REVISTA_2
O desassossego pode ser uma palavra de contenção
Manifestações do Desassossego, de hoje como de há 20 anos, numa exposição que reúne material de arquivo e também actual do fotojornalista António Pedro Ferreira, para ver na Casa Fernando Pessoa
Se todas as manifestações são “manifestações do desassossego”, como diz o fotojornalista António Pedro Ferreira, então vivemos num tempo de desassossegados. As caras multiplicam-se nas manifestações e nem todos os momentos são de gritos de palavras de ordem ou de gestos agressivos. É assim que António Pedro fotografa a manifestação: olhando nos rostos e nos pequenos gestos o desassossego, que “é uma palavra de contenção”.
Até 15 de Julho, a Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, mostra Manifestações do Desassossego, fotografias que António Pedro Ferreira fez nos anos 1990 e na actualidade — foi buscar também algumas ao seu arquivo dos anos 1980, mas poucas, só as que, não sendo de manifestações, “marcavam uma pausa. Podiam nem fazer muito sentido, mas eram desassossegadas”, explica à Revista 2.
O desafio que a Casa Fernando Pessoa propôs ao fotojornalista foi inspirar-se na obra de Fernando Pessoa, o que não é inédito — a instituição tem já uma colecção de livros feitos sob o mesmo mote. E a primeira ideia que ocorreu ao fotojornalista foi o Livro do Desassossego. À procura de inspiração no seu arquivo, não pode deixar de notar as dos anos 1990, que hoje é fácil voltar a identificar na rua. Na obra do semi-heterónimo de Pessoa Bernardo Soares há uma passagem sobre uma manifestação de operários, “uma passagem provocadora, maldosa”, diz António Pedro para falar de frases do livro como “tive subitamente uma náusea. Nem sequer estavam suficientemente sujos”.
Juntar fotos de há 20 anos com as de hoje é ver que o tempo lhe trouxe a capacidade de perceber o que procura quando dispara. “Naquela altura, não sabia do que estava à procura, ou sabia inconscientemente. Hoje sei, mas não encontro”, diz António Pedro. O que procura é afinal, explica, o mesmo de todos os fotógrafos, o momento que está para além do real e que é como um milagre — não se sabe porque aconteceu. Em Manifestações do Desassossego, o transcendente está no detalhe, no pormenor do rosto e do gesto, no pormenor do enquadramento, da contraluz, do reflexo, e não no plano geral, no grito e no cartaz, ou nas multidões, que, diz, são todas iguais. “Quando o gesto é demasiado agressivo, é redutor porque uma imagem violenta não diz nada para além de violência. A calma é mais rica, apesar de ser até mais fácil de fotografar.”
Bernardo Soares no Livro do Desassossego desconfia das manifestações. Porque “me pesa sempre admitir sinceridade nas coisas colectivas, visto que é o indivíduo, a sós consigo, o único ser que sente”, escreve. Catarina Moura