clivagem é-lhes familiar. Foi retratada no memorável filme My Fair Lady (1964), inspirado numa peça (Pigmalião, 1913) de George Bernard Shaw. É o desconforto face a um inglês internacional, com múltiplas pronúncias, sotaques estranhos, eventualmente incompreensível. Os ingleses abandonam Londres. Não a pretendem replicar nas cidades de província. Aceitam mal que a antiga capital imperial — hoje uma imagem invertida do império colonial —, lhes diga como deve ser o seu futuro. É um misto de nostalgia do passado e ressentimento face à insegurança e iniquidade do presente.
2. O contraste não podia ser mais flagrante. Boston, no Lincolnshire, teve a votação mais elevada de todo o Reino Unido a favor da saída da União Europeia. Mais de 3/4 da população votou nesse sentido. Tower Hamlets, um dos muitos círculos eleitorais da grande Londres, votou largamente, em mais de 2/3, a favor da permanência. À primeira vista, um contraste bastante previsível. Os londrinos são cosmopolitas, abertos e mais cultos. O resto da Inglaterra mais fechado, nacionalista, e menos instruído. Mas olhemos melhor para os detalhes. Boston é uma pequena cidade inglesa, típica de província, na zona das Midlands. Tem a mais elevada percentagem de imigrantes do Leste europeu a viver em Inglaterra e Gales (10,6% no censo de 2011). Tower Hamlets é um bairro da grande e multicultural Londres. Tem um particularismo a reter: está aí maior concentração espacial de população muçulmana do Reino Unido (38 %), quando a média da Inglaterra e de Gales é de 5%. Londres tem actualmente um Presidente da Câmara muçulmano, originário uma família pobre de emigrantes paquistaneses: o jurista Sadiq Khan. Enquanto membro do Partido Trabalhista britânico, fez campanha a favor da permanência na União Europeia. Boris Johnson, o antigo Presidente da Câmara de Londres, membro do Partido Conservador e originário da classe alta britânica, liderou a campanha pela saída. Uma leitura tentadora, mas simplista, destes resultados eleitorais, é a de que os ingleses são eurocépticos e os muçulmanos britânicos europeístas. Churchill — o maior político britânico do século XX, e um dos impulsionadores da unificação europeia no pós II-Guerra Mundial —, nunca imaginaria que o ideal europeísta pudesse ter mais seguidores entre os muçulmanos britânicos de Tower Hamlets do que nos ingleses de Boston. Mas, se o voto dos primeiros fosse sinal de adesão aos valores europeus, os problemas de integração estariam resolvidos há muito tempo. A realidade é mais complexa e multifacetada. O problema não é só britânico, apesar das especificidades que aí adquire.
3. A globalização está a transformar profundamente as sociedades europeias. Os seus ganhadores tendem a concentrar-se nas grandes metrópoles, nos serviços, nas profissões mais qualificadas e especializadas, nas faixas da população activa com esse perfil abaixo dos cinquenta anos. Paralelamente, amplifica as assimetrias de rendimento, de estratificação social e geracionais. Opõe a geração millennial às gerações que construíram a sua identidade numa era pré-globalização e pré-integração europeia. A identificação com os valores nacionais e o Estado social é muito maior nestas últimas. A globalização aumentou também, drasticamente, a mobilidade e as migrações. Trouxe fluxos humanos com uma magnitude e intensidade sem precedentes, de pessoas que se deslocam por razões profissionais, de estudo, à procura de melhores condições de vida, ou porque fogem de conflitos e perseguições. Na União Europeia, são os países mais ricos — e, dentro destes, as grandes cidades —, que atraem a sua larga maioria. Uma das mais importantes consequências é a crescente heterogeneidade da população, com origem dentro e fora da União Europeia. É acentuada pela clivagem entre os mais novos, frequentemente oriundos de fluxos migratórios, e os mais velhos, na grande maioria população autóctone. Mas este aumento da heterogeneidade não é uniforme entre os países, nem mesmo dentro deles. Tem uma grande intensidade nos países mais ricos. Ocorre sobretudo a Ocidente e na Escandinávia. É relativamente residual na Europa Central e de Leste. Para além disso, é um fenómeno essencialmente das grandes cidades dos países ricos, que se desligaram do resto do país nessas transformações. Este mantém-se mais ou menos homogéneo culturalmente e não retira ganhos económicos significativos da globalização, sofrendo eventualmente perdas de relevo. Esta clivagem económica e cultural, mas também geracional e espacial, está a ter consequências políticas largamente subestimadas.
4. A oposição entre o modo de vida e a visão do mundo da grande urbe e a da província é um tema clássico e bem conhecido de inúmeras gerações. Na literatura portuguesa dos finais século XIX, Eça de Queiroz retratou-a em A Cidade e as Serras. Apesar de conhecer bem a Inglaterra e Londres (ver Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres), Paris era o símbolo maior de uma metrópole cosmopolita e do refinamento civilizacional. Mas na época em que Eça de Queirós escreveu não existia uma globalização tal como hoje a conhecemos. A Europa expandia-se continuamente para o exterior. Não existiam fluxos de migrações em massa dirigidos às suas grandes cidades, com origem noutros países europeus ou fora deles. A racionalidade económica de tipo (neo)liberal — que invadiu a generalidade da vida humana e pretende que as disparidades de riqueza e bem-estar são meras questões de competitividade —, era estranha aos europeus da época. Hoje, as fracturas criadas por esta visão ideológica do mundo estão cada vez mais abertas. No pior cenário, levam a uma dupla fragmentação: um restrito número de ganhadores da globalização, com cada vez mais riqueza acumulada, face a uma massa de perdedores e / ou excluídos; e a uma fragmentação da população em comunidades étnicas, religiosas ou culturais, que não se identificam umas com as outras. Idealmente, a globalização e o multiculturalismo dariam lugar a sociedades cosmopolitas, com aumentos de bem-estar, trocas culturais recíprocas e tolerância mútua, solidificadas pelo sentimento de pertença a uma mesma comunidade.
5. O multiculturalismo pode ser tão ilusório como a globalização. Na prática, surgem mais vezes sociedades fragmentadas, por razões de bem-estar material e diferenças culturais profundas. Basta olhar atentamente para as grandes urbes da Europa rica. Em muitos casos, o que existe, são monoculturas acantonadas espacialmente, com interacções mínimas entre si e com o grupo cultural maioritário, sejam quais forem as razões pelas quais isso ocorre. O cosmopolitismo é um privilégio das elites, da realidade paralela e de bem-estar material em que vivem. Têm a sua visão do mundo sobre-representada. Mas, até agora, nenhuma experiência cosmopolita deu origem a um povo novo, com um sentimento generalizado de fazer parte da mesma comunidade política e valores fundamentais partilhados. E, sem povo, não há uma democracia estável, nem Estado-social, nem uma identidade abrangente, seja ela nacional ou europeia. No referendo de 23/06 muitos ingleses votaram contra União Europeia porque projectaram nesta o seu mal-estar como povo. Londres perdeu a Inglaterra é uma metáfora. Simboliza o mundo à parte — as zonas ricas e cosmopolitas das grandes cidades europeias —, em que vivem as elites e outros ganhadores, desfasado da massa dos perdedores da globalização e do multiculturalismo. Para a maioria das elites, esses são uma espécie de clones de Ignatius J. Reilly — o exótico personagem do romance de John Kennedy Toole, Uma Conspiração de Estúpidos, preconceituoso, inútil economicamente e fora de época. Ao menosprezarem-nos assim, deixaram o caminho aberto a populistas e radicais que manipulam o descontentamento a seu favor. A “conspiração de estúpidos” que votou pelo “Brexit” pode adquirir novos contornos nas próximas eleições presidenciais da Áustria, e na França em 2017, atingindo um patamar politicamente bem mais perigoso.
Investigador